segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Man Ray, Jorge Martins e Julião Sarmento - Retratos de Mulheres


Entre dadaísmos, surrealismos e experimentalismos uma coisa sempre se manteve ao longo da carreira e da vida de Man Ray: o seu fascínio pelas mulheres. Mais do que isso, o fascínio pelo corpo das mulheres que teve como suas. Mas enquanto muitos artistas guardam para si a intimidade, Man Ray partilhou com o público a imagem da nudez das mulheres com que se relacionou amorosamente. Tal foi o que se passou com a célebre Kiki de Montparnasse em fotografias que ainda hoje são consideradas pornográficas. Mas a mulher que mais duradouramente foi fotografada por Man Ray foi Juliet Browner. O artista conheceu Juliet aquando do seu regresso à America em 1940, na viagem de fuga ao regime Nazi, durante a qual fez uma paragem em Lisboa. Ele tinha 50 anos, ela 28. Durante o resto da sua vida fotografou Juliet. De entre essas imagens, seleccionou o conjunto que seria denominado “The Fifty Faces of Juliet”. É este conjunto de fotografias tiradas entre 1941 e 1955, pertencentes actualmente à colecção Fondazione Marconi, que se mostra esta semana na Fundação Arpad Szènes Vieira da Vilva.
O projecto do livro The Fifty Faces of Juliet foi concebido por Man Ray no início dos anos 50 do século XX em homenagem a Juliet, e consiste numa selecção de fotografias tiradas em Los Angeles, onde Man Ray aplicou várias técnicas e estilos, intervencionadas, coloridas e de dimensões variadas. Man Ray transformava o corpo das suas mulheres em objectos de veneração, nas suas particularidades e nas propriedades mágicas por ele descobertas e que seriam as causas do seu enfeitiçamento. Nesta lógica, a Juliet nua que vemos nestas imagens não será nunca a Juliet que Man Ray observava. Como dizia John Berger no livro Modos de Ver (Ed. Gustavo Gili) “Ser-se nu é ser-se visto nu por outros e, no entanto, não se ser reconhecido por aquilo que se é. O corpo nu, para se tornar um nu, tem de ser visto por alguém enquanto objecto. (A visão dele enquanto objecto estimula o seu uso como objecto.) A nudez revela-se a si própria. O nu é posto à mostra.” Mas o nu não é o único modo de apresentação de Juliet perante a câmara fotográfica. Como reconhecido fotógrafo de moda que foi, Man Ray, evidenciava um gosto pelo glamour hollywoodesco e pelas poses belas e clássicas.
Mas a exposição “Retratos de Mulheres” não conta só com Man Ray. É um triângulo em que os outros lados são contrapontos com um centro em comum: o fascínio pelo ser feminino. Jorge Martins e Julião Sarmento são aqui convocados através do seu olhar sobre a mulher. Jorge Martins apresenta trabalhos feitos entre 1964 e 1973, em Paris, a que chamou Eros cromático. Algumas fotografias foram realizadas no atelier de Vieira da Silva, que a pintora cedia aos artistas que lhe eram próximos. No caso de Jorge Martins, a mulher é fotografada e transformada em imagem pictórica pela intervenção pintada. Um corpo passa a ser uma estrutura de formas e volumes que insinuam um chamamento pela cor, pelo desenho. É nessa manipulação que Jorge martins se aproxima de Man Ray, ao passo que Julião Sarmento já se situa noutro ambiente de fascínio. Nas suas fotografias, que tira desde a década de 60, Julião revela uma admiração pela beleza feminina e pelas idiossincrasias de cada uma das portadoras desse corpo de desejo. Talvez mais fetichista, menos pictórico, mais voyeur, menos sensual, Sarmento apresenta uma abordagem crua e espontânea, apesar de parecer encenar aquilo que se assemelha a frames de um filme.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Vasco Araújo - Com a verdade me enganas...


