terça-feira, 14 de dezembro de 2010

David Oliveira - Desenhar no espaço


Artista recentemente surgido na paisagem da arte portuguesa, David Oliveira (Lisboa, 1980) começou a expor em 2005 e mostra agora novas obras na Galeria Pedro Serrenho. As suas esculturas parecem causar um entusiasmo súbito em quem as vê.
A prova disso é a exposição “One Week Studio”, que estava para durar apenas uma semana mas que, depois de montada, foi prolongada para um mês, tal o efeito causado pelas peças no espaço. Filipa Oliveira, curadora dos “Project Rooms” na Arte Lisboa 2010, também foi uma das pessoas atingidas pelo espanto. Ao visitar a galeria durante a preparação do seu projecto, viu a instalação em arame “Biblioteca ou ensaio de multiplicação de planos”, de David Oliveira, e não resistiu a convidá-lo para instalá-la também na feira de arte. Não é de admirar, pois as peças de David Oliveira possuem um apelo que advém do facto de nos baralharem a percepção ao duvidarmos da sua presença entre o desenho e a escultura.

Não se trata de um corpo de trabalho baseado em conceitos rebuscados. Cada peça de David Oliveira é um estudo das capacidades de representação através da linha tridimensional em arame. No entanto, a escultura que realiza nesta técnica é capaz de criar sombras que são desenhos de linhas e manchas. Projectada na parede, a peça funciona em diálogo com a sua sombra. Essa sombra aproxima-se mais do desenho e causa uma duplicidade na obra. É difícil dizer se os trabalhos de David Oliveira são puramente escultura ou se são também desenho. A esta dúvida, David responde: “A minha formação é em escultura, como tal sou escultor. Este ano ingressei no Mestrado de Anatomia Artística, que tem uma vertente de desenho muito forte. Estas últimas esculturas, mais riscadas, partilham com o desenho valores plásticos, compositivos, metodológicos, que esbatem muito mais essa fronteira. Tornando-se mais próximo deste, contudo, ganham mais matéria, peso, aproximando-se também mais da escultura. É aqui que se situa o meu trabalho, no melhor de dois mundos, mas se me perguntarem eu direi que sou escultor e não desenhador.”

Esta exposição povoa a galeria com uma miscelânea de personagens humanas e animais em poses várias, explorações do retrato e cristalizações de movimento em linhas de arame. Não há um tema específico que David trate. Ele prefere a exploração do material e da técnica ao serviço de um registo figurativo. David Oliveira explora as capacidades de desenhar no espaço e criar personagens e ambientes com esta forma de arte “em esqueleto”, como se sublinhasse o essencial do desenho, mas também o essencial da escultura, retirando tudo o que é acessório. A sua obra, como diz o artista, “é puramente visual”.

David Oliveira é, ainda timidamente, um dos talentos que despontam em forma de promessa. Representado pela peculiar Galeria Mito, em Barcelona, acaba de vencer o Prémio Revelação em Escultura, na IX edição do Prémio de Pintura e Escultura D. Fernando II e é um dos seleccionados no concurso Jovens Criadores 2010, do Clube Português de Artes e Ideias. São pequenos indícios de uma carreira ainda curta, mas causadora de interesse.

Miguel Matos

“One Week Studio" está patente na Galeria Pedro Serrenho (Rua Almeida e Sousa) até 30 de Dezembro. Ter-Sab 11.00-13.00 e 14.00-20.00. A entrada é gratuita.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

David de Almeida - A Matéria em Discurso Directo


Como artista total que é, David de Almeida (São Pedro do Sul, 1945) sempre se dedicou à pintura, à gravura, à escultura e assemblage com resultados que criaram o seu discurso próprio. É esta faceta diversificada que se revela a muitos como uma surpresa nesta exposição antológica. A mostra não pretende ser exaustiva e organiza-se segundo a coerência das obras datadas de 1982 a 2010.
Na pesquisa plástica e estética de David de Almeida há um diálogo entre aquilo que o material é e aquilo que ele é capaz de realizar. Existe quase sempre a marca daquilo que o material riscou ou gravou na superfície para depois fazer emergir o próprio material que originou o risco, a mancha ou mesmo a cicatriz. “Não tenho grande relação com a tela”, diz o artista. “Sempre fui criado no meio dos materiais, das oficinas... tenho essa relação com a coisa física.”

Nesta exposição, os sentidos são convocados numa experiência em que o diálogo entre composição e material obriga a dupla leitura.

O difícil está em decidir qual delas é a primeira. Ou se capta a totalidade da obra ou se cede ao apelo físico e se parte à descoberta dos seus elementos matéricos. Descobrir de que é feita a obra, sentir a rugosidade da superfície vertical ou quase tocar (é o que apetece) a textura do metal em bruto, oxidado ou polido. Ou da pedra, esculpida ou aglutinada.

A surpresa está garantida para quem não tem acompanhado a actividade expositiva do artista em galerias como a 111 ou mais recentemente a Valbom, onde mostra regularmente o seu trabalho de pintura e escultura. A gravura, técnica talvez esperada pela maior parte dos visitantes, apenas aparece aqui em poucos mas excelentes exemplos. Em Portugal, país onde a gravura já teve dias áureos, não se aprecia esta técnica, perdurando o desinteresse e incompreensão face à obra gráfica. Assim, revisita-se nesta antologia um período dos anos 80, menos conhecido. “Na inauguração percebi que até alguns amigos meus não sabiam que eu fazia este tipo de trabalho”, conta David. “Algumas destas obras apenas tinham sido expostas na Galeria 111, numa altura em que a crítica emergente dos anos oitenta estava mais preocupada com outros assuntos. Anos depois, alguns críticos escreveram que as coisas mais importantes que eu fiz foram desta época.”

Ao longo das salas testemunha-se uma redução das formas ao seu mínimo, maximizando as potencialidades plásticas da cor, da matéria e da textura, ampliando assim a experiência sensorial. Há diálogos e desdobramentos entre aquilo que David de Almeida faz nas diferentes técnicas. Um jogo entre a pintura e a escultura que transforma o bidimensional em tridimensional e vice-versa. É de destacar uma série de obras em papel moldado, realizada em 1982. “À volta do sítio onde nasci há imensas gravuras rupestres. Fiz o percurso destas gravuras e pensei que nunca se tinha tirado provas delas. Então decidi fechar o ciclo.”

A técnica consistia em colocar borracha de silicone por cima da pedra e assim fazer o negativo.

Esse silicone tinha que ter umas costas em gesso. “Andávamos nós pelas matas com o silicone, baldes de água e sacas de gesso às costas. Era uma mão-de-obra enorme... Depois trazia o molde para o ateliê, montava as placas de gesso e prensava a pasta de papel contra o silicone”, conta. O resultado são formas ancestrais em relevos brancos de papel como pedra. Aliás, a pedra está quase sempre presente na obra de David de Almeida quer em evocação, quer por sugestão ou mesmo em matéria, como nos quadros em que as composições geométricas são feitas em pedra em pó com gel.

Entre a forma e a matéria, a luta acaba em vitória para os dois lados numa antologia que leva a entender onde começou o trabalho que hoje vemos e porque chegou ao resultado final.

Miguel Matos

“David de Almeida – Antologia" está patente na Galeria do Palácio Galveias (Campo Pequeno) até 30 de Janeiro de 2011. Ter-Sex 10.00-19.00. Sáb e Dom 14.00-19.00. A entrada é gratuita.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Rui Effe - Tóxicos Delírios Musicais




Segundo a lenda medieval, na província de Taranto, no Sul de Itália, um veneno misterioso punha os habitantes em delírio, delírio esse que inspirou um género musical. São estas loucuras e estas músicas que se sentem ao percorrer com o olhar os percursos sinuosos dos desenhos parcos de cor mas plenos de movimeno de Rui Effe. “Uma noite adormeci a ver um filme e a meio da noite acordei com o som de um violino que tocava aceleradamente uma música lindíssima. Fui pesquisar à internet e descobri que a música era uma tarantela. Descobri também que associada à tarantela existe uma lenda. Foi essa lenda que me levou a fazer estes desenhos.” É assim que Rui Effe explica o porquê do tema da sua exposição “La Tarantella”, na Galeria de São Bento.
O corpo tem sido sempre uma das maiores preocupações e interesses deste artista (o seu blogue chama-se esteeomeucorpo.blogspot.com).

De forma menos directa, em “La Tarantella” é ainda o corpo que se expressa afectado e infectado através de um veneno catalisador de danças e convulsões físicas. Trata-se de uma representação gráfica de substâncias estranhas que, ao entrarem em contacto com o corpo humano, quer sob a forma física, quer espiritual, o tornam peculiar. Nesta representação, apesar de abstractizante, é possível visualizar correntes circulatórias em alta velocidade que fazem os olhos dançar pela superfície do papel e da tela como corpos em transe. É uma “exaltação, um delírio e a prostração do corpo assim que invadido pela substância contaminante”, diz Effe. O registo da maior parte destes trabalhos é de um desenho automático, realizado em velocidade sobre papel e em objectos. Desde sempre ligado essencialmente à disciplna do desenho, Rui Effe tem-se dedicado ultimamente também à produção de objectos, instalações e assemblages, com resultados plásticos misteriosos e impactantes. Em “La Tarantella”, o desenho torna-se mais uma vez tridimensional em telas suspensas, acordeões, ninhos, teias e outras realidades físicas em técnicas pouco convencionais. Há um lado obscuro e de opacidade que impede uma visão imediata do conteúdo de cada elemento. O mistério é parte integrante desta série, com peças desconcertantes que provocam o observador. Nem tudo é lógico, nada é certinho. “La Tarantella” gira em círculos e linhas sinuosas que entontecem como um veneno.

Uma vez que o conceito da exposição se baseia em crenças e mitos, eis mais um pouco do elemento histórico que fundamenta o conceito das obras. O título e género musical que serve de referência tem a ver com o tarantismo (também chamado tarantulismo). Segundo a crença popular este é um delírio muito específico, causado pela picada tóxica de uma aranha muito especial: a tarântula (Lycosa tarentula). Quando os habitantes de Taranto eram atacados por este bicho, o resultado era uma febre que se traduzia numa dança frenética – a tarantela. Nos desenhos de Rui Effe, os cérebros derretem-se, as figuras esbracejam, as veias dilatam-se e transformam-se em pautas de uma música veloz e inebriante como um orgasmo ou um outro qualquer êxtase físico ou mental.

