quarta-feira, 20 de outubro de 2010

João Queiroz - A paisagem como pintura


A pintura de João Queiroz não é uma obra de espectáculo, mas consegue deslumbrar. Não é puramente figurativa mas mantém a representação. Não nos diz coisas explícitas, mas insinua que estamos a observar cenas da natureza. O observador que se deixa sugar pelas cores e traços marcados pela tinta e pelo corpo numa evidência de gestos, deixa progressivamente de se situar apenas e só na paisagem à sua frente. A cena dilui-se, torna-se um objecto visual, apenas e só, em toda a sua gloria.

“A percepção da paisagem é uma 'evidência', uma injunção implícita, e é evidente que a paisagem é bela. Nada se equipara à bela paisagem. Ela é dada, apresentada aos sentidos como um usufruto, um repouso.” Quando Anne Cauquelin escreveu este trecho no livro A Invenção da Paisagem parecia referir-se à pintura de João Queiroz. Eis que no epicentro frenético da cidade, aparece uma exposição para ver devagar. “Silvae” é uma antologia do trabalho de João Queiroz em desenho e pintura. Começa em 1992 e vai até à actualidade, organizada como um percurso pouco estruturado, em que as obras se reunem por afinidades e não por épocas. O início da exposição tem como assunto aglutinador os seus primeiros trabalhos, associados a experiências relacionadas com a sua actividade como professor. São pesquisas formais e exercícios entre a imagem e a linguagem verbal. Piscadelas de olho irónicas à representação na arte e desenhos que indagam a influência da palavra no desenho. A paisagem, aqui ainda incipiente, é já um tema importante que leva às pesquisas posteriores. A paisagem é, de facto, o tema único que João Queiroz não mais abandonou até hoje. “A paisagem surge da preocupação em compreender como é que o nosso corpo vê um acontecimento e como é que nós escolhemos esse acontecimento entre os outros, como agregamos as coisas para constituir um objecto... como é que a linguagem leva a fazer isso.”, explica o artista, introduzindo o tom geral da exposição.

Na pintura de João Queiroz, não é possível determinar rigorosamente cada um dos objectos representados (uma árvore, um ribeiro, ervas e folhas...) tudo se dilui e interpenetra, embora a sensação final no observador componha a imagem reconhecível de uma paisagem. Nestas imagens é importante a carnalidade da tinta, as espessuras, as escalas, as velocidades que o artista imprimiu na tela. Tudo isto só se revela com a presença directa do observador. Qualquer reprodução aniquila esta experiência. É preciso ver como as obras mudam conforme as dimensões, os suportes e as técnicas, sejam elas em óleo, aguarela ou outras.

O pintor guarda na tela e no papel o registo posterior e subjectivo das sensações guardadas no corpo depois da observação de um cenário natural. As obras de João Queiroz são para ver com o corpo todo, usando as coordenadas espaciais que advêm da memória física e da nossa própria consciência corporal. Após uma demorada observação estas imagens deixam de ser paisagens, já são outra coisa. “São pintura”, diz o artista. São objectos para ver. Há assim como que um esvaziamento de sentido para criar uma experiência estética e plástica. É assim que a pintura (sobre)vive e renova o seu interesse. Como diz Queiroz, “se esta se esgotar num jogo de símbolos e sinais, na sua sucessiva interpretação e reinterpretação, tornar-se-à um objecto cultural no sentido mais bolorento do termo, e não mais parte fundamental da criação de novas sensibilidades e novos modos de ver. Não acredito que isso tenha de ser assim. Por isso estou atento à pintura”.
Miguel Matos

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

São Trindade - A Fotografia posta a nu



Os mitos são meios de o homem se conhecer a si próprio. Desde sempre que a arte se inspirou em lendas e mitos como pontos de partida para criações pictóricas. Os mitos constituem, muitas vezes, pilares ancestrais mais ou menos sólidos, mais ou menos credíveis, onde assenta a cultura de alguns povos. “Referente cultural, o mito actualiza-se, permanece vivo; por vezes adormecido, pode surgir numa erupção violenta e construtiva”, diz Victor Jabouille no livro Iniciação à Ciência dos Mitos.
A exposição “The Tailor” que a fotógrafa São Trindade apresenta na galeria VPF Cream Art, resgata o mito medieval de Lady Godiva que, embora longínquo geográfica e temporalmente, parece fazer sentido nos tempos que correm. Mas não é só de histórias e mitos que esta série fala. Ela discursa sobre os poderes da fotografia, sobre a construção de uma imagem e de como a fotografia, o desenho e a pintura se podem confundir sem nunca se tocarem.
São Trindade (Coruche, 1960) tem desenvolvido actividade na captação de imagens através da câmara fotográfica.
Por isso é uma surpresa saber que é licenciada em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Quem visita esta exposição percebe imediatamente a relação.

