domingo, 23 de maio de 2010

Catarina Saraiva - Os Espelhos Impossíveis


“O reflexo perguntou ao reflexo quantos reflexos o reflexo tem e o reflexo respondeu ao reflexo que o reflexo tem tantos reflexos quantos reflexos o reflexo tem”. Este quebra-cabeças em forma de lengalenga é a frase que recebe quem entra na Galeria Módulo para ver a exposição “Espelho (meu)” de Catarina Saraiva. São letras negras que formam palavras. Palavras essas feitas em pasta de enchimento e tecido, que introduzem um pensamento sobre o corpo feminino e não só.

Catarina Saraiva expõe individualmente desde 2004 e fez o curso de pintura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, mas nunca exerceu esta técnica, pois os seus interesses plásticos cruzaram-se logo com a sua anterior formação na área da moda. Das técnicas e meios que aprendeu, surgiu um território híbrido que se aparenta mais com a escultura. Situa-se, ainda que não intencionalmente, no âmbito das chamadas soft sculptures (por serem compostas frequentemente com tecidos e materiais de enchimento), numa senda que tem como decana fundamental a artista francesa Annette Messager, mas que em Portugal encontra seguidores em artistas como Joana Vasconcelos, João Pedro Vale, Pedro Valdez Cardoso, Eva Alves e a própria Catarina Saraiva.

Reflectindo agora sobre este conjunto de obras: o reflexo é uma preocupação própria da pintura, o corpo é uma preocupação própria da moda. Em todo o caso, a arte ocupa-se de ambas as questões e os objectos e instalações criados por Catarina Saraiva discursam desde sempre sobre as questões ligadas à imagem e ao corpo. Particularmente acerca daquilo que vemos sobre a nossa figura num espelho, objecto que nos devolve a nossa imagem e sem o qual não saberíamos o nosso aspecto. Mas a imagem que nos é dada, muitas vezes acaba por ser distorcida já não pelo espelho e sim pela nossa mente. “O reflexo pode ser outra coisa... outro corpo”, diz a artista. Talvez por isso os espelhos de Catarina sejam reflexos impossíveis. Eles recusam a sua função. Não servem como material reflector e com isso são objectos de ansiedade. Ao ocultar a face reflectora do espelho, a artista nega a imagem.

Numa outra obra em registo vídeo, Catarina Saraiva observa-se ao espelho e pinta as suas próprias feições sobre ele, como que a negar a realidade dos fragmentos do seu rosto. Ela pinta o seu reflexo, ficciona-o e anula o carácter temporário da imagem reflectida. A imagem é como que agarrada, mesmo após o desaparecimento da personagem em questão. Ao mesmo tempo, mais uma vez, é negada a função do espelho daí em diante.

Nestes espelhos que evocam a forma tradicional de um objecto de toilette, a beleza é questionada e a construção da identidade é anulada. A desconstrução é a palavra mote para Catarina Saraiva, pois ela apropria-se dos objectos que usamos até de forma íntima para lhes retirar a função e com isso questionar a sua existência. Nesta exposição, a abordagem do tema habitual da artista é mais subtil e emprega ferramentas novas dentro do seu percurso. É o caso da instalação sonora com potes de barro em que, lá dentro de cada um, ecoam vozes que dizem: “os teus olhos não são como duas pedras”. Frase que ganha sentido quando se olha em frente e se vê a representação de um espelho como num mosaico antigo, composto por pequenas pedras. Pedras macias, para que não se parta o espelho de quem não gosta do seu reflexo...


Miguel Matos

“Espelho (meu)” está patente na Módulo - Centro Difusor de Arte (Calçada dos Mestres, 34-A), até 5 de Junho. Aberta de terça a sábado (excepto feriados) das 15.00 às 20.00. A entrada é gratuita.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Gabriel Garcia - Palcos de sonho e pesadelo


A Anita dos livros infantis é afinal um travesti, devota de Nossa Senhora de Fátima, e serve leitões ao fim-de-semana. Se não acredita, comprove-o na exposição “Anita no País dos Mentirosos”, de Gabriel Garcia. Tudo começou na montra de um alfarrabista onde uma capa de um dos livros da Anita chamou a atenção do artista. Partindo desta imagem, faltava o contexto para começar a trabalhar. E não há melhor contexto do que o País dos Mentirosos, afinal de contas, o país onde todos nós vivemos, começando pela classe política, mas não só. Como explica Gabriel Garcia: “a fantasiar acabamos por ser mentirosos. A mentira permite voar por cima das nuvens e viajar ao encontro da fantasia e é isso o que eu tenho vindo a desenvolver nos meus trabalhos.”