Miguel Matos

“La Tarantella” está na Galeria de São Bento (Rua do Machadinho, 1) até 30 de Dezembro. Aberta de terça a sexta das 14.00 às 20.00. Sábados. domingos e feriados só por marcação. Entrada gratuita.

domingo, 28 de novembro de 2010

PIECES and PARTS - Plataforma Revólver, até 22 Janeiro. R. da Boavista, 84, 1º. Lisboa


Curadoria de Elsa Garcia e Miguel Matos


Nascida em 2002, a Revista Umbigo começou por ser uma publicação sobre arte e cultura com um enfoque específico: o corpo como lugar e assunto da criação artística. Objecto editorial difícil de catalogar, provou a conquista do seu público apesar do deserto editorial em que se situava na época da sua génese. Embora o corpo não seja já o tema fulcral da Umbigo, foi neste assunto que tudo se originou. Quando se completam oito anos, 35 edições trimestrais da revista, que melhor tema para uma exposição comemorativa do que o corpo? É pois este o assunto que, partido e reunido, a Umbigo propõe analisar.

“The human organism is an atrocity exhibition at which he is an unwilling spectator”
J. G. Ballard, The Atrocity Exhibition

Não é assunto novo na arte moderna e contemporânea. O corpo sempre foi um dos objectos mais “remexidos” pela arte. Desde a “lógica da representação à lógica da participação/interacção, do critério do perfeito ao desafio do inacabado, o corpo na arte decanta-se, miscigeniza-se, desproporciona-se, desequilibra-se, desvaloriza-se, efemeriza-se, órfão do sentido único”1. O corpo como realidade física é composto por órgãos, peças e partes visíveis e outras ocultas, apenas imagináveis até à invenção dos métodos e tecnologias médicas de visualização do seu estado interno. Falamos de um corpo que já não o é apenas como um todo, mas também como uma dispersão através da representação das suas partes. Se encarado como objecto estético e metafórico, cada órgão é visto pela sua capacidade iconográfica, seja através da representação realista ou através do rasto da sua passagem ou percepcionado através dos materiais por ele produzido. É uma multiplicidade de imagens que, sendo do corpo, dele já se afastaram. Referem-se ao seu portador, mas vivem de forma autónoma. Estes fragmentos - esta desconstrução - podem constituir um alfabeto, separando as letras da palavra carnal. Cada um deles vive assim em conjunção com outros, coordenados ou não, criando um discurso passível de diferentes leituras que podem ser literais, conceptuais ou poéticas, consoante o observador e o proponente de tais visões. Paradoxalmente, “Pieces and Parts” reune as partes sem nunca se conseguir ver o todo.
Entre os signos e as próteses, as marcas do desejo e as provas de devoção, o corpo é palco daquilo que o próprio corpo sente e pensa. Um corpo analisado em memórias e fragmentos é o mote para uma exposição em forma de lição de anatomia. Através de objectos representativos das peças e partes que compõem o corpo humano, reune-se uma amostra de diferentes abordagens à sua representação. O conjunto resulta numa visão em desconjunto, afasta-se da totalidade física para atingir uma sucessão de imagens e objectos aparentemente sem sentido mas que sugerem a única coisa que os seres humanos inequivocamente partilham: uma idêntica geografia interna, uma cartografia comum, uma máquina orgânica… A exposição reúne linguagens e técnicas divergentes, como a pintura, a joalharia, a escultura, o vídeo e a instalação de autores provenientes de Portugal, Brasil, EUA, Espanha e Sérvia.

Miguel Matos



Artistas:
Alexandra Mesquita, Ana Vidigal, Annie Sprinkle, Carlos Mélo, Clara Games, Cristina Ataíde, Fátima Mendonça, Inês Nunes, João Galrão, Julião Sarmento, Lara Torres, Leonor Hipólito, Lluís Hortalà, Manuela Sousa, Miriam Castro, Miguel Branco, Rafael Canogar, Rui Effe, Sara Maia, Teresa Milheiro e Vladimir Velickovic.



1. BARBOSA, António. Corpo Metafórico in O Corpo na Era Digital. Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa, 2000.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Fátima Mendonça - Um carrossel de obsessões domésticas


Fátima Mendonça pinta sempre o interior de si, por vezes no interior de uma casa. Na casa pintada de Fátima, vive uma toureira que enfrenta os medos de frente, que seduz e entra no jogo da carne e da morte. As toureiras, metáforas de coragem, visitam muito as suas pinturas. Na casa imaginada de Fátima há uma toureira que se isola de tudo. O mundo em que vive, construiu-o para si com aquilo que tinha à mão: doces, dores e obsessões. Com estas matérias-primas caseiras, construiu um carrossel. Uma coisa que gira, que gira, que gira, que não vai a lado nenhum e não pára.
Um divertimento de ais e ansiedades que dá a volta à casa, que dá a volta à toureira e que nunca mais tem fim... É esta a “Casa-Carrossel” que Fátima Mendonça transportou para a Galeria 111. “Eu trabalho de forma circular”, diz a pintora. Isto quer dizer que há um conjunto de elementos que, de forma obsessiva, circulam, aparecem e desaparecem nas imagens que cria. Também a sua visão das coisas que a cercam e da vida que tem tende a criar ciclos e círculos. Nestas realidades à roda do inexplicável, Fátima deixa de lado o medo que foi o motivo da sua anterior exposição. Já não é o medo que espreita pelos cantos da casa ou que se esconde sob o papel de parede. Não que ele tenha desaparecido, mas a artista entregou-se a outras paciências.

O seu mundo afunilou-se, reduziu-se a uma casa isolada, que nem assenta sobre a terra, mas que se pendura por um pau, longe do contacto com o mundo.

Da casa pendurada por paus e fios cresce um enorme carrossel, construído por quem lá mora, montado com objectos domésticos e estilhaços de coisas que doem.

“É como se tivesses o coração todo partido e fosses, no meio do desespero, colar as pecinhas e, então, fica outro objecto com forma de coração, todo atrofiadinho, todo remendado. E acaba por ter muito mais valor do que o coração impecável porque foste tu, com a tua dor, que o foste ligar e construí-lo de novo”, conta Fátima. “É a tua forma de superar, como se agarrasses na tristeza e conseguisses construir algo, mesmo que saibas que aquele carrossel não te leva a lado nenhum. Mas é bonito e é para isso que serve um carrossel, para nos divertirmos.”

Nestas telas e desenhos vemos uma casa suspensa, distanciada do chão. Dentro dela mora alguém que não tem contacto com a realidade. Nesta casa, a única coisa que a toureira pode criar são carrosséis no telhado. Carrosséis feitos, à falta de melhor, com o material que está à mão. São coisas manuais, criadas com os fantasmas de quem lá vive. Há carrosséis feitos de fios, de pernas de toureira, de formas de bolo e de rabos de touro.

Não há nesta exposição uma história para contar. Apenas um registo obsessivo de movimento circular. Sente-se uma vertigem pelas alturas e uma atracção pelas velocidades. Tudo gira num vórtice de símbolos como os rabos de touro (metáforas para a dor) numa volta de pernas de toureira – “é como se ela tivesse parado de brincar às touradas. É uma ironia. Ela já não consegue fazer nada com os fatos, e então pega neles e faz um carrossel”. Há rodopios também feitos de formas de bolo. Fátima diz que “podemos construir uma prótese de bolo, uma mão, por exemplo. Os bolos são coisas que eu ligo à casa. São coisas doces, que sabem bem e que alimentam, mas essa ideia interessa-me porque consigo encontrar nela qualquer coisa de assustador e perverso”.

Não venha à exposição “Casa-Carrossel” se as voltas lhe perturbam a lógica e causam tonturas. “A ideia do carrossel é uma ideia circular”, explica a pintora. “Tem um lado lúdico, obsessivo e pode ser uma coisa angustiante porque dá uma sensação de perigo, mas tem também um lado de festa. Este é um carrossel impraticável, é mais um labirinto do que um carrossel, criado por alguém que anda ali às voltas e nunca desce à terra. No fundo, os carrosséis têm qualquer coisa de gigantesco, é como se fossem um espaço onde nos perdemos.” E se nos perdemos é porque a razão se mostrou inútil. No limbo entre o real e o imaginário interior de Fátima Mendonça, o melhor é entrar no carrossel e aproveitar a viagem.

“Casa-Carrossel” está patente na Galeria 111 (Campo Grande, 113) até ao fim do ano. De terça a sábado das 10.00 às 19.00. Encerrada nos feriados. Entrada gratuita.

Miguel Matos

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Teatro Digital - Reflexões sobre Miguel Chevalier



“A arte digital oferece um verdadeiro reservatório de formas impossíveis de imaginar de outro modo, uma quantidade ilimitada de formas representando, por exemplo, objectos em três dimensões a partir de equações complexas, ou de imagens fractais bi ou tridimensionais geradas unicamente por simulação gráfica. O computador pode permitir traçar as figuras mais inimagináveis, onde poderosas equações possuem uma pluralidade de parâmetros funcionais, capazes de satisfazer o nosso inconsciente óptico”1. - Herlander Elias in Néon Digital