Mas comecemos por saber quem foi Lady Godiva e o que tem ela a ver com o assunto em questão. Diz a lenda que, na primeira metade do século XI, a bela Lady Godiva defendeu o povo de Coventry (Inglaterra), que sofria com os altos impostos do marido, o Duque Leofric.
Lady Godiva apelou tanto que ele lhe propôs um desafio como condição: que ela cavalgasse nua pelas ruas de Coventry. Ela aceitou e mandou todos os moradores fecharem-se em casa aquando da sua passagem. Somente uma pessoa (Peeping Tom) ousou olhá-la e por isso ficou cega. Leofric retira os impostos, cumprindo assim a promessa.
Voltando a Lisboa, passados mil anos, entramos numa sala com um cavalo em papier-maché e gesso no centro. Olhamos para trás e vemos Lady Godiva imortalizada em fotografia, numa imagem que se refere à icónica pintura realizada por John Collier em 1897. No entanto, se repararmos no pormenor da sela, as iniciais “ST” denunciam que Lady Godiva nesta foto é São Trindade, em auto-retrato. À volta, tudo o que se segue é um conjunto de imagens fotográficas que regista os processos de concepção e construção do cavalo.
Há alguns pontos, de entre muitos, a salientar como temas nesta exposição. Primeiro, o mito de que já se falou (será que São se propõe cavalgar nua por Lisboa se o governo baixar os impostos?). Segundo, a questão do voyeur, pela referência a Peeping Tom e sendo o acto de espreitar, de ver de forma encoberta, um dos princípios fundadores da fotografia. Terceiro: a noção de espaço. São vários os símbolos e ícones que São introduziu nestas imagens de modo a contar histórias da imagem. Entre eles há um espelho que amplia o espaço e duplica a virtualidade da fotografia. O espaço fotografado é o ateliê onde foi construído este cavalo, mas que alude ao ateliê como local da criação, de realização.
O registo a preto e branco salienta o desenho imposto nas imagens, um desenho feito de contastes e linhas marcadas. As imagens tornam-se cada vez mais abstractas e incorporam uma bidimensionalidade que nos faz hesitar entre a fotografia e o desenho. “The Tailor” é uma série de obras cerebrais, mas que ainda assim consegue encantar o observador.
Do mito de Lady Godiva aos mitos da imagem, São Trindade traz à VPF Cream Art uma das melhores exposições aí já realizadas. Convoca a técnica artística, a história de arte e a mitologia. A análise dos mitos, conclui Victor Jabouille, “permite, além da apreensão do homem individualizado, compreender o homem enquanto ser gregário, isto é, como sociedade. E são os mitos actuantes nas várias épocas que especificam o conhecimento da sociedade.”

Miguel Matos

domingo, 10 de outubro de 2010

Graça Morais - Retrato com raízes


Por Miguel Matos

A pintura de Graça Morais, ícone essencial da cultura portuguesa, constitui uma obra baseada na intuição, ligada aos sentimentos e às emoções. As terras agrestes e as gentes de Trás-os-Montes foram o ventre da gestação do universo pessoal e psicológico que faz parte das imagens que cria. São estas referências íntimas e ancestrais que fundam em si os alicerces de um caminho seguido ao longo dos anos com idas e voltas à fonte, à raiz.
A natureza é o lugar essencial onde Graça Morais apoia a sua verticalidade como artista plástica. A sua aldeia é a realidade à qual sempre regressa numa atitude de agarrar-se e largar-se de si para se entregar à pulsão que desse movimento emerge. Com base nas vivências de um meio outrora fechado sobre si, mas ainda hoje conservador dos seus traços essenciais, Graça Morais constrói um outro mundo, o seu próprio, com todas as referências etnográficas que recolheu durante a vida, mas que, após assimiladas e transpostas, não são já puras. São as suas, comidas, mastigadas e transformadas num organismo ele mesmo produtor de cosmogonias. É desta incerteza de origens, da mistura daquilo que é seu com aquilo que lhe foi dado a ver, viver e sentir, desta confusão referencial, que se cria uma obra particular, identificável com um povo, mas pertencente a um outro domínio que é o da vivência pessoal da criadora, codificada e revelada ao exterior através das suas obras.
O que Graça Morais nos mostra nas imagens que cria não são registos senão das suas incertezas, de momentos e lugares, de pensamentos, ânsias e por vezes raivas. Se bebe dos hábitos, lendas e histórias de Portugal e da região que a viu crescer para partir numa aventura quase mística, não é já do domínio da antropologia o que se sente numa pintura como esta. No entanto, esta ideia não é consensual. Críticos há que têm descrito a obra de Graça Morais como um lento trabalho de redescoberta de um imaginário popular, através de uma “recriação gráfica” e inventariando os rituais da gente popular, chegando mesmo a associar a autora a um registo neo-realista com uma vertente antropológica, que busca as raízes de uma memória rural1. Esta posição é contraposta por outros autores, que verificam no trajecto da pintora o desenrolar de um conjunto de idiossincrasias, mais do que de puras observações e registos. Considerar que o que Graça Morais faz é mera antropologia ou etnografia poderá resultar no perigo de reduzir a sua obra a apenas um dos seus elementos constituintes, sendo que a soma destes forma um corpo de trabalho revelador de um mundo próprio, enraizado num contexto rural real e experienciado pela criadora desde a infância. Apesar destas incursões, a recorrência de análises ligadas ao simples carácter de recolha, registo e representação de hábitos e costumes é refutada por opiniões opostas, como a de Sílvia Chicó2, que chega mesmo a situar a obra de Graça Morais dentro de territórios aparentados com os do Surrealismo. Não será uma opinião desconcertante, uma vez que o lirismo, o sabor onírico e até o absurdo, pela associação de díspares realidades, não são estranhos à sua produção artística desde sempre. No entanto, há que notar a ausência de um programa político ou ideológico nesta obra, o que, por si, anula a inscrição da pintora nas referidas correntes artísticas.