A história original, a do país das maravilhas, traz consigo o jogo entre uma terra de fantasia e local de gente má. Como as mentiras, que podem ser boas ou más. Há sempre um ambiente teatral, burlesco e circense nestas imagens. Gabriel Garcia inventa personagens grotescas que pinta e depois liberta, engarrafando-as literalmente em pequenos frasquinhos que são depois pendurados no tecto da galeria.

Gabriel não planeia meticulosamente cada imagem que cria, preferindo pintar ou desenhar como se fosse uma escrita automática. Nesse método, evoca André Breton, o papa do surrealismo, como influência teórica no seu trabalho. Mas os territórios perigosos do surrealismo são difíceis de percorrer sem consequências. Aliás, mesmo Breton disse uma vez que os campos de prospecção do inconsciente, como a escrita automática e o sono hipnótico, “são muito difíceis de circunscrever. Assim que se tenta fixar-lhe os limites, impõe-se uma grande margem de flutuação, de incerteza. São terrenos movediços, sobre os quais nunca há a certeza de se ter pé.” (Entrevistas, Ed. Salamandra) Assim, apesar de utilizar as ferramentas inexactas propostas por Breton, Gabriel esclarece: “eu não sou surrealista. Quando falo de surrealismo, não o faço no sentido dos ideais e da concepção de vida que os surrealistas defendem. A questão do surrealismo vem do lado onírico, automático e inconsciente que utilizo no meu trabalho. Às vezes usar mais palavras para explicar as minhas obras não vale a pena. É nas entrelinhas que se contam as histórias.” E é nas entrelinhas que começa a operar a imaginação de cada observador que se plante em frente a uma destas pinturas.

Nos tresloucados sonhos pintados desta exposição, há uma permanente alusão aos contos infantis, mas aqui o pintor restitui--lhes a ironia e crueldade originais, o que permite uma identificação com o mundo adulto, mas com conteúdo retirado com uma pinça directamente ao inconsciente de origens recônditas e infantis. São a fantasia das crianças e a mentira dos adultos que se cruzam e confundem. Tudo isto é enquadrado por um cenário teatral, como as paisagens em cores berrantes que fazem lembrar os cicloramas das peças de teatro. A disposição das personagens é também estudada dentro da composição de cada quadro como num palco. Um lado grotesco na fisicalidade de cada personagem é o toque adicional para transformar tudo isto num espectáculo circense.

As obras de Gabriel Garcia assumem as influências das criaturas de Bosch, dos ambientes, cores e cenários de Brueghel, assim como das máscaras de James Ensor. Quando se desloca para o desenho, lembra Mário Botas. Mas essas influências não fazem da pintura de Gabriel Garcia uma colagem ou pastiche. São sinais no caminho que vai levar a paragens muito diferentes. Talvez sejam mentira, mas são certamente o outro lado da fantasia.

“Anita no País dos Mentirosos” está patente na Galeria São Bento (R. do Machadinho, 1) de sexta a 30 de Junho. Aberta de terça a sexta das 13.00 às 20.00 e sábados das 15.00 às 20.00. A entrada é gratuita.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Teresa Gonçalves Lobo - Instinto


“Algures dentro de mim

uma nascente.

a merecê-la que cântaro?

Que canto?


Sinuoso

vertente



precário

o trilho das palavras


Ador transborda

a sede permanece.”


Rosa Lobato de Faria1


As linhas que percorrem estas superfícies vertem sinuosas como uma intuição desenhada por escrito. É imagem que desliza sem a mediação teórica de quem a premedita. Inscrevendo-se a obra de Teresa Gonçalves Lobo dentro do rumo do instinto, como seria possível descrever o seu corpo de trabalho recorrendo a teorias? Quem, neste mundo, pede justificações a um músculo para que ele se mova? Quem pede licença antes de soltar um pensamento? Estes traços de sentimentos incertos vivem dessa volatilidade. São desenhos do corpo que falam sobre os instintos, numa obra de cariz profundamente gestual, que descende da abstracção lírica para encontrar um rumo próprio.