Um desafio de ver e agir. É o que Miguel Chevalier propõe ao entrarmos, ao sermos sugados por vezes, para dentro das suas instalações interactivas. A realidade que cria é composta por “ambientes” onde o movimento humano é ponto de partida para o desenvolvimento de uma obra de arte em que o deslumbre visual nos leva a divagar em paragens incertas. Neste repto de fazermos parte da obra de arte, de viajarmos com ela, pede-se coragem – é que este mundo virtual que se desdobra perante nós abre portas para o desconhecido...
Para Wolf Lieser, especialista em arte digital, “Em princípio, toda a activação de um processo mental que acontece durante a observação de uma obra artística pode ser considerada uma interacção”. O que é o mesmo que dizer que toda a arte é interactiva. Mas há obras de arte, nomeadamente no campo da arte digital, em que há uma interacção técnica, ou seja, estabelece-se uma interacção directa com o receptor através da sua participação tangível na obra. A interacção nas obras de arte digital pode limitar-se ao simples premir de um botão ou ir até um conjunto de relações mais complexas entre a obra e o utilizador/observador. Nas projecções interactivas de Miguel Chevalier verificamos que a obra, apesar de só estar completa com a presença do espectador, consegue viver até mesmo sem ele. Isto porque o seu trabalho baseia-se na generatividade, o que implica o desenvolvimento autónomo de formas a partir de uma espécie de ADN digital. Segundo o artista, trata-se de um “simulacro da natureza” que envolve a vida, a mutação contínua, o movimento e a transição entre estados. Por exemplo, em Fractal Flowers, as sementes virtuais criam flores autónomas que crescem, abrem e murcham até ao infinito. No entanto, sempre que se requer a interactividade, o artista toma o observador como sujeito da experiência artística, um elemento cuja acção e movimento sustenta a própria obra de arte. Isto implica uma responsabilidade partilhada no que diz respeito à autoria e ao processo de criação. O observador passa a actor, ao transitar do tradicional comportamento passivo para um comportamento activo, chegando a representar um elemento central na obra de arte. Esta conectividade entre obra e observador salienta o carácter performativo presente em muitos dos trabalhos de Miguel Chevalier.
A interactividade característica do trabalho deste artista situa-se num nível em que Miguel estabelece a priori as acções possíveis ou não de serem realizadas perante o conjunto de imagens e dispositivos que coloca à disposição do visitante. Assim, o interveniente é uma espécie de performer mas apenas a um nível limitado, sem possibilidade de radicalmente transformar as acções permitidas. Na actividade previamente pautada pelo artista, o usuário tem o poder, primeiro que tudo, de optar por entrar ou não na obra de arte. Depois disso, tem o poder de aceitar uma ou várias (ou todas) as opções de interacção, como se de um jogo se tratasse. Noutro nível de exploração da obra, o usuário poderia ampliar ou negar a informação previamente fornecida pelo artista, assumindo um papel cada vez mais autoral. Não é, no entanto, esse o interesse primordial de Chevalier.
Ainda no que concerne à possibilidade de leitura performativa das instalações interactivas de Chevalier, é interessante notar que ela se dá a dois níveis: se por um lado podemos ser o actor que age de acordo com os dados com os quais nos é permitido interagir, movimentando o corpo e observando em tempo real a resposta visual em frente ou à volta deste corpo, há também a possibilidade de outros observadores, mais afastados do campo de acção, poderem contemplar a obra na sua totalidade, apesar de alheados da interacção. Assim, actor e ambiente podem funcionar visualmente como um “teatro digital”. Algumas instalações, como “Fractal Flowers” não requerem acções ou movimentos pensados ou conscientemente coordenados por parte do visitante. A simples presença física e a duração da mesma no espaço altera as coordenadas da imagem ou interferem no seu desenvolvimento. Aqui não se pode falar de performance mas sim de uma mera consciência corporal do observador que se sente alvo de uma acção que já não lhe pertence e escapa ao seu controlo.
Um aspecto importante do trabalho de Chevalier é o seu carácter site specific. A disposição dos elementos tecnológicos e a escala das imagens projectadas diverge grandemente consoante os locais onde as obras são apresentadas. Com isto mudam os públicos e os comportamentos perante as imagens. Uma vez que são peças que estabelecem uma relação directa com o espaço onde são instaladas, há sempre um elemento arquitectónico a considerar que é de importância extrema para a fruição da peça. Há uma relação directa entre o espaço real e o espaço virtual. Confirma-se assim que o que distingue as instalações digitais de grande escala é o equilíbrio entre aqueles dois domínios e os métodos empregues para “traduzir um espaço para o outro”2.
A prática artística de Miguel Chevalier não é uma actividade de ruptura, como se possa pensar à primeira vista, considerando os meios sofisticados que utiliza. Poderá parecer um paradoxo, mas um dos aspectos que distinguem a obra de Miguel Chevalier em comparação com outros artistas digitais é a sua relação com a tradição da pintura. Durante a sua juventude no México, Chevalier privou com personalidades marcantes da cultura e da arte, sendo de salientar os artistas muralistas David Siqueiros e Rufino Tamayo, que frequentavam a sua casa. Tendo esta referência, é pertinente notar que as suas instalações frequentemente, e cada vez mais, assumem grandes dimensões. São muitas vezes projecções murais de grande impacto, que provocam o estarrecimento do observador. Mas esta não é a única relação possível de ser estabelecida com os muralistas e com outras correntes estabelecidas na pintura. Pode-se também resgatar alguma tradição da pintura de paisagem, ao recordar as obras “Fractal Flowers” e “Ultra Nature” em que uma vista panorâmica vegetal é alterada e afectada pela acção do movimento do observador, que chega a ser actor. O artista, numa entrevista aquando da sua exposição “Segunda Natureza”, em Brasília, disse: “a minha formação em história da arte mostrou o quanto artistas como Seurat, Cézanne e Monet, no século XIX, assim como Mondrian, Matisse, Warhol, Fontana ou Nam June Païk, no século XX, e tantos outros, foram visionários e inovadores no campo da pintura. Esses artistas, em certo sentido, por meio de suas pesquisas pictográficas e das suas abordagens intelectuais prefiguram a arte computacional.”3 Serão eles precursores desta arte digital?
Wolf Lieser é um dos autores que reconhece esta afinidade de Miguel Chevalier com as correntes da pintura, salientando também a inspiração deste criador nas tradições pictóricas do pontilhismo e do impressionismo4. É curiosa a forma como a tradição da pintura aparece numa linguagem tão recente. Mas a verdade é que em todas as épocas, os pintores utilizaram os meios e as linguagens do seu tempo. O tempo de Chevalier é o tempo da tecnologia. Também Pierre-Yves Desaive relaciona as obras digitais de Miguel Chevalier com a história da pintura. Ele chega mesmo a dizer, a propósito da relação deste criador com Cézanne que “enquanto o artista pretende reduzir o seu sujeito a volumes geométricos, ao mesmo tempo deve evitar a humildade em vista da enormidade e complexidade da sua tarefa como pintor de paisagens. Seria incapaz de atingir o seu objectivo sem o recurso à própria natureza, um mundo natural que lhe oferece um repertório limitado de formas com as quais ele retranscreve a infinitude do visível”5. Miguel Chevalier não se situa longe desta posição. O seu processo, decorrente de técnicas e suportes digitais, de programas de computador em vez de tintas e pincéis, resulta na criação de um vocabulário pictórico próprio, composto, como no caso de “Fractal Flowers”, por elementares formas geométricas, à semelhança do que se passava com o cubismo. Recorrendo às ideias de Herlander Elias, “trata-se de uma cultura da Técnica que dispõe de formas de realização neoestéticas, justamente porque permitem a concepção de formas de beleza totalmente novas, mesmo quando os novos ideais de belo são influenciados pelas técnicas clássicas, pelos procedimentos e métodos de aproximação da arte museificada, agora compartimentados pela ciência de informação e pelos métodos de armazenamento de dados”.
Miguel Chevalier não se dedica apenas a temas de referência ao mundo vegetal ou à alusão à pintura através de meios digitais. Em “Crossborders”, a experiência do usuário no centro da instalação interactiva consegue ser ainda mais imersiva porque é tomada em dimensões mais complexas e envolventes. Através de sensores, imagens reais e virtuais (algumas delas em três dimensões) são manipuladas pelo visitante num emaranhado de redes urbanas, comunicacionais e geográficas. É uma envolvência em paisagens verbais, como uma caverna de significados intrincados e em permanente mutação. É um espaço constituído por dados e fórmulas, algoritmos e algarismos. Pertence à nossa realidade, mas num contexto simbólico e feito exclusivamente de informação. “Como espaço construído por cálculos, certamente difere, de muitas formas, dos espaços da nossa realidade física; é o sistema de referência espacial usado nos media digitais. Qualquer discussão acerca das diferenças entre espaços físicos e virtuais requer uma clarificação daquilo que entendemos como espaço em primeiro lugar”, analisa Christiane Paul.
Através das suas obras, Miguel Chevalier cria extensões da nossa consciência corporal e espacial. É a estimulação da percepção posta em relação com a cognição na “beleza natural” do ciberespaço.

Miguel Matos


1 Elias, Herlander. Néon Digital – Um Discurso sobre os Ciberespaços. Universidade da Beira Interior/Labcom, 2007

2 PAUL, Christiane; Digital Art. Thames & Hudson, Londres, 2008.

3 VENTURELLI, Suzete; Segunda Naureza, 2009. Espaço Cultural Marcantonio Vilaça, Brasília, 2009.

4 LIESER, Wolf; Arte Digital – Novos Caminhos na Arte. H.F. Ullmann, Lisboa, 2010.

5 DESAIVE, Pierre-Yves; Flores Fractais in Inside – Arte e Ciência. Ed LxXL, Lisboa, 2009.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

José Pedro Croft - Contentores em final grandioso


A primeira temporada do Projecto Contentores chega ao fim com a mais radical intervenção de todas, concebida por José Pedro Croft. Desde Junho já passaram pelos contentores estacionados nas docas Luísa Cunha, Bruce Nauman, Fernando Ribeiro, R2 Design, Susanne Themlitz e Pedro Cabrita Reis. Uns com maior, outros com menor transformação destes enormes paralelepípedos.
Para finalizar em grande, José Pedro Croft vai empilhar os quatro contentores, tirar partes, acrescentar outras, puxar o exterior para dentro e empurrar o interior para fora. Tudo junto resulta numa torre que estilhaça imagens e proporciona uma vivência da escultura por dentro e por fora. Cruza os limites entre imagem e objecto e os limites do corpo com o espaço. Os contentores serão empilhados constituindo uma coluna. As portas ficarão entreabertas e no seu interior serão colocados espelhos. A Time Out teve acesso a uma antevisão da maquete da peça que inaugurará este sábado. O estado final dos contentores, só no final se conhecerá, visto se tratar de uma montagem sujeita a surpresas.

José Pedro Croft dá nova forma aos velhos contentores, que adquirem assim a forma característica de outras obras escultóricas do artista. “Subverto a ideia de contentor como uma coisa que recebe imagens do exterior, que as reenvia e acaba por ser uma plataforma de passagem de informação”, explica. O espaço fechado do contentor passa a ser aberto e vulnerável a contaminações vindas de fora. O “quase-edifício”, de formas aparentemente claras no exterior, fragmenta-se com a visão que se pode ter a partir de dentro. Com os planos abertos para o céu e a ponte, assim como com as imagens presas aos espelhos, a percepção desta torre é de mutação, tendo em conta as mudanças entre o dia e a noite.

Uma vez que esta é a última intervenção nos Contentores, José Pedro Croft teve total liberdade de manipulá-los, não se preocupando com o que ficará depois. “Nunca tive ideia de usar os contentores respeitando a sua forma”, diz. O próprio contentor como objecto tem muito a ver com as esculturas que José Pedro Croft tem concebido ao longo dos anos. Também elas são sempre contentores. “É verdade”, responde o artista. “Quando eu fiz a retrospectiva no CCB em 2002, reparei, olhando para trás, que todo o meu trabalho andava à volta de rectângulos, caixas e contentores. A escultura é um assunto frequentemente funerário, mas pode não ter a ver só com caixões. Pode ter a ver com caixas, contentores, arcas que guardam sal, farinha, cartas, memórias... Interessa-me a ideia desse sítio onde se guarda coisas que mais tarde são abertas. Se for uma caixa com cartas, elas podem ser lidas e reactivarem as experiências passadas ou, no caso de farinha, esta teve na origem a semente e há-de ser transformada em pão. É todo um processo dinâmico”.