Mitos do Inconsciente





“A nossa primeira infância marca-nos a todos e eu fui muito marcada pelo que vivi até aos sete anos nesse lugar [a aldeia de Vieiro], que na altura não tinha electricidade, nem estradas nem telefones”, diz a pintora. “O isolamento era tanto que tudo o que eu vivi foi muito intenso. A relação com o meu pai, com a minha mãe e os meus irmãos, numa família numerosíssima e com aquela gente toda na aldeia, ficaram marcadas profundamente no meu pensamento e no meu coração. Sinto que hoje sou uma privilegiada porque tenho esse mundo dentro de mim.” É da transição das origens rurais e sociais ao lado mais efabulatório e metafórico que cresce a essencialidade da sua obra, também a um nível plástico em que é possível identificar traços fortes de inspiração neo-expressionista. O resultado é a criação de uma terra imaginada, situada “na ligação a um ambiente rural, sagrado, quase mítico, com um campo semântico em que mulheres, gestos, faces, animais, cenas de pastoreio e de caça e matanças se confundem e se agitam numa geografia mental e íntima”3. De facto, falar da obra de Graça Morais é inevitavelmente falar de uma geografia híbrida, que tanto tem de terra e carne como de imaginação e sonho. Uma mitologia uterina, um fio que vem do inconsciente e nos atravessa, embebido da identidade regional, sem que se consiga parar para observar a zona de charneira. E apesar dessa inconstância ontológica, mesmo assim, “penetrar na sua obra é entrar no mito dos rituais que ainda prevalecem no Portugal contemporâneo”, como disse Fernando Pernes4.
Se o mito é, por definição, uma construção social de um povo ou cultura específica, os mitos criados ou recriados por Graça Morais são de outra natureza, são já transformados. Constituem como que mitos pessoais - criações internas a partir de referências intrínsecas não só a si mas também ao meio onde nasceu e cresceu. E daí o afastamento dessa tal visão etnográfica, pois ela é aqui apenas o ponto de partida para uma viagem longa e incerta. Recorrendo assumidamente desta vez a referências da área da Antropologia, Misha Titiev salientava que os mitos são histórias que dizem “principalmente respeito a entidades ou acontecimentos sobrenaturais”5. O mito é como uma linguagem e faz parte do conjunto de sistemas simbólicos de uma comunidade. “Existem na cultura numerosos sistemas simbólicos que resultam por um lado da interacção social e, por outro, de manipulação cultural, constituindo como que uma apropriação do mundo. No entanto, estes sistemas simbólicos não são passíveis de uma leitura universal. Podemos observar que na sua grande maioria, apenas adquirem significado dentro das unidades culturais em que nascem. Na verdade, os símbolos são qualquer coisa de emocional (...)6.
Graça Morais apropria-se dos mitos (principalmente soteriológicos, morais e naturalistas), histórias, imagens e símbolos da sua terra e come-os, torna-os seus. Nesse processo, a pintora afasta-se do mero registo gráfico, da pura etnografia, situando-se no campo entre o sagrado e o profano, o factual e o inventado, o social e o pessoal. Perde-se dos seus suportes religiosos e antigos, afastando-se de referências narrativas para chegar aos territórios da ficção. É uma mitologia que nos envolve naquilo que de mais espiritual temos, enquanto faz uso de elementos simbólicos do quotidiano ou fragmentos de raizes esquecidas no subconsciente. Uma mitologia dentro daquela que é possível descortinar na definição de Victor Jabouille quando refere que o “mito recorda histórias de deuses e de heróis, tem uma tonalidade nebulosa, lírica, agressiva”. Palavras mais do que ajustáveis a uma possível descrição das obras desta artista. Ainda recorrendo a Jabouille, e fazendo o paralelismo com esta pintura, aqui, nestes mundos entre a terra e as gentes evocam-se “sociedades primitivas, grupos reunidos à volta da fogueira, contadores de lendas”7.
Nas imagens que Graça Morais nos apresenta, as narrativas aproximam-se frequentemente dos ritos, como atitudes, gestos e acções de que as suas personagens fazem uso no intuito de atingir uma espécie de harmonia com a natureza, uma via de contacto com o meio visível e invisível. Neste âmbito, e ao contrário do que acontece com os ritos nas culturas tradicionais, o contexto sacrificial simbolizado pela metáfora da caça, não serve já para apaziguar ou captar as entidades metafísicas. Na sua visão, estas actividades acabam por destruir o equilíbrio das forças da vida, mas constroem um padrão de atitudes com os quais uma comunidade se identifica. A pintora ora demonstra, ora questiona a legitimidade de rituais como os da caça e da morte, usando também esta actividade tipicamente masculina como metáfora para a forma como a mulher tem sido tratada nas sociedades fechadas rurais, extrapolando para a generalidade da sociedade em que vivemos. É uma pintora-perdiz, mulher vítima e animal caçado. A perdiz faz parte do vocabulário da sua pintura e aparece como símbolo da dor, do drama, da destruição, da perda... A perdiz e o coelho, como animais que simbolizam a caça, são também animais de extrema beleza. Graça Morais ao pintá-los transforma-os na tristeza da morte e na crueldade da perseguição. Ao aceitar a violência de uma tela que invade o espírito, assistimos à crueldade, à dureza e aos rigores de uma gente.