As íntimas geografias apresentadas por Teresa Gonçalves Lobo são correntes no seu trajecto, como água na fluidez de quem desenha como quem respira. E, mais uma vez, não se pede autorização aos pulmões para se engolir uma golfada de ar e depois soltá-la já disforme, quente da passagem pelo corpo. Tal como este texto, que faço por ser escrito o mais espontaneamente que consigo, querendo fazer eco da Teresa quando frente ao papel com os materiais riscadores. Falando com a artista, percebe-se que é para si urgente a actividade de criar. Dessa urgência emerge a inconsciência que faz destes trabalhos registos emotivos, reflexos puros das camadas mais profundas da mente. Como uma automática escrita (embora longe dos preceitos surrealistas) que, timidamente, deixa entrever matizes mais ou menos profundos pela intensidade das marcas feitas no papel.

Há nestas peças um silêncio expressivo omnipresente que convida à reflexão e à contemplação. Talvez as origens insulares de Teresa Gonçalves Lobo sejam perceptíveis na poesia simples e recatada das suas obras. Entre sinuosas curvas quase vegetais e linhas serpenteadas de rios correntes, é de elementos essenciais que se faz a sua prática artística, numa contenção cromática que reflecte um isolamento com propósitos de recolha interior. Nos pretos da grafite e da tinta-da-china sobre o branco imaculado do espaço plano do papel surgem por vezes vermelhos de intensa vida ou verdes de pura energia. Da maioria dos seus desenhos surge uma sensação de crescimento, como seres diáfanos que se inclinam e prolongam em direcção à luz. Mas, por outro lado, são formas orgânicas que possuem as suas raízes em crescimento para a terra e, portanto, à obscuridade, à interioridade. Recolhimento e conhecimento. Em ambos os casos, há uma direcção apontada à necessidade criativa, esteja ela sintonizada com as forças da luz ou da escuridão. São sentimentos à solta. Contudo, não é absolutamente caótica a criação de Teresa Gonçalves Lobo, o que se torna evidente notando a organização de linhas em confluência. Na tentativa de extrair energia de um corpo pensante, acontece naturalmente um desenho com a tranquilidade do silêncio. Há nisto como que uma intenção pouco clara de organização espacial da mente. Tornar plástico um estado de espírito sem ceder à tentação da figuração.

Teresa não tem medo de errar nesta entrega de si. Na verdade, como representar o desejo e o instinto sem cair em erro por não os conhecermos na totalidade? O erro faz parte destes caminhos e vive dentro de uma subjectivação assumida de quem desenha “coisas que se pensam em mim”, como dizia Maria João Ceitil. “Pôr o corpo a falar, pôr o desejo a falar, é abrirmo-nos à possibilidade do sentido daquilo que parece ser sentido. (...) O rasto que o meu pensamento segue é o da descoberta de um movimento no pensamento: pensar é pensar e ser pensado. O movimento de vai-e-vem. Espaços dialécticos da subjectividade”2.

O trabalho de Teresa Gonçalves Lobo, como o de todos os artistas contemporâneos não vive sem algo que o precedeu. Possui, não na sua génese, mas na sua contextualização, como referência, o trabalho de Ana Hatherly, no que diz respeito à ligação com as caligrafias por si exploradas. Também, a espaços, é possível identificar cruzamentos com alguma obra de Eurico Gonçalves. No entanto, percebe-se a autonomização do seu discurso. Abandonando progressivamente os iniciais alfabetos, e assim distanciando-se da tradição gráfica protagonizada por Soulages. Há um lado performático nestas linhas. O que é inegável também é a feminilidade destes traços, se entendermos a sensibilidade à flor da pele como característica definidora da feminilidade. O que vemos aqui é o reflexo do movimento instintivo de uma mão que corre a superfície sem pressas, sem poderes nem regras. De facto, “é emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transmuta o mundo em pintura”, como disse Merleau-Ponty3. Sem noções pré-estabelecidas ou intenções programáticas, Teresa Gonçalves Lobo segue as linhas que, saindo de si, canalizadas, só as conhece depois de riscadas através do seu corpo.


Miguel Matos

1Faria, Rosa Lobato, Poemas Recolhidos e Dispersos. Roma Editora, Lisboa, 1997

2Ceitil, Maria João. Pôr o Corpo a Pensar. ISPA, Lisboa, 2003

3Ponty, Merleau. O Olho e o Espírito. Vega, Lisboa, 2006