No fundo, se guardamos algo num contentor é porque esse algo tem um valor e a finalidade será, em princípio, a sua utilização posterior. O contentor é um lugar de transição, tal como a arte. Croft interessa-se pelo tema: “É um ambiente de fixação. As coisas estão em movimento e há um momento em que são fixadas naquele espaço. Mesmo quando é transportado, o que lá está dentro vai fixo. O que se mexe é o contentor. Depois há outro momento em que se volta ao processo dinâmico.”

Nestas dimensões e volumes, a dimensão arquitectural demonstrada abundantemente na obra de Croft torna-se clara, pela forma como o artista trabalha estes contentores, aglutinados num edifício final.

Miguel Matos

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

João Queiroz - A paisagem como pintura


A pintura de João Queiroz não é uma obra de espectáculo, mas consegue deslumbrar. Não é puramente figurativa mas mantém a representação. Não nos diz coisas explícitas, mas insinua que estamos a observar cenas da natureza. O observador que se deixa sugar pelas cores e traços marcados pela tinta e pelo corpo numa evidência de gestos, deixa progressivamente de se situar apenas e só na paisagem à sua frente. A cena dilui-se, torna-se um objecto visual, apenas e só, em toda a sua gloria.

“A percepção da paisagem é uma 'evidência', uma injunção implícita, e é evidente que a paisagem é bela. Nada se equipara à bela paisagem. Ela é dada, apresentada aos sentidos como um usufruto, um repouso.” Quando Anne Cauquelin escreveu este trecho no livro A Invenção da Paisagem parecia referir-se à pintura de João Queiroz. Eis que no epicentro frenético da cidade, aparece uma exposição para ver devagar. “Silvae” é uma antologia do trabalho de João Queiroz em desenho e pintura. Começa em 1992 e vai até à actualidade, organizada como um percurso pouco estruturado, em que as obras se reunem por afinidades e não por épocas. O início da exposição tem como assunto aglutinador os seus primeiros trabalhos, associados a experiências relacionadas com a sua actividade como professor. São pesquisas formais e exercícios entre a imagem e a linguagem verbal. Piscadelas de olho irónicas à representação na arte e desenhos que indagam a influência da palavra no desenho. A paisagem, aqui ainda incipiente, é já um tema importante que leva às pesquisas posteriores. A paisagem é, de facto, o tema único que João Queiroz não mais abandonou até hoje. “A paisagem surge da preocupação em compreender como é que o nosso corpo vê um acontecimento e como é que nós escolhemos esse acontecimento entre os outros, como agregamos as coisas para constituir um objecto... como é que a linguagem leva a fazer isso.”, explica o artista, introduzindo o tom geral da exposição.

Na pintura de João Queiroz, não é possível determinar rigorosamente cada um dos objectos representados (uma árvore, um ribeiro, ervas e folhas...) tudo se dilui e interpenetra, embora a sensação final no observador componha a imagem reconhecível de uma paisagem. Nestas imagens é importante a carnalidade da tinta, as espessuras, as escalas, as velocidades que o artista imprimiu na tela. Tudo isto só se revela com a presença directa do observador. Qualquer reprodução aniquila esta experiência. É preciso ver como as obras mudam conforme as dimensões, os suportes e as técnicas, sejam elas em óleo, aguarela ou outras.

O pintor guarda na tela e no papel o registo posterior e subjectivo das sensações guardadas no corpo depois da observação de um cenário natural. As obras de João Queiroz são para ver com o corpo todo, usando as coordenadas espaciais que advêm da memória física e da nossa própria consciência corporal. Após uma demorada observação estas imagens deixam de ser paisagens, já são outra coisa. “São pintura”, diz o artista. São objectos para ver. Há assim como que um esvaziamento de sentido para criar uma experiência estética e plástica. É assim que a pintura (sobre)vive e renova o seu interesse. Como diz Queiroz, “se esta se esgotar num jogo de símbolos e sinais, na sua sucessiva interpretação e reinterpretação, tornar-se-à um objecto cultural no sentido mais bolorento do termo, e não mais parte fundamental da criação de novas sensibilidades e novos modos de ver. Não acredito que isso tenha de ser assim. Por isso estou atento à pintura”.
Miguel Matos

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

São Trindade - A Fotografia posta a nu



Os mitos são meios de o homem se conhecer a si próprio. Desde sempre que a arte se inspirou em lendas e mitos como pontos de partida para criações pictóricas. Os mitos constituem, muitas vezes, pilares ancestrais mais ou menos sólidos, mais ou menos credíveis, onde assenta a cultura de alguns povos. “Referente cultural, o mito actualiza-se, permanece vivo; por vezes adormecido, pode surgir numa erupção violenta e construtiva”, diz Victor Jabouille no livro Iniciação à Ciência dos Mitos.
A exposição “The Tailor” que a fotógrafa São Trindade apresenta na galeria VPF Cream Art, resgata o mito medieval de Lady Godiva que, embora longínquo geográfica e temporalmente, parece fazer sentido nos tempos que correm. Mas não é só de histórias e mitos que esta série fala. Ela discursa sobre os poderes da fotografia, sobre a construção de uma imagem e de como a fotografia, o desenho e a pintura se podem confundir sem nunca se tocarem.
São Trindade (Coruche, 1960) tem desenvolvido actividade na captação de imagens através da câmara fotográfica.
Por isso é uma surpresa saber que é licenciada em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Quem visita esta exposição percebe imediatamente a relação.

Mas comecemos por saber quem foi Lady Godiva e o que tem ela a ver com o assunto em questão. Diz a lenda que, na primeira metade do século XI, a bela Lady Godiva defendeu o povo de Coventry (Inglaterra), que sofria com os altos impostos do marido, o Duque Leofric.
Lady Godiva apelou tanto que ele lhe propôs um desafio como condição: que ela cavalgasse nua pelas ruas de Coventry. Ela aceitou e mandou todos os moradores fecharem-se em casa aquando da sua passagem. Somente uma pessoa (Peeping Tom) ousou olhá-la e por isso ficou cega. Leofric retira os impostos, cumprindo assim a promessa.
Voltando a Lisboa, passados mil anos, entramos numa sala com um cavalo em papier-maché e gesso no centro. Olhamos para trás e vemos Lady Godiva imortalizada em fotografia, numa imagem que se refere à icónica pintura realizada por John Collier em 1897. No entanto, se repararmos no pormenor da sela, as iniciais “ST” denunciam que Lady Godiva nesta foto é São Trindade, em auto-retrato. À volta, tudo o que se segue é um conjunto de imagens fotográficas que regista os processos de concepção e construção do cavalo.
Há alguns pontos, de entre muitos, a salientar como temas nesta exposição. Primeiro, o mito de que já se falou (será que São se propõe cavalgar nua por Lisboa se o governo baixar os impostos?). Segundo, a questão do voyeur, pela referência a Peeping Tom e sendo o acto de espreitar, de ver de forma encoberta, um dos princípios fundadores da fotografia. Terceiro: a noção de espaço. São vários os símbolos e ícones que São introduziu nestas imagens de modo a contar histórias da imagem. Entre eles há um espelho que amplia o espaço e duplica a virtualidade da fotografia. O espaço fotografado é o ateliê onde foi construído este cavalo, mas que alude ao ateliê como local da criação, de realização.
O registo a preto e branco salienta o desenho imposto nas imagens, um desenho feito de contastes e linhas marcadas. As imagens tornam-se cada vez mais abstractas e incorporam uma bidimensionalidade que nos faz hesitar entre a fotografia e o desenho. “The Tailor” é uma série de obras cerebrais, mas que ainda assim consegue encantar o observador.
Do mito de Lady Godiva aos mitos da imagem, São Trindade traz à VPF Cream Art uma das melhores exposições aí já realizadas. Convoca a técnica artística, a história de arte e a mitologia. A análise dos mitos, conclui Victor Jabouille, “permite, além da apreensão do homem individualizado, compreender o homem enquanto ser gregário, isto é, como sociedade. E são os mitos actuantes nas várias épocas que especificam o conhecimento da sociedade.”

Miguel Matos

domingo, 10 de outubro de 2010

Graça Morais - Retrato com raízes


Por Miguel Matos

A pintura de Graça Morais, ícone essencial da cultura portuguesa, constitui uma obra baseada na intuição, ligada aos sentimentos e às emoções. As terras agrestes e as gentes de Trás-os-Montes foram o ventre da gestação do universo pessoal e psicológico que faz parte das imagens que cria. São estas referências íntimas e ancestrais que fundam em si os alicerces de um caminho seguido ao longo dos anos com idas e voltas à fonte, à raiz.
A natureza é o lugar essencial onde Graça Morais apoia a sua verticalidade como artista plástica. A sua aldeia é a realidade à qual sempre regressa numa atitude de agarrar-se e largar-se de si para se entregar à pulsão que desse movimento emerge. Com base nas vivências de um meio outrora fechado sobre si, mas ainda hoje conservador dos seus traços essenciais, Graça Morais constrói um outro mundo, o seu próprio, com todas as referências etnográficas que recolheu durante a vida, mas que, após assimiladas e transpostas, não são já puras. São as suas, comidas, mastigadas e transformadas num organismo ele mesmo produtor de cosmogonias. É desta incerteza de origens, da mistura daquilo que é seu com aquilo que lhe foi dado a ver, viver e sentir, desta confusão referencial, que se cria uma obra particular, identificável com um povo, mas pertencente a um outro domínio que é o da vivência pessoal da criadora, codificada e revelada ao exterior através das suas obras.
O que Graça Morais nos mostra nas imagens que cria não são registos senão das suas incertezas, de momentos e lugares, de pensamentos, ânsias e por vezes raivas. Se bebe dos hábitos, lendas e histórias de Portugal e da região que a viu crescer para partir numa aventura quase mística, não é já do domínio da antropologia o que se sente numa pintura como esta. No entanto, esta ideia não é consensual. Críticos há que têm descrito a obra de Graça Morais como um lento trabalho de redescoberta de um imaginário popular, através de uma “recriação gráfica” e inventariando os rituais da gente popular, chegando mesmo a associar a autora a um registo neo-realista com uma vertente antropológica, que busca as raízes de uma memória rural1. Esta posição é contraposta por outros autores, que verificam no trajecto da pintora o desenrolar de um conjunto de idiossincrasias, mais do que de puras observações e registos. Considerar que o que Graça Morais faz é mera antropologia ou etnografia poderá resultar no perigo de reduzir a sua obra a apenas um dos seus elementos constituintes, sendo que a soma destes forma um corpo de trabalho revelador de um mundo próprio, enraizado num contexto rural real e experienciado pela criadora desde a infância. Apesar destas incursões, a recorrência de análises ligadas ao simples carácter de recolha, registo e representação de hábitos e costumes é refutada por opiniões opostas, como a de Sílvia Chicó2, que chega mesmo a situar a obra de Graça Morais dentro de territórios aparentados com os do Surrealismo. Não será uma opinião desconcertante, uma vez que o lirismo, o sabor onírico e até o absurdo, pela associação de díspares realidades, não são estranhos à sua produção artística desde sempre. No entanto, há que notar a ausência de um programa político ou ideológico nesta obra, o que, por si, anula a inscrição da pintora nas referidas correntes artísticas.