O Tempo num Rosto

É nas fendas produzidas pelo tempo no rosto seu e de sua mãe que Graça Morais se reconhece como ser mortal e se apercebe da dimensão do tempo. Aí se transformam estes entes num processo efabulatório a que não é alheia a auto-representação quer através dos elementos da cultura da sua região, quer através do seu próprio rosto, ou do rosto da sua progenitora, tal como também nos revemos nos rostos das mulheres da aldeia. É na interpretação destes rostos que a pintora invoca obsessivamente, que se pode encontrar o poder da metáfora, porventura surrealista, do crescimento de raizes ou outras formas vegetais a partir da pele de corpos envelhecidos e ainda assim plenos de vida. São metamorfoses, estas associações tão poéticas como as passagens e transições pelas quais o ser humano caminha ao longo das diferentes fases da vida, principalmente num meio em que existe a calma para se contemplar essas mesmas modificações. Assim, este é também um discurso sobre o corpo, a morte e o envelhecimento físico. Para Pere Salabert, a beleza prodigiosa do corpo humano, baseada na funcionalidade e na limpeza, na ordem e na completude das formas, já não esconde, antes pelo contrário, abre-se a uma deterioração que transformará o belo em monstruoso através da desordem e da deformidade. Entre um e outro extremo? Medeia o espaço que separa o mundo do imundo, a juventude da velhice, a esperança da prostração8. Na pintura de Graça Morais a deterioração da carne não é exactamente um sinal de decadência, mas sim de permanente devir e de
acumulação de experiências transformadas em sábia quietude. É também, e acima de tudo, vida. Assim se repetem expressões carregadas em rostos familiares para a artista e que se relacionam com o observador pela carga de algo inominável a que apenas acedemos superficialmente, mas que intuimos interiormente. Porque, como disse Matisse, “no desenho de um rosto, não interessa a justeza das proporções, mas uma luz espiritual que nele se encontra reflectida”9.
A prática artística de Graça Morais caracteriza-se por uma indefinição permanente, uma constante fuga à catalogação dentro de “ismos”. Até mesmo na série “As Escolhidas” (1995), em que a figuração aparenta ser mais ligada a um registo do quotidiano, nada há de realista ou naturalista. Para além da referida ausência de conotações políticas nestas obras, a visão de Graça Morais sobre estas mulheres é profundamente pessoal, sem agendas ou “recados” sociais ocultos. Nestas mulheres, o que impressiona o observador é a atitude do corpo, os gestos, os movimentos do quotidiano. É o caso destas pinturas e desenhos que evocam o dia 1 de Novembro, dia de todos os santos. É de tradição nas aldeias de Portugal que as mulheres, neste dia, cuidem das campas dos familiares e amigos falecidos. Trata-se de um trabalho exercido pelas mulheres, que a artista interpreta, recorrendo a estes rituais de forma descontextualizada, salientando apenas posições e gestos, abstraídos de qualquer referência espacial. Nesta descontextualização, o rito da decoração das campas com flores confunde-se com o trabalho da lavoura. Somos levados a tomar os ritos dos defuntos, da morte, pelos ritos da terra, da vida. Por entre estas pinturas de sentimento metafísico, nascidas de uma observação silenciosa, uma delas marcou especialmente a artista: “esta mulher, que eu pintei várias vezes, estava a remexer na terra com um ar concentradíssimo. Passado pouco tempo ela morreu e foi para essa mesma campa que tinha enfeitado”. A dimensão dos movimentos e a contenção dos gestos das personagens é aqui explorada em pinceladas rudes, com uma grande intensidade de luz e de texturas num ambiente de silêncios expressivos.

Metamorfoses

Não é só nos rostos que podemos testemunhar as metafóricas metamorfoses de seres. Sendo os humanos como bichos, não é só a passagem do tempo o que estas metamorfoses evocam, mas também histórias e traços de personalidade que caracterizam as personagens. Nas rudes faces pintadas e desenhadas por Graça Morais, o que lhe interessa é a transmissão de uma sensação, de uma expressão, um sentimento, uma aura ou atmosfera. É a representação de uma intensidade, e não um retrato, aquilo que nos é oferecido. Porque Graça Morais não retrata. Recria. Retém as imagens de que se apropria e que imprime na sua imaginação e é com elas que trabalha cenas e situações que pertencem já ao domínio da sua criação.
“Por vezes olho para as pessoas e vejo bichos, sobretudo em lugares onde a minha memória activa o que vai vendo”, diz a Graça Morais. Os gafanhotos são insectos que possuem uma carga simbólica, tal como todos os seres transmutados dentro das pessoas que pinta. “Tenho uma caixinha cheia de gafanhotos porque em todos os Verões há sempre um que me entra em casa. Sempre ouvi falar do gafanhoto como um insecto ligado às pragas. Mesmo na Bíblia, sabemos do papel do gafanhoto como um bicho traiçoeiro que devasta tudo por onde passa. Comecei a desenhar gafanhotos e a sobrepor figuras numa atitude de trabalhos agrícolas. Imagino que as pessoas podem ser como gafanhotos, não a destruir mas a trabalhar e a produzir”. No recurso à representação de elementos pertencentes ao meio natural, como ramos de árvores, flores, legumes, batatas ou frutos, há que notar que estes são já objectos elevados ao estatuto de ícones. É através deles que sabemos que a criadora está a referir-se a uma altura específica do ano. Não são narrativas mas sim referências que nos permitem organizar memórias de uma possível história mental. “É o meu lado mais solar e simples”, diz. “Essas imagens muito leves evocam os dias quentes. Mas não há inocência nisso. Faço-o para marcar um tempo. Há um calendário ligado a um diário que faço em livros que vou escrevendo e, de vez em quando, há uma página em que desenho uma dessas representações da natureza. É um livro de horas”. Um registo da passagem do tempo ligado à sua vivência e transmutável na vivência de cada um.
A passagem do tempo é vida e morte e é uma dimensão quase sempre presente na pintura de Graça Morais. No meio rural, isto acontece com uma aceitação maior, da mesma maneira como as flores murcham e as árvores se despem. A morte é, no campo, uma realidade tão intensa e dramática como em qualquer outra parte, mas existe aí, sentimos no discurso plástico e psicológico da artista, um assumir mais vincado do corpo e da sua mortalidade.