Mitos do Inconsciente





“A nossa primeira infância marca-nos a todos e eu fui muito marcada pelo que vivi até aos sete anos nesse lugar [a aldeia de Vieiro], que na altura não tinha electricidade, nem estradas nem telefones”, diz a pintora. “O isolamento era tanto que tudo o que eu vivi foi muito intenso. A relação com o meu pai, com a minha mãe e os meus irmãos, numa família numerosíssima e com aquela gente toda na aldeia, ficaram marcadas profundamente no meu pensamento e no meu coração. Sinto que hoje sou uma privilegiada porque tenho esse mundo dentro de mim.” É da transição das origens rurais e sociais ao lado mais efabulatório e metafórico que cresce a essencialidade da sua obra, também a um nível plástico em que é possível identificar traços fortes de inspiração neo-expressionista. O resultado é a criação de uma terra imaginada, situada “na ligação a um ambiente rural, sagrado, quase mítico, com um campo semântico em que mulheres, gestos, faces, animais, cenas de pastoreio e de caça e matanças se confundem e se agitam numa geografia mental e íntima”3. De facto, falar da obra de Graça Morais é inevitavelmente falar de uma geografia híbrida, que tanto tem de terra e carne como de imaginação e sonho. Uma mitologia uterina, um fio que vem do inconsciente e nos atravessa, embebido da identidade regional, sem que se consiga parar para observar a zona de charneira. E apesar dessa inconstância ontológica, mesmo assim, “penetrar na sua obra é entrar no mito dos rituais que ainda prevalecem no Portugal contemporâneo”, como disse Fernando Pernes4.
Se o mito é, por definição, uma construção social de um povo ou cultura específica, os mitos criados ou recriados por Graça Morais são de outra natureza, são já transformados. Constituem como que mitos pessoais - criações internas a partir de referências intrínsecas não só a si mas também ao meio onde nasceu e cresceu. E daí o afastamento dessa tal visão etnográfica, pois ela é aqui apenas o ponto de partida para uma viagem longa e incerta. Recorrendo assumidamente desta vez a referências da área da Antropologia, Misha Titiev salientava que os mitos são histórias que dizem “principalmente respeito a entidades ou acontecimentos sobrenaturais”5. O mito é como uma linguagem e faz parte do conjunto de sistemas simbólicos de uma comunidade. “Existem na cultura numerosos sistemas simbólicos que resultam por um lado da interacção social e, por outro, de manipulação cultural, constituindo como que uma apropriação do mundo. No entanto, estes sistemas simbólicos não são passíveis de uma leitura universal. Podemos observar que na sua grande maioria, apenas adquirem significado dentro das unidades culturais em que nascem. Na verdade, os símbolos são qualquer coisa de emocional (...)6.
Graça Morais apropria-se dos mitos (principalmente soteriológicos, morais e naturalistas), histórias, imagens e símbolos da sua terra e come-os, torna-os seus. Nesse processo, a pintora afasta-se do mero registo gráfico, da pura etnografia, situando-se no campo entre o sagrado e o profano, o factual e o inventado, o social e o pessoal. Perde-se dos seus suportes religiosos e antigos, afastando-se de referências narrativas para chegar aos territórios da ficção. É uma mitologia que nos envolve naquilo que de mais espiritual temos, enquanto faz uso de elementos simbólicos do quotidiano ou fragmentos de raizes esquecidas no subconsciente. Uma mitologia dentro daquela que é possível descortinar na definição de Victor Jabouille quando refere que o “mito recorda histórias de deuses e de heróis, tem uma tonalidade nebulosa, lírica, agressiva”. Palavras mais do que ajustáveis a uma possível descrição das obras desta artista. Ainda recorrendo a Jabouille, e fazendo o paralelismo com esta pintura, aqui, nestes mundos entre a terra e as gentes evocam-se “sociedades primitivas, grupos reunidos à volta da fogueira, contadores de lendas”7.
Nas imagens que Graça Morais nos apresenta, as narrativas aproximam-se frequentemente dos ritos, como atitudes, gestos e acções de que as suas personagens fazem uso no intuito de atingir uma espécie de harmonia com a natureza, uma via de contacto com o meio visível e invisível. Neste âmbito, e ao contrário do que acontece com os ritos nas culturas tradicionais, o contexto sacrificial simbolizado pela metáfora da caça, não serve já para apaziguar ou captar as entidades metafísicas. Na sua visão, estas actividades acabam por destruir o equilíbrio das forças da vida, mas constroem um padrão de atitudes com os quais uma comunidade se identifica. A pintora ora demonstra, ora questiona a legitimidade de rituais como os da caça e da morte, usando também esta actividade tipicamente masculina como metáfora para a forma como a mulher tem sido tratada nas sociedades fechadas rurais, extrapolando para a generalidade da sociedade em que vivemos. É uma pintora-perdiz, mulher vítima e animal caçado. A perdiz faz parte do vocabulário da sua pintura e aparece como símbolo da dor, do drama, da destruição, da perda... A perdiz e o coelho, como animais que simbolizam a caça, são também animais de extrema beleza. Graça Morais ao pintá-los transforma-os na tristeza da morte e na crueldade da perseguição. Ao aceitar a violência de uma tela que invade o espírito, assistimos à crueldade, à dureza e aos rigores de uma gente.

O Tempo num Rosto

É nas fendas produzidas pelo tempo no rosto seu e de sua mãe que Graça Morais se reconhece como ser mortal e se apercebe da dimensão do tempo. Aí se transformam estes entes num processo efabulatório a que não é alheia a auto-representação quer através dos elementos da cultura da sua região, quer através do seu próprio rosto, ou do rosto da sua progenitora, tal como também nos revemos nos rostos das mulheres da aldeia. É na interpretação destes rostos que a pintora invoca obsessivamente, que se pode encontrar o poder da metáfora, porventura surrealista, do crescimento de raizes ou outras formas vegetais a partir da pele de corpos envelhecidos e ainda assim plenos de vida. São metamorfoses, estas associações tão poéticas como as passagens e transições pelas quais o ser humano caminha ao longo das diferentes fases da vida, principalmente num meio em que existe a calma para se contemplar essas mesmas modificações. Assim, este é também um discurso sobre o corpo, a morte e o envelhecimento físico. Para Pere Salabert, a beleza prodigiosa do corpo humano, baseada na funcionalidade e na limpeza, na ordem e na completude das formas, já não esconde, antes pelo contrário, abre-se a uma deterioração que transformará o belo em monstruoso através da desordem e da deformidade. Entre um e outro extremo? Medeia o espaço que separa o mundo do imundo, a juventude da velhice, a esperança da prostração8. Na pintura de Graça Morais a deterioração da carne não é exactamente um sinal de decadência, mas sim de permanente devir e de
acumulação de experiências transformadas em sábia quietude. É também, e acima de tudo, vida. Assim se repetem expressões carregadas em rostos familiares para a artista e que se relacionam com o observador pela carga de algo inominável a que apenas acedemos superficialmente, mas que intuimos interiormente. Porque, como disse Matisse, “no desenho de um rosto, não interessa a justeza das proporções, mas uma luz espiritual que nele se encontra reflectida”9.
A prática artística de Graça Morais caracteriza-se por uma indefinição permanente, uma constante fuga à catalogação dentro de “ismos”. Até mesmo na série “As Escolhidas” (1995), em que a figuração aparenta ser mais ligada a um registo do quotidiano, nada há de realista ou naturalista. Para além da referida ausência de conotações políticas nestas obras, a visão de Graça Morais sobre estas mulheres é profundamente pessoal, sem agendas ou “recados” sociais ocultos. Nestas mulheres, o que impressiona o observador é a atitude do corpo, os gestos, os movimentos do quotidiano. É o caso destas pinturas e desenhos que evocam o dia 1 de Novembro, dia de todos os santos. É de tradição nas aldeias de Portugal que as mulheres, neste dia, cuidem das campas dos familiares e amigos falecidos. Trata-se de um trabalho exercido pelas mulheres, que a artista interpreta, recorrendo a estes rituais de forma descontextualizada, salientando apenas posições e gestos, abstraídos de qualquer referência espacial. Nesta descontextualização, o rito da decoração das campas com flores confunde-se com o trabalho da lavoura. Somos levados a tomar os ritos dos defuntos, da morte, pelos ritos da terra, da vida. Por entre estas pinturas de sentimento metafísico, nascidas de uma observação silenciosa, uma delas marcou especialmente a artista: “esta mulher, que eu pintei várias vezes, estava a remexer na terra com um ar concentradíssimo. Passado pouco tempo ela morreu e foi para essa mesma campa que tinha enfeitado”. A dimensão dos movimentos e a contenção dos gestos das personagens é aqui explorada em pinceladas rudes, com uma grande intensidade de luz e de texturas num ambiente de silêncios expressivos.

Metamorfoses

Não é só nos rostos que podemos testemunhar as metafóricas metamorfoses de seres. Sendo os humanos como bichos, não é só a passagem do tempo o que estas metamorfoses evocam, mas também histórias e traços de personalidade que caracterizam as personagens. Nas rudes faces pintadas e desenhadas por Graça Morais, o que lhe interessa é a transmissão de uma sensação, de uma expressão, um sentimento, uma aura ou atmosfera. É a representação de uma intensidade, e não um retrato, aquilo que nos é oferecido. Porque Graça Morais não retrata. Recria. Retém as imagens de que se apropria e que imprime na sua imaginação e é com elas que trabalha cenas e situações que pertencem já ao domínio da sua criação.
“Por vezes olho para as pessoas e vejo bichos, sobretudo em lugares onde a minha memória activa o que vai vendo”, diz a Graça Morais. Os gafanhotos são insectos que possuem uma carga simbólica, tal como todos os seres transmutados dentro das pessoas que pinta. “Tenho uma caixinha cheia de gafanhotos porque em todos os Verões há sempre um que me entra em casa. Sempre ouvi falar do gafanhoto como um insecto ligado às pragas. Mesmo na Bíblia, sabemos do papel do gafanhoto como um bicho traiçoeiro que devasta tudo por onde passa. Comecei a desenhar gafanhotos e a sobrepor figuras numa atitude de trabalhos agrícolas. Imagino que as pessoas podem ser como gafanhotos, não a destruir mas a trabalhar e a produzir”. No recurso à representação de elementos pertencentes ao meio natural, como ramos de árvores, flores, legumes, batatas ou frutos, há que notar que estes são já objectos elevados ao estatuto de ícones. É através deles que sabemos que a criadora está a referir-se a uma altura específica do ano. Não são narrativas mas sim referências que nos permitem organizar memórias de uma possível história mental. “É o meu lado mais solar e simples”, diz. “Essas imagens muito leves evocam os dias quentes. Mas não há inocência nisso. Faço-o para marcar um tempo. Há um calendário ligado a um diário que faço em livros que vou escrevendo e, de vez em quando, há uma página em que desenho uma dessas representações da natureza. É um livro de horas”. Um registo da passagem do tempo ligado à sua vivência e transmutável na vivência de cada um.
A passagem do tempo é vida e morte e é uma dimensão quase sempre presente na pintura de Graça Morais. No meio rural, isto acontece com uma aceitação maior, da mesma maneira como as flores murcham e as árvores se despem. A morte é, no campo, uma realidade tão intensa e dramática como em qualquer outra parte, mas existe aí, sentimos no discurso plástico e psicológico da artista, um assumir mais vincado do corpo e da sua mortalidade.

Erotismo Proibido, Corpo Urgente



Uma série de dez pequenos desenhos em grafite sobre papel (1984) é o testemunho mais íntimo e directo do erotismo que Graça Morais imprime a espaços na sua obra. O erotismo em Graça Morais é um erotismo de alguém que se deixa encantar pela magia do inexplicável. Um corpo à procura de outro corpo, no entendimento da expressão de Maria João Ceitil. Um corpo que não se prende em absoluto às ideias de verdade ou ilusão. É “a dinâmica do desejo, do amor, que nos deixa loucos, encantados, enfeitiçados, irracionais. (...) um corpo à procura de outro corpo: a magia, o feitiço, o poder irracional e absoluto que esse outro corpo exerce sobre nós. A magia do contacto. A magia do afecto.”10 É nessa irracionalidade que se convocam forças do indizível e isso transmite-se na desconstrução formal das figuras que se insinuam de forma mais ou menos directa, mais ou menos sexual.
A dimensão erótica do ser humano em contextos socialmente mais fechados é sempre um mundo quase hermético de mistérios e crenças. É isso que vemos nestes desenhos. “Eu acho que aí o erotismo surge como um exercício de castigo, de recalcamento”, explica a artista. São figuras reprimidas e têm a ver com a inquietação que Graça Morais sentia nesta época em relação à presença do erotismo na arte: “fui criada com os maiores mistérios à volta do sexo e do erotismo, com todas as proibições que a minha educação católica impunha”. O sexo e o erotismo levam consigo conotações negativas, trazendo a nós termos como “magia”, “feitiço”, “encantamento”, dimensões do profano e do herético. “Termos imemoriais que convocam algo de primitivo e de demoníaco”11.
Nestas imagens surrealizantes, não podemos atribuir identidades ou géneros às figuras. Tudo é ambíguo e em devir metamórfico entre o humano e o bicho. Os animais nos quais os seres humanos se vão transformando são aqui seres exóticos como tigres ou leões. Isto relaciona-se com o tipo de imaginação que a pintora desenvolveu aquando dos tempos em que viveu em África. É o lado selvagem e devorador intrinsecamente ligado ao instinto erótico. É quase como tornar visível a urgência do corpo e da irracionalidade que isso implica. “É o erotismo visto como uma expressão do corpo humano que tem de ser reprimida e por isso esses desenhos têm a ver com a impossibilidade do amor, com a impossibilidade de dois corpos se juntarem e com a inquietação que eu sentia nessa altura”. O carácter proibido e a atracção silenciosa que o erotismo exerce é tema que subjaz nestas obras. São cenas densas, carregadas, quase como rituais religiosos. Como se o erotismo fosse não tanto um prazer como uma inevitabilidade que é necessário mas impossível reprimir ao fazer parte da nossa existência.

Outros Temas, Outras Terras

Ainda como testemunha de uma das fases mais marcantes do trabalho de Graça Morais, figura o quadro “Mulher e Guernica”, de 1982, altura em que, após admirar directamente a obra maior de Pablo Picasso, ela pega no drama e “reconta-o como se fosse um mito e naquilo em que por dramatização comum dois povos podem entender-se”12. Trata-se aqui de uma citação directa, mas não apenas uma apropriação, e sim uma criação que recorre a elementos directamente assimilados. Não é uma homenagem a Picasso, mas sim um confronto de universos. E de Picasso, não é pecado roubar. Nada de estranho no contexto de um artista que tanto praticou a chamada “Pintura d’après”13. Mas a Graça Morais não interessa o repescar de ícones da história de arte para reiventar a pintura. Também não é um sentido de actualização, de fazer “Guernica” voltar à contemporaneidade. É mais um sentido de identificação entre estilos e a extracção de novos sentidos subjectivos a partir do seu confronto. É uma realidade animal e agressiva que evoca o drama humano. Estes quadros representam o drama das mulheres num meio rural fechado, os recalcamentos, o erotismo reprimido, a violência doméstica sobre elas exercida em termos físicos ou psicológicos.
No seu trajecto de vida, Graça Morais sente-se uma nómada. É-lhe impossível permanecer muito tempo no mesmo lugar. Na série “Cabo Verde” (1988/89), a pintora revisitou mais uma vez os mitos ligados à natureza e aos animais exóticos, como os répteis (exponenciados numa enorme cobra imaginada). Estes quadros resultaram de uma estadia de dois anos no local, interrompida com idas e voltas. A rudeza, o lado agreste e quase inóspito das paisagens de Cabo Verde, aliados à simpatia e simplicidade das gentes captaram a atenção e despertaram a imaginação da pintora. Paradoxalmente, havia algo comum a Trás-os-Montes no seu relevo acidentado. “A minha pintura de Cabo Verde é pouco sobre o mar, mas muito sobre as pessoas. Fotografei, desenhei e pintei muito...”, explica. São imagens de grandes dimensões com um carácter mágico e com uma paleta cromática composta por tons quentes de terra e fogo. Nelas afrontam-nos enormes animais como cobras e elefantes imaginários, quase monstros resultantes de um espanto do confronto com o exótico que lhe fez lembrar os tempos em que viveu em Moçambique (1956-58). “África é um território que exerce sobre mim um fascínio muito grande e os africanos são pessoas muito doces,
afáveis... muito humanas”, diz. As terras de Cabo Verde originaram uma série quase delirante, talvez numa tentativa de “procurar em Cabo Verde a África que eu perdi na minha infância”.
No ciclo da vida e da morte, carne e corpo são convocados na roda das estações. Graça Morais testemunha e constrói com vivências pessoais a sua fábula, o seu mito. Fica a pintura e a sua reverberação dentro daqueles que se sentirem abertos - e preparados - para a receber.

1 Almeida, Bernardo Pinto. Arte Portuguesa da Pré-História ao Século XX – Vol.19 – O Modernismo II: O Surrealismo e Depois. Fubu Editores, Lisboa, 2009.

2 Chicó, Sílvia. Definição de um Caminho in Graça Morais. Ed. Quetzal/Galeria 111. Lisboa, 1997.

3 Ramos, Ana Filipa. http://www.camjap.gulbenkian.pt/l1/ar%7BD2B27546-03B0-4185-A5F8-0B5ACC3E203C%7D/c%7B3e784961-393d-491b-a950-fbf661dfa281%7D/m1/T1.aspx

4 Pernes, Fernando. In Catálogo Graça Morais. Ed. Sociedade Tipográfica S.A., Lisboa, 1992

5 Titiev, Misha. Introdução à Antropologia Cultural. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1992

6 Lima, Augusto Mesquitela, Introdução à Antropologia Cultural. Editorial Presença, Lisboa, 1991

7 Jabouille, Victor. Iniciação à Ciência dos Mitos. Editorial Inquérito, Lisboa, s/d

8 Salabert, Pere. Pintura Anémica, Cuerpo Suculento. Ed. Laertes, Barcelona, 2003

9 Hess, Walter. Documentos Para a Compreensão da Pintura Moderna. Livros do Brasil, Lisboa, 2001

10 Ceitil, Maria João. Pôr o Corpo a Pensar. ISPA, Lisboa, 2003.

11 idem

12 Azevedo, Fernando. Graça Morais, Ainda o mito e a Graça in Colóquio Artes, número 72, Fundação Calouste Gulbenkian, Março de 1987.

13 Ferreira, António Quadros. Depois de 1950. Edições Afrontamento, Lisboa, 2009.

A doméstica pintura selvagem de Sara Maia



Há uma macaca à solta no Museu da Cidade e bichos humanos com relações disfuncionais. Mas não vai ser necessário entrar de catana em riste e não vai encontrar o David Attenborough a falar sobre as estranhas criaturas sociais de Sara Maia na exposição “Doméstica Vida Selvagem”...

Estas pinturas e desenhos falam de relações humanas distorcidas, até grotestas. Qual é a história subjacente a elas?
Acho que o título diz logo alguma coisa sobre o que quis explorar acerca da diferença entre o lado mais artificial ou racional e o lado mais sensitivo ou animal que temos em nós. É uma realidade que tenho explorado constantemente no meu trabalho.

Esse tipo de ideias vem no seguimento da exposição “I Love You Dysfunctional”, que fizeste há dois anos na Ermida de Nª Srª da Conceição...
Sim, as relações são sempre funcionais e disfuncionais ao mesmo tempo. Acho que só alguém que seja bastante hipócrita é que pode negar isso. Mas aqui foco mais o facto de as pessoas passarem a vida a negar o seu lado animal, vivendo num plano quase artificial... Vivemos em prédios, com alguma segurança, mas se vivêssemos ao ar livre podiamos ser como macacos, digo eu.

E falando em macacos... De que trata esta história?
Há mesmo uma macaca nesta exposição que vai vestir um vestido de princesa. Muitas vezes tentamos vestir ou despir papéis. Onde é que fica a nossa essência no meio disto tudo? A ideia começou com um conto português de tradição oral. É um homem que se apaixona por uma macaca e gosta dela como ela é. Um dia apresenta-a à família e é muito embaraçoso porque toda a gente começa a rir por ela ser uma macaca. Ela sente-se mal com isso e quer ser aceite, o que é uma coisa bastante comum a todos nós. Propõe-se então levar uma chicotada para se transformar em humana.

Isto tem a ver com o teu interesse por coisas obscuras?
Mas isso não é nada dark, até é bom uma pessoa gostar de alguém por aquilo que ela é...