Erotismo Proibido, Corpo Urgente



Uma série de dez pequenos desenhos em grafite sobre papel (1984) é o testemunho mais íntimo e directo do erotismo que Graça Morais imprime a espaços na sua obra. O erotismo em Graça Morais é um erotismo de alguém que se deixa encantar pela magia do inexplicável. Um corpo à procura de outro corpo, no entendimento da expressão de Maria João Ceitil. Um corpo que não se prende em absoluto às ideias de verdade ou ilusão. É “a dinâmica do desejo, do amor, que nos deixa loucos, encantados, enfeitiçados, irracionais. (...) um corpo à procura de outro corpo: a magia, o feitiço, o poder irracional e absoluto que esse outro corpo exerce sobre nós. A magia do contacto. A magia do afecto.”10 É nessa irracionalidade que se convocam forças do indizível e isso transmite-se na desconstrução formal das figuras que se insinuam de forma mais ou menos directa, mais ou menos sexual.
A dimensão erótica do ser humano em contextos socialmente mais fechados é sempre um mundo quase hermético de mistérios e crenças. É isso que vemos nestes desenhos. “Eu acho que aí o erotismo surge como um exercício de castigo, de recalcamento”, explica a artista. São figuras reprimidas e têm a ver com a inquietação que Graça Morais sentia nesta época em relação à presença do erotismo na arte: “fui criada com os maiores mistérios à volta do sexo e do erotismo, com todas as proibições que a minha educação católica impunha”. O sexo e o erotismo levam consigo conotações negativas, trazendo a nós termos como “magia”, “feitiço”, “encantamento”, dimensões do profano e do herético. “Termos imemoriais que convocam algo de primitivo e de demoníaco”11.
Nestas imagens surrealizantes, não podemos atribuir identidades ou géneros às figuras. Tudo é ambíguo e em devir metamórfico entre o humano e o bicho. Os animais nos quais os seres humanos se vão transformando são aqui seres exóticos como tigres ou leões. Isto relaciona-se com o tipo de imaginação que a pintora desenvolveu aquando dos tempos em que viveu em África. É o lado selvagem e devorador intrinsecamente ligado ao instinto erótico. É quase como tornar visível a urgência do corpo e da irracionalidade que isso implica. “É o erotismo visto como uma expressão do corpo humano que tem de ser reprimida e por isso esses desenhos têm a ver com a impossibilidade do amor, com a impossibilidade de dois corpos se juntarem e com a inquietação que eu sentia nessa altura”. O carácter proibido e a atracção silenciosa que o erotismo exerce é tema que subjaz nestas obras. São cenas densas, carregadas, quase como rituais religiosos. Como se o erotismo fosse não tanto um prazer como uma inevitabilidade que é necessário mas impossível reprimir ao fazer parte da nossa existência.

Outros Temas, Outras Terras

Ainda como testemunha de uma das fases mais marcantes do trabalho de Graça Morais, figura o quadro “Mulher e Guernica”, de 1982, altura em que, após admirar directamente a obra maior de Pablo Picasso, ela pega no drama e “reconta-o como se fosse um mito e naquilo em que por dramatização comum dois povos podem entender-se”12. Trata-se aqui de uma citação directa, mas não apenas uma apropriação, e sim uma criação que recorre a elementos directamente assimilados. Não é uma homenagem a Picasso, mas sim um confronto de universos. E de Picasso, não é pecado roubar. Nada de estranho no contexto de um artista que tanto praticou a chamada “Pintura d’après”13. Mas a Graça Morais não interessa o repescar de ícones da história de arte para reiventar a pintura. Também não é um sentido de actualização, de fazer “Guernica” voltar à contemporaneidade. É mais um sentido de identificação entre estilos e a extracção de novos sentidos subjectivos a partir do seu confronto. É uma realidade animal e agressiva que evoca o drama humano. Estes quadros representam o drama das mulheres num meio rural fechado, os recalcamentos, o erotismo reprimido, a violência doméstica sobre elas exercida em termos físicos ou psicológicos.
No seu trajecto de vida, Graça Morais sente-se uma nómada. É-lhe impossível permanecer muito tempo no mesmo lugar. Na série “Cabo Verde” (1988/89), a pintora revisitou mais uma vez os mitos ligados à natureza e aos animais exóticos, como os répteis (exponenciados numa enorme cobra imaginada). Estes quadros resultaram de uma estadia de dois anos no local, interrompida com idas e voltas. A rudeza, o lado agreste e quase inóspito das paisagens de Cabo Verde, aliados à simpatia e simplicidade das gentes captaram a atenção e despertaram a imaginação da pintora. Paradoxalmente, havia algo comum a Trás-os-Montes no seu relevo acidentado. “A minha pintura de Cabo Verde é pouco sobre o mar, mas muito sobre as pessoas. Fotografei, desenhei e pintei muito...”, explica. São imagens de grandes dimensões com um carácter mágico e com uma paleta cromática composta por tons quentes de terra e fogo. Nelas afrontam-nos enormes animais como cobras e elefantes imaginários, quase monstros resultantes de um espanto do confronto com o exótico que lhe fez lembrar os tempos em que viveu em Moçambique (1956-58). “África é um território que exerce sobre mim um fascínio muito grande e os africanos são pessoas muito doces,
afáveis... muito humanas”, diz. As terras de Cabo Verde originaram uma série quase delirante, talvez numa tentativa de “procurar em Cabo Verde a África que eu perdi na minha infância”.
No ciclo da vida e da morte, carne e corpo são convocados na roda das estações. Graça Morais testemunha e constrói com vivências pessoais a sua fábula, o seu mito. Fica a pintura e a sua reverberação dentro daqueles que se sentirem abertos - e preparados - para a receber.