Esse conto transpõe-se para telas e desenhos...
São quase 12 telas, algumas delas que transitaram da exposição “I Love You Dysfuncional” e desenhos. Alguns deles não são novos mas nunca viram a luz do dia. Foram feitos quando eu tinha 16 anos, se calhar não seria suposto eu mostrá-los aqui e agora, mas como é um tema que acompanha tudo aquilo que faço, achei interessante mostrar a génese de tudo.



Insistes em trabalhar a pintura em exclusivo, o que parece ser uma coisa fora de moda, obsoleta. E, pior ainda, trabalhas a narrativa dentro de um registo figurativo. São muitos pecados para uma artista jovem. Como te atreves?
Não me quero armar em D. Quixote, em defensora da pintura. Acho que uma tela em branco é uma possibilidade tão grande como outra coisa qualquer. Nunca me faltou coisas para dizer. É um meio como outro qualquer, se resultar enquanto comunicação não acho que seja minimamente obsoleta. Para mim a arte é comunicação, essencialmente. Não é o meio em si que legitima a obra, mas sim o que funciona entre quem vê e quem faz.

Mas não te sentes um pouco solitária nessa opção?
Sim, sinto. Quando me perguntam o que é que eu faço e eu respondo que sou pintora, as pessoas acham que tenho uma grande lata de fazer pintura quando tudo já está feito. Mas eu oiço isso tantas vezes que parece que fazer pintura é um insulto nos dias de hoje. É quase como se a pintura fosse uma coisa sagrada. Como se, por ter uma história tão longa, já não se pudesse acrescentar mais nada.

Consideras-te uma outsider?
Sou uma outsider julgada como uma clássica. Mas, ao mesmo tempo isso é muito mais outsider do que se estivesse a fazer coisas de acordo com as tendências, como a instalação. É engraçado pensar naquilo que é clássico, afinal.

Nestas últimas telas estás a modificar a tua técnica e a tua linguagem... Há mais cores planas, menos atenção aos fundos, uma figuração muito recortada e estratégias da pintura naïf, como a desproporcionalidade entre elementos. Isso afasta-te das relações e semelhanças que alguns apontam entre ti e Paula Rego, por exemplo.
Quando eu exponho em França dizem que faço lembrar Matisse. Em Espanha comparam-me com outros artistas, mas eu acho que isso tem a ver com a história da pintura e com a necessidade que as pessoas têm de enquadrar as coisas e colocá-las em caixas. Isso para mim é honroso, mas ao mesmo tempo é pesado. É hipócrita negar que se tem referências, mas não quero que pensem que faço copy/paste porque é um trabalho muito pessoal. E não é só à pintura que vou buscar referências, mas também ao cinema, à dança e à vida, sobretudo. Às vezes acho que me chamam “a segunda Paula Rego” de uma maneira muito mázinha. Não sou a segunda nem a primeira nem coisa nenhuma.

Miguel Matos

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sara Maia - Tainted Love


Todo o ser humano vive em ligação emocional com outros. Acredita absolutamente na sua autodeterminação, mas tende a ignorar que se alimenta dos afectos que estabelece. Nessa ilusão de sabedoria pessoal, engana-se. Ao tentar superar o seu semelhante, cai na sua própria clausura. “Que sabemos sobre nós próprios?”, perguntava René Huyghe. “Muito, pensam os presunçosos; bastante pouco, dizem os sensatos. Que peso terá o que conhecemos de nós perante o que comportamos de irrealizado ou possível?”1 Perante estas perguntas, as respostas apenas poderão emergir a partir da aceitação de que há “coisas” que se passam em nós. O corpo continua a ser esse desconhecido com quem vivemos e que dentro de nós secretamente se cogita. No interior, células e órgãos crescem, desenvolvem-se e morrem, independentemente da nossa vontade e do nosso conhecimento. Um só órgão pode conter em si a ameaça que poderá destruir o corpo que o alimenta. A dor e a febre são os sinais de comunicação que nos permitem ter conhecimento de que algo de errado se passa no interior do corpo que, apesar de nosso, nos é estranho e de tal forma inacessível como as camadas inferiores do subconsciente. Há emoções e pensamentos que só se revelam no imprevisto. Nesse espaço nascem sentimentos apenas identificáveis após a sua subida a níveis mais concretos de pensamento. Como se existisse um inconsciente físico e um inconsciente mental, com possíveis interpenetrações. Huyghe diz ainda: “É evidente que fazemos uma ideia de nós, com a qual nos satisfazemos e pela qual gostamos de substituir os enigmas que subsistem no fundo do nosso ser; a nós, como aliás aos outros, propomos com complacência esse personagem que criámos e que em parte é verdadeiro, sob a pressão da nossa própria consciência, mas mais ainda sob a dos nossos desejos. (...) O que desejamos encobre e deforma o pouco que sabemos, e o que sabemos mergulha num vasto desconhecido, e que já não é mais do que a tradução desajeitada ou tendenciosa”2.

A pintura de Sara Maia conta histórias para adultos com raízes na infância, repletas de situações bizarras que não entendemos mas com as quais nos identificamos. Ou talvez as possamos reconhecer... São relações de poder, prazer e dor. São ligações de carne e de vísceras. Dependências emocionais e traições pessoais. Marcas sentidas que se vêem na pele e esgares incertos que interrogam o espectador. Não é a pintura o que Sara Maia questiona, mas sim a vida. A artista afasta-se da suposta contemporaneidade que insiste em sabotar a realidade, para trazê-la aos nossos olhos, já de si deformada. Essa distorção passa por um constante mal-estar nos corpos que vemos representados. Um mal-estar que começará na desproporcionalidade física e grotesca das personagens, o que se adensa nas expressões oprimidas e nos gestos espartilhados ou mutilados. “O corpo é um registo de emoções”, diz a artista, que não põe de parte um elemento de rendenção que se esconde por detrás de cada obra. Nesse sentido, cada gesto tem múltiplos significados e é testemunha de um sentimento ao qual não nos é permitido aceder com clareza. Fica no silêncio interpretativo que se estabelece empaticamente entre a obra e o observador. Como um segredo...


As personagens que Sara cria evocam a sua linhagem, vinda de veias de Paula Rego, palcos de Francis Bacon ou dolências de Frida Kahlo. Sara Maia apresenta uma pintura psicofisiológica ou psicossomática - de desordens físicas, psíquicas e plásticas. A base orgânica das narrativas de Sara reporta a uma instabilidade psicológica que se reflecte em desordem física. O psicossomático pode referir-se a uma doença crónica interna ou, por exemplo, às consequências biológicas do desamparo. Ora, se os sentimentos minam o corpo com as suas maleitas, é da intensidade daqueles que se faz o grotesco na pintura de Sara Maia. Não se trata de uma figuração distorcida pelo mero prazer da desconstrução. Por outro lado, não se pense que esta demonstração carnal do mal-estar acontece inevitavelmente, pois no mundo criado por Sara, as personagens sabem que têm o poder de transformar as situações em que se encontram. Chamemos-lhe uma “maleita voluntária”.


Freud dizia que o artista sonha acordado. Nesses sonhos aos quais dá forma, sabe transformar a sua experiência individual em algo partilhável por outros, acrescentando-lhe os factores necessários para que, ao mesmo tempo que materializa fantasmas, proporcione uma experiência estética, uma fonte de prazer. Nisto, dissimula o que há de suspeito, de sinistro na imagem. Procede a um recalcamento embelezado. “Quando conseguiu realizar tudo isso, fornece aos outros o meio de aurirem novo refrigério e consolo nas fontes de prazer, tornadas inacessíveis, do próprio inconsciente”3. Estas ideias são importantes de considerar se as encontrarmos à luz da teoria de Eugenio Trías quando diz que “a beleza é uma aparência e um véu que escamoteia a nossa visão de um abismo sem fundo e sem remissão no qual toda a visão cede e se quebra todo o efeito de beleza”. Para este autor, a arte é sempre ritual: “promove uma descida ao inferno, uma viagem ao imaginário e ao horror, mas essa viagem reconduz de novo ao quotidiano, de tal maneira que o sujeito se encontra, através do seu percurso, transformado. Não, decerto, fortalecido, mas posto à prova”4. No caso da pintura de Sara Maia, há certamente um efeito estético e, podemos até falar da beleza, de humor e do sentimento da fruição da imagem. No entanto, essa é apenas uma camada que nos permite aceder mais facilmente a um discurso de crueldade, de relações sinistras, de poderes perversos. Sexo, amor, família... é o poder que está em causa entre as personagens que interagem nos diferentes “cenários” das “caixas sociais” por onde nos movemos.


Em “Diálogo no Pântano”, Marguerite Yourcenar escolheu narrar os caminhos de duas personagens enleadas nas suas próprias lutas de poder. Nunca nos é permitido saber ao certo o que se passa entre o homem e a mulher que, no fundo, se aprisionam a si próprios. Este universo não é estranho ao percurso que Sara Maia tem desenhado nas histórias que conta em telas e papéis. Por isso, não é de estranhar que a pintora se tenha lançado a este desafio e nele tenha espelhado os intrincados nós com os quais se constroem as relações. Quem controla e quem se deixa controlar? Qual deles possui o outro afinal, se não sabemos quem obtém o prazer e nunca saberemos quem vence o jogo? Resta o corpo como testemunha das vicissitudes, o rosto como espelho mentiroso. Cada personagem funde-se na outra em significados duvidosos que nos são dados a interpretar. Nisso aplicamos a nossa própria experiência e é então que os quadros de Sara assustam, pois fazem-nos chegar a ver o que somos, sem o reconhecermos. Nestes trabalhos, as personagens movem-se por fios invisíveis, são marionetas dos outros ou de si próprias. Cada personagem inspira o ar de outra, vivendo através desse sufoco e alimentando a outra com o seu ar já usado. “São relações de poder emocional, jogos em que quem é aprisionado se torna dependente dessa relação”, diz Sara.


As relações humanas são ligações maculadas. São interacções de poder e dominação. No amor há um martelo e uma bigorna, como diziam as personagens de Sacher-Masoch: “(...) Deve-se somente ao egoísmo do homem, o querer guardar a mulher, enterrando-a como se fosse um tesouro. Todas as tentativas de contrair votos, fazer contratos e cerimónias sagradas falharam em trazer permanência ao mais inconstante aspecto da inconstante existência humana, nomeadamente o amor...”5. Podemos escolher ser o martelo ou a bigorna, ou podemos alternar entre dominador e dominado consoante as circunstâncias. No fundo, entramos num jogo que se estende aos vários domínios da vida – da amizade ao amor até ao quotidiano num pequeno universo de ideias e traumas, de leis e crenças pessoais.