1 Almeida, Bernardo Pinto. Arte Portuguesa da Pré-História ao Século XX – Vol.19 – O Modernismo II: O Surrealismo e Depois. Fubu Editores, Lisboa, 2009.

2 Chicó, Sílvia. Definição de um Caminho in Graça Morais. Ed. Quetzal/Galeria 111. Lisboa, 1997.

3 Ramos, Ana Filipa. http://www.camjap.gulbenkian.pt/l1/ar%7BD2B27546-03B0-4185-A5F8-0B5ACC3E203C%7D/c%7B3e784961-393d-491b-a950-fbf661dfa281%7D/m1/T1.aspx

4 Pernes, Fernando. In Catálogo Graça Morais. Ed. Sociedade Tipográfica S.A., Lisboa, 1992

5 Titiev, Misha. Introdução à Antropologia Cultural. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1992

6 Lima, Augusto Mesquitela, Introdução à Antropologia Cultural. Editorial Presença, Lisboa, 1991

7 Jabouille, Victor. Iniciação à Ciência dos Mitos. Editorial Inquérito, Lisboa, s/d

8 Salabert, Pere. Pintura Anémica, Cuerpo Suculento. Ed. Laertes, Barcelona, 2003

9 Hess, Walter. Documentos Para a Compreensão da Pintura Moderna. Livros do Brasil, Lisboa, 2001

10 Ceitil, Maria João. Pôr o Corpo a Pensar. ISPA, Lisboa, 2003.

11 idem

12 Azevedo, Fernando. Graça Morais, Ainda o mito e a Graça in Colóquio Artes, número 72, Fundação Calouste Gulbenkian, Março de 1987.

13 Ferreira, António Quadros. Depois de 1950. Edições Afrontamento, Lisboa, 2009.

A doméstica pintura selvagem de Sara Maia



Há uma macaca à solta no Museu da Cidade e bichos humanos com relações disfuncionais. Mas não vai ser necessário entrar de catana em riste e não vai encontrar o David Attenborough a falar sobre as estranhas criaturas sociais de Sara Maia na exposição “Doméstica Vida Selvagem”...

Estas pinturas e desenhos falam de relações humanas distorcidas, até grotestas. Qual é a história subjacente a elas?
Acho que o título diz logo alguma coisa sobre o que quis explorar acerca da diferença entre o lado mais artificial ou racional e o lado mais sensitivo ou animal que temos em nós. É uma realidade que tenho explorado constantemente no meu trabalho.

Esse tipo de ideias vem no seguimento da exposição “I Love You Dysfunctional”, que fizeste há dois anos na Ermida de Nª Srª da Conceição...
Sim, as relações são sempre funcionais e disfuncionais ao mesmo tempo. Acho que só alguém que seja bastante hipócrita é que pode negar isso. Mas aqui foco mais o facto de as pessoas passarem a vida a negar o seu lado animal, vivendo num plano quase artificial... Vivemos em prédios, com alguma segurança, mas se vivêssemos ao ar livre podiamos ser como macacos, digo eu.

E falando em macacos... De que trata esta história?
Há mesmo uma macaca nesta exposição que vai vestir um vestido de princesa. Muitas vezes tentamos vestir ou despir papéis. Onde é que fica a nossa essência no meio disto tudo? A ideia começou com um conto português de tradição oral. É um homem que se apaixona por uma macaca e gosta dela como ela é. Um dia apresenta-a à família e é muito embaraçoso porque toda a gente começa a rir por ela ser uma macaca. Ela sente-se mal com isso e quer ser aceite, o que é uma coisa bastante comum a todos nós. Propõe-se então levar uma chicotada para se transformar em humana.

Isto tem a ver com o teu interesse por coisas obscuras?
Mas isso não é nada dark, até é bom uma pessoa gostar de alguém por aquilo que ela é...

Esse conto transpõe-se para telas e desenhos...
São quase 12 telas, algumas delas que transitaram da exposição “I Love You Dysfuncional” e desenhos. Alguns deles não são novos mas nunca viram a luz do dia. Foram feitos quando eu tinha 16 anos, se calhar não seria suposto eu mostrá-los aqui e agora, mas como é um tema que acompanha tudo aquilo que faço, achei interessante mostrar a génese de tudo.



Insistes em trabalhar a pintura em exclusivo, o que parece ser uma coisa fora de moda, obsoleta. E, pior ainda, trabalhas a narrativa dentro de um registo figurativo. São muitos pecados para uma artista jovem. Como te atreves?
Não me quero armar em D. Quixote, em defensora da pintura. Acho que uma tela em branco é uma possibilidade tão grande como outra coisa qualquer. Nunca me faltou coisas para dizer. É um meio como outro qualquer, se resultar enquanto comunicação não acho que seja minimamente obsoleta. Para mim a arte é comunicação, essencialmente. Não é o meio em si que legitima a obra, mas sim o que funciona entre quem vê e quem faz.

Mas não te sentes um pouco solitária nessa opção?
Sim, sinto. Quando me perguntam o que é que eu faço e eu respondo que sou pintora, as pessoas acham que tenho uma grande lata de fazer pintura quando tudo já está feito. Mas eu oiço isso tantas vezes que parece que fazer pintura é um insulto nos dias de hoje. É quase como se a pintura fosse uma coisa sagrada. Como se, por ter uma história tão longa, já não se pudesse acrescentar mais nada.