Entre morte e vida, entre loucura e sanidade, entre desejo e raiva. Estas histórias passam-se em limbos. Nada é isto e nada é aquilo. “Não acredito em dogmas”, diz. Qualquer realidade tem o seu contrário e pode-se transformar nesse contrário. A passagem entre estádios decorre da transformação ou da decadência. Passa por cordões umbilicais e intestinais ou digere-se através de bocas de insectos. Sara Maia cria uma visão da metamorfose ao questionar as fronteiras físicas e sociais, quando uma coisa começa a ser o seu oposto, mas ainda não o é.


Sara Maia cultiva uma paixão pelo obscuro e pela ironia, num registo neo-expressionista que utiliza estratégias plásticas evocativas de uma certa bad painting, ao subverter as noções “ideais” de perspectiva e de proporção. Na sua pintura e desenho, a técnica obedece mais à emoção do que à lógica e nisso resulta o embate emocional com que algumas imagens se apresentam ao observador. É uma obra pouco domesticada. Depois de tantas mortes cíclicas da pintura, ela afirma-se no pecado da narratividade, insistindo num figurativismo quase clássico. Sara Maia é uma rebelde ao optar pelos cânones chamados mais tradicionais numa disciplina considerada em desuso por quem se acha à frente nas tendências. Esta ortodoxia de ser pintora é hoje ousadia, afronta.




Miguel Matos



1Huyghe, René. O Poder da Imagem. Edições 70, Lisboa, 1986.



2idem



3Freud, Sigmund. Teoria Geral das Nevroses, in Introduction à la Psychanalyse, trad. de S. Jankélévitch. Payot, Paris, 1932.



4Trías, Eugenio. O Belo e o Sinistro. Fim de Século, Lisboa, 2005.



5Sacher-Masoch, Leopold. Vénus em Peles. Vizzeo Edições, Parede, 2003.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Paula Rego e Victor Willing - Entre Marido e Mulher...

Por Miguel Matos

Paula Rego renova a Casa das Histórias com uma retrospectiva da obra do seu marido, o artista britânico Victor Willing (1928-1988). Uma exposição de 80 pinturas e desenhos que é uma novidade em Portugal, país onde o pintor trabalhou e viveu entre 1957 e 1974. Willing começou a pintar pensando que seria sempre um retratista, mas a verdade é que passou também por fases abstractas, expressionistas, gestuais, numa atitude original e independente. De personalidade solitária e com ideias fortes, era um artista diversificado tanto em técnicas como em temáticas e estilos que desenvolvia em séries longas e demarcadas. Um homem de talentos teóricos e intelectuais, com obra editada de crítica de arte. Uma pessoa que, como diz Paula Rego, “não era para brincadeiras...”






Esta é a primeira vez que se realiza em Portugal uma exposição do trabalho de Victor Willing, artista quase desconhecido por cá. Quem foi este homem?
O Victor Willing, Vic para mim, foi meu colega na Slade School of Fine Art, em Londres. Foi lá que o conheci. Éramos os dois estudantes, mas eu tinha 16 anos quando fui para lá e ele era oito anos mais velho, já era casado e com filhos... era um intelectual admirado pelos colegas porque sabia muito sobre pintura e era muito original. Lia muito e era diferente dos outros alunos que eram muito mais ingleses, mais... provincianos, you know... ele sabia muita coisa e era muito amigo do Francis Bacon, até viveu em casa dele. A maneira de pintar na Slade era muito rígida, tinha que ser tudo medido e marcado. Era muito metódico, you know... Nesta exposição há um quadro que ele pintou ainda na escola e vê-se que está tudo com as proporções certas, e a tendência que ele tinha para a escultura nota-se na noção de espaço, que era muito importante para ele. Depois, mais tarde, veio comigo para Portugal.
Então, sendo ele casado, largou tudo para ficar consigo...
Mas custou!...

Mudaram de vida e vieram para um país que a nível artístico não oferecia boas condições...
Ó meu filho, mas na Ericeira era tudo diferente. Era só pescadores e mulheres a pedirem dinheiro para fazerem abortos e coisas assim, coitadas. Era um sítio muito bonito. Tinha lá uma quinta e pintávamos os dois numa adega muito grande que dividíamos ao meio com uma esteira. Ele pintava de um lado e eu do outro.
Trocavam experiências, conhecimentos, técnicas?
Não... Eu não sabia nada! Por exemplo, ele tinha uma grande paixão por Matisse e eu não gostava e não conseguia fazer aquilo. Enfim, ele percebeu que nós éramos completamente diferentes. E isso é uma coisa muito boa porque ele sempre me ajudou e respeitou na diferença. Estivemos na Ericeira, mas depois voltámos para Londres porque não havia ninguém com quem ele pudesse falar sobre pintura, a não ser eu, que não sabia nada.
Numa conversa que tivemos há tempos, a Paula disse-me que não sabia pintar, o seu marido é que sabia. Como assim?
Eu sou uma desenhadora, no fundo. Não sou uma pintora. Desenho, faço bonecos. Faço quase tudo com pastel seco. Até pintei durante uns tempos com acrílico, mas óleo é uma coisa que me repugna. Ainda vou experimentar. Porque não? Mas para mim, o pincel é uma coisa muito mole e eu gosto de carregar com o lápis. Gosto de desenhar e de pôr cor às vezes, mas as duas coisas nunca vão bem juntas. No caso do Vic, ele pensava como fazia. E depois teve uma altura em que tinha visões. O que ele queria era fazer quadros que se parecessem com desenhos. Mais livres, mais espontâneos.
Mas ele pintava a óleo, uma técnica demorada que não permite tanto essa espontaneidade...
Pois é, mas houve uma altura, quando ele já sofria de esclerose múltipla, em que olhou para a parede e viu o quadro que ia pintar. Então foi só copiar aquilo que estava a ver. Era mágico, uma coisa que não tem explicação. Ele pintava porque conseguia ver... mais tarde quando deixou de ver já visualizava apenas. Fazia o desenho espontaneamente e criava estas construções e coisas periclitantes.
Ele nunca conseguiu ser completamente abstracto nem completamente figurativo, oscilando e misturando esses elementos...
Era uma figuração inventada, como fazem os grandes.

O que é que Victor Willing buscava com a pintura?
O que ele fazia tinha muito a ver com a solidão. Coisas fechadas no fundo de um quarto...

Mas como pessoa ele reflectia essa solidão, ou era um sentimento que exprimia apenas pela arte?
Era uma pessoa solitária. Foi criado pelos pais, que eram militares. Nasceu na Alexandria, no Egipto. Era filho único e uma vez, em pequenino, tinha três anos, saiu da cama e o pai foi encontrá-lo no deserto a enxotar abutres de cima de um burro. Acho que isso ficou-lhe. Depois veio para Portugal, está-se a ver... não era abutres nem burros, mas era uma coisa parecida.

Aqui também não faltam abutres...
Ó lecas!

Embora ele seja um artista desconhecido em Portugal, também há poucos que conheçam a sua obra em Inglaterra. Como se explica isso?
Porque ele morreu e expôs em várias galerias mas sem grande projecção. Era muito admirado por algumas pessoas, uma minoria. Depois morreu, e pronto. Por isso, fazer aqui a sua exposição é para mim muito importante. Uma das razões de ter esta Casa das Histórias foi ter a oportunidade de mostrar o trabalho dele, fazer justiça. Mostrar coisas tão estranhas, macabras, belas e originais. Admiro-o muito, ele ensinou-me tudo. E incentivava-me a fazer trabalhos mais políticos, por exemplo. Ele escreveu sobre mim melhor do que ninguém. Percebia muito bem o que eu fazia e ajudava-me muito. Quando ele estava já na cama, em casa, eu tinha um ateliê fora. Depois de fazer quadros grandes, enrolava--os trazia-os para casa, pendurava-os ao pé da cama para ele me dizer se estavam bem ou mal. Mas depois quando ele morreu, olhe, fiquei a fazer isto sozinha. É uma chatice...
A renovação da Casa das Histórias passa por outra exposição, em que mostra obras suas realizadas nos anos 70.
Uma vergonha! Uma porcaria... são coisas muito feias, muito esquisitas, uns desenhos a preto e branco que eu fazia... como a fantochada da corrida às urnas nas últimas eleições depois do Salazar. Para além dessas coisas políticas, há alguns desenhos sobre a casa da minha tia em Cascais. Alguns quadros eram mais abstractos mas todos contavam histórias.

Já não gosta deles?
Agora já não me importa tanto, já não tenho tanta vergonha de mostrá-los. A gente tem que tomar responsabilidade por aquilo que faz. São coisas más, mas a gente tem que trabalhar e continuar como pode. Se é uma vergonha, quem fez fui eu e não outra pessoa.

E nunca pintou por cima de nenhum?
Não, eu fazia tudo à mostra. Não escondo nada, as asneiras que fiz estão todas à vista.

Há algumas obras que se referem a contos tradicionais. Fale-me delas.
Isso foi uma daquelas coisas apoiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian. Eu não tinha dinheiro nenhum e fui à Gulbenkian dizer que precisava de dinheiro e que não sabia mais o que fazer. Eles disseram para eu pensar numa ideia e então lembrei-me que gostaria de estudar os contos tradicionais portugueses e de outros países. A Gulbenkian atribuiu-me um subsídio todos os meses e eu fui para a biblioteca do British Museum, onde passei o tempo todo a ler livros antigos. Depois, fiz os desenhos que são ilustrações dos contos como a Branca Flor ou As Três Cabeças de Oiro. O Gato das Botas não é português mas podia ser... fiz isso e dei tudo à Gulbenkian. De facto, eu devo tudo à Gulbenkian, como muita gente neste país.

E há mais obras que possa salientar nesta mostra?
Há os bonecos que fiz, como a Princesa Grávida, por exemplo...

Há uma história muito engraçada, precisamente com essa Princesa Grávida, à porta da Galeria 111. Pode contar-nos?
Eu tinha feito um boneco de uma menina, uma princesa toda deformada, mas não era grotesca. Tinha umas bochechas grandes e uma barriga, porque estava grávida. Eu ia para a Galeria 111 expor aquilo e levava-a ao colo pela rua abaixo. Passou por mim uma mulher que gritou “ai, Nossa Senhora!!!” e benzeu-se. Pensou que era a sério (risos).

Esta nova temporada da Casa das Histórias Paula Rego é muito especial porque, para além de mostrar pela primeira vez a obra do seu marido, são expostas as obras dos dois no mesmo espaço. É como um reencontro?
É uma exposição única. Espero que venham cá pessoas de fora vê-la e depois quero levar a exposição para o estrangeiro. Ele merece ser mais divulgado porque a sua obra é muito moderna, não é datada. Podia ter sido feita há pouco tempo e isso é extraordinário. Fico muito contente de vir cá visitá-lo... a gente fica assim... não sei... talvez ele fale comigo. Se eu fosse bruxa....