Consideras-te uma outsider?
Sou uma outsider julgada como uma clássica. Mas, ao mesmo tempo isso é muito mais outsider do que se estivesse a fazer coisas de acordo com as tendências, como a instalação. É engraçado pensar naquilo que é clássico, afinal.

Nestas últimas telas estás a modificar a tua técnica e a tua linguagem... Há mais cores planas, menos atenção aos fundos, uma figuração muito recortada e estratégias da pintura naïf, como a desproporcionalidade entre elementos. Isso afasta-te das relações e semelhanças que alguns apontam entre ti e Paula Rego, por exemplo.
Quando eu exponho em França dizem que faço lembrar Matisse. Em Espanha comparam-me com outros artistas, mas eu acho que isso tem a ver com a história da pintura e com a necessidade que as pessoas têm de enquadrar as coisas e colocá-las em caixas. Isso para mim é honroso, mas ao mesmo tempo é pesado. É hipócrita negar que se tem referências, mas não quero que pensem que faço copy/paste porque é um trabalho muito pessoal. E não é só à pintura que vou buscar referências, mas também ao cinema, à dança e à vida, sobretudo. Às vezes acho que me chamam “a segunda Paula Rego” de uma maneira muito mázinha. Não sou a segunda nem a primeira nem coisa nenhuma.

Miguel Matos

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sara Maia - Tainted Love


Todo o ser humano vive em ligação emocional com outros. Acredita absolutamente na sua autodeterminação, mas tende a ignorar que se alimenta dos afectos que estabelece. Nessa ilusão de sabedoria pessoal, engana-se. Ao tentar superar o seu semelhante, cai na sua própria clausura. “Que sabemos sobre nós próprios?”, perguntava René Huyghe. “Muito, pensam os presunçosos; bastante pouco, dizem os sensatos. Que peso terá o que conhecemos de nós perante o que comportamos de irrealizado ou possível?”1 Perante estas perguntas, as respostas apenas poderão emergir a partir da aceitação de que há “coisas” que se passam em nós. O corpo continua a ser esse desconhecido com quem vivemos e que dentro de nós secretamente se cogita. No interior, células e órgãos crescem, desenvolvem-se e morrem, independentemente da nossa vontade e do nosso conhecimento. Um só órgão pode conter em si a ameaça que poderá destruir o corpo que o alimenta. A dor e a febre são os sinais de comunicação que nos permitem ter conhecimento de que algo de errado se passa no interior do corpo que, apesar de nosso, nos é estranho e de tal forma inacessível como as camadas inferiores do subconsciente. Há emoções e pensamentos que só se revelam no imprevisto. Nesse espaço nascem sentimentos apenas identificáveis após a sua subida a níveis mais concretos de pensamento. Como se existisse um inconsciente físico e um inconsciente mental, com possíveis interpenetrações. Huyghe diz ainda: “É evidente que fazemos uma ideia de nós, com a qual nos satisfazemos e pela qual gostamos de substituir os enigmas que subsistem no fundo do nosso ser; a nós, como aliás aos outros, propomos com complacência esse personagem que criámos e que em parte é verdadeiro, sob a pressão da nossa própria consciência, mas mais ainda sob a dos nossos desejos. (...) O que desejamos encobre e deforma o pouco que sabemos, e o que sabemos mergulha num vasto desconhecido, e que já não é mais do que a tradução desajeitada ou tendenciosa”2.

A pintura de Sara Maia conta histórias para adultos com raízes na infância, repletas de situações bizarras que não entendemos mas com as quais nos identificamos. Ou talvez as possamos reconhecer... São relações de poder, prazer e dor. São ligações de carne e de vísceras. Dependências emocionais e traições pessoais. Marcas sentidas que se vêem na pele e esgares incertos que interrogam o espectador. Não é a pintura o que Sara Maia questiona, mas sim a vida. A artista afasta-se da suposta contemporaneidade que insiste em sabotar a realidade, para trazê-la aos nossos olhos, já de si deformada. Essa distorção passa por um constante mal-estar nos corpos que vemos representados. Um mal-estar que começará na desproporcionalidade física e grotesca das personagens, o que se adensa nas expressões oprimidas e nos gestos espartilhados ou mutilados. “O corpo é um registo de emoções”, diz a artista, que não põe de parte um elemento de rendenção que se esconde por detrás de cada obra. Nesse sentido, cada gesto tem múltiplos significados e é testemunha de um sentimento ao qual não nos é permitido aceder com clareza. Fica no silêncio interpretativo que se estabelece empaticamente entre a obra e o observador. Como um segredo...


As personagens que Sara cria evocam a sua linhagem, vinda de veias de Paula Rego, palcos de Francis Bacon ou dolências de Frida Kahlo. Sara Maia apresenta uma pintura psicofisiológica ou psicossomática - de desordens físicas, psíquicas e plásticas. A base orgânica das narrativas de Sara reporta a uma instabilidade psicológica que se reflecte em desordem física. O psicossomático pode referir-se a uma doença crónica interna ou, por exemplo, às consequências biológicas do desamparo. Ora, se os sentimentos minam o corpo com as suas maleitas, é da intensidade daqueles que se faz o grotesco na pintura de Sara Maia. Não se trata de uma figuração distorcida pelo mero prazer da desconstrução. Por outro lado, não se pense que esta demonstração carnal do mal-estar acontece inevitavelmente, pois no mundo criado por Sara, as personagens sabem que têm o poder de transformar as situações em que se encontram. Chamemos-lhe uma “maleita voluntária”.


Freud dizia que o artista sonha acordado. Nesses sonhos aos quais dá forma, sabe transformar a sua experiência individual em algo partilhável por outros, acrescentando-lhe os factores necessários para que, ao mesmo tempo que materializa fantasmas, proporcione uma experiência estética, uma fonte de prazer. Nisto, dissimula o que há de suspeito, de sinistro na imagem. Procede a um recalcamento embelezado. “Quando conseguiu realizar tudo isso, fornece aos outros o meio de aurirem novo refrigério e consolo nas fontes de prazer, tornadas inacessíveis, do próprio inconsciente”3. Estas ideias são importantes de considerar se as encontrarmos à luz da teoria de Eugenio Trías quando diz que “a beleza é uma aparência e um véu que escamoteia a nossa visão de um abismo sem fundo e sem remissão no qual toda a visão cede e se quebra todo o efeito de beleza”. Para este autor, a arte é sempre ritual: “promove uma descida ao inferno, uma viagem ao imaginário e ao horror, mas essa viagem reconduz de novo ao quotidiano, de tal maneira que o sujeito se encontra, através do seu percurso, transformado. Não, decerto, fortalecido, mas posto à prova”4. No caso da pintura de Sara Maia, há certamente um efeito estético e, podemos até falar da beleza, de humor e do sentimento da fruição da imagem. No entanto, essa é apenas uma camada que nos permite aceder mais facilmente a um discurso de crueldade, de relações sinistras, de poderes perversos. Sexo, amor, família... é o poder que está em causa entre as personagens que interagem nos diferentes “cenários” das “caixas sociais” por onde nos movemos.


Em “Diálogo no Pântano”, Marguerite Yourcenar escolheu narrar os caminhos de duas personagens enleadas nas suas próprias lutas de poder. Nunca nos é permitido saber ao certo o que se passa entre o homem e a mulher que, no fundo, se aprisionam a si próprios. Este universo não é estranho ao percurso que Sara Maia tem desenhado nas histórias que conta em telas e papéis. Por isso, não é de estranhar que a pintora se tenha lançado a este desafio e nele tenha espelhado os intrincados nós com os quais se constroem as relações. Quem controla e quem se deixa controlar? Qual deles possui o outro afinal, se não sabemos quem obtém o prazer e nunca saberemos quem vence o jogo? Resta o corpo como testemunha das vicissitudes, o rosto como espelho mentiroso. Cada personagem funde-se na outra em significados duvidosos que nos são dados a interpretar. Nisso aplicamos a nossa própria experiência e é então que os quadros de Sara assustam, pois fazem-nos chegar a ver o que somos, sem o reconhecermos. Nestes trabalhos, as personagens movem-se por fios invisíveis, são marionetas dos outros ou de si próprias. Cada personagem inspira o ar de outra, vivendo através desse sufoco e alimentando a outra com o seu ar já usado. “São relações de poder emocional, jogos em que quem é aprisionado se torna dependente dessa relação”, diz Sara.


As relações humanas são ligações maculadas. São interacções de poder e dominação. No amor há um martelo e uma bigorna, como diziam as personagens de Sacher-Masoch: “(...) Deve-se somente ao egoísmo do homem, o querer guardar a mulher, enterrando-a como se fosse um tesouro. Todas as tentativas de contrair votos, fazer contratos e cerimónias sagradas falharam em trazer permanência ao mais inconstante aspecto da inconstante existência humana, nomeadamente o amor...”5. Podemos escolher ser o martelo ou a bigorna, ou podemos alternar entre dominador e dominado consoante as circunstâncias. No fundo, entramos num jogo que se estende aos vários domínios da vida – da amizade ao amor até ao quotidiano num pequeno universo de ideias e traumas, de leis e crenças pessoais.


Entre morte e vida, entre loucura e sanidade, entre desejo e raiva. Estas histórias passam-se em limbos. Nada é isto e nada é aquilo. “Não acredito em dogmas”, diz. Qualquer realidade tem o seu contrário e pode-se transformar nesse contrário. A passagem entre estádios decorre da transformação ou da decadência. Passa por cordões umbilicais e intestinais ou digere-se através de bocas de insectos. Sara Maia cria uma visão da metamorfose ao questionar as fronteiras físicas e sociais, quando uma coisa começa a ser o seu oposto, mas ainda não o é.


Sara Maia cultiva uma paixão pelo obscuro e pela ironia, num registo neo-expressionista que utiliza estratégias plásticas evocativas de uma certa bad painting, ao subverter as noções “ideais” de perspectiva e de proporção. Na sua pintura e desenho, a técnica obedece mais à emoção do que à lógica e nisso resulta o embate emocional com que algumas imagens se apresentam ao observador. É uma obra pouco domesticada. Depois de tantas mortes cíclicas da pintura, ela afirma-se no pecado da narratividade, insistindo num figurativismo quase clássico. Sara Maia é uma rebelde ao optar pelos cânones chamados mais tradicionais numa disciplina considerada em desuso por quem se acha à frente nas tendências. Esta ortodoxia de ser pintora é hoje ousadia, afronta.




Miguel Matos



1Huyghe, René. O Poder da Imagem. Edições 70, Lisboa, 1986.



2idem



3Freud, Sigmund. Teoria Geral das Nevroses, in Introduction à la Psychanalyse, trad. de S. Jankélévitch. Payot, Paris, 1932.



4Trías, Eugenio. O Belo e o Sinistro. Fim de Século, Lisboa, 2005.



5Sacher-Masoch, Leopold. Vénus em Peles. Vizzeo Edições, Parede, 2003.