“Custa muito ser genuína, minha senhora. (…) Somos tanto mais genuínas quanto mais nos parecemos com o que sonhamos”, dizia a personagem de Agrado no filme de Almodóvar Tudo Sobre a Minha Mãe. Esta frase vem a propósito daquilo que julgamos ser o autêntico e o falso. Nisto se inclui a mentira como forma de sobrevivência ou a verdade como impossibilidade, assim como os artifícios com os quais contruímos a nossa identidade. Vasco Araújo reflecte sobre os temas da verdade e do real, do animal e do social na sua exposição “Mente-me”.
Este projecto trata do ponto que separa uma coisa do seu oposto. Usar essa ideia para falar da verdade é assumir que a verdade pode ter dois lados. O título “Mente-me” refere-se não só ao mentir aos outros, mas também ao mentirmos a nós próprios. A exposição reúne fotografia, vídeo e escultura, atestando a multiplicidade de linguagens e suportes a que o artista recorre para a representação plástica de uma ideia, associando imagens a textos literários de correspondência ambígua.

Vasco Araújo tem tido um percurso fulgurante nos últimos anos, com destaque para a sua participação na Bienal de São Paulo, as exposições em Paris, Boston e Vigo, para além da Casa da Cerca e da Fundação Calouste Gulbenkian. Neste momento é um dos nomes mais vincados da sua geração. Na preparação para a exposição individual na Galeria Filomena Soares, Vasco confessa que a seguir precisa de descansar. Mas será isto verdade ou estará a mentir? “Mente-me” é o nome do conjunto de trabalhos que mostra ao público a partir de dia 20.

Todo o trabalho de Araújo tem uma dimensão teatral e “Mente-me” não constitui excepção. No centro está um vídeo em que várias personagens discutem em torno da procura do homem verdadeiro. A dada altura, a personagem central, o velho, diz: “Um homem simples que não tem senão a verdade a dizer é olhado como o perturbador do prazer público. Evitam-no, porque não agrada; evita-se a verdade que anuncia, porque é amarga; evita-se a sinceridade que professa porque não dá frutos senão selvagens; temem-na porque humilha, porque revolta o orgulho, que é a mais cara das paixões. Faz com que nos vejamos tão disformes como somos.”

Esta busca é um eco que vem da Grécia antiga. O filósofo Diógenes de Sinope andava com uma candeia em Atenas à procura do homem verdadeiro. Nesta versão contemporânea, a acção passa-se na floresta à hora do crepúsculo, período de tempo em que não se sabe se é de dia ou de noite. Estas obras tratam dessa indefinição, pois a verdade para uma pessoa não o é necessariamente para outra. No vídeo, as personagens mentem aos outros e a si mesmas. A questão da falsidade é levantada também por um par de gémeos (verdadeiros ou falsos?) que perguntam a um travesti se o seu cabelo é real ou é uma peruca. Mas o que significa isso do real? O cabelo falso não existe na realidade? Não condiz mais com a imagem que o travesti tem de si próprio e que quer projectar aos outros? A obra levanta questões acerca da identidade, do preconceito e das convenções sociais, o artifício, a personagem, a confusão entre o real e o imaginário...

Para além do vídeo “Telos”, em que a filosofia se junta à ironia, há obras de escultura, fotografia e textos, muitos textos que vale a pena descortinar. Há uma escultura que representa um homem de duas cabeças. “É uma história que eu inventei. Um fala o outro pensa. O que fala diz tudo o que lhe apetece e o outro pensa que o primeiro deve ser assertivo e não dizer tudo o que diz”, explica o artista. Existe nesta série uma duplicidade constante que faz parte da vida. Se não podemos dizer a verdade a toda a hora, também nos ensinam que não devemos mentir. Isso obriga-nos a trabalhar para encontrar um equilíbrio nessa dualidade. “Mente-me” apresenta histórias de ambiguidade. Entre a verdade e a mentira está a ficção. No final, a verdade é reconhecer que muitas vezes mentimos.


Miguel Matos

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Alexandra Mesquita - "Livros Vivos"


“Arte é infância. Arte é não saber que o mundo já existe, e fazer um. Não destruir nada que se descobre, mas simplesmente não encontrar nada acabado.” - Rainer Maria Rilke1


Alexandra Mesquita sente uma inquietação filosófica permanente. O questionamento da vida, do ser que é e dos seres que a rodeiam faz parte da sua personalidade e isso passa para os seus “objectos, nervosos” ou “objectos irrequietos”. Estes objectos constituem, afinal, metáforas para as inquietações dos seus donos. Diz-me o que possuis, dir-te-ei quem és? Seguindo uma linhagem duchampiana, mas abandonando teorias, questionamentos estéticos e outros tiques típicos do artista dito “contemporâneo”, Alexandra Mesquita escrutina comportamentos e atitudes, objectificando-os, criando metáforas palpáveis para as tipologias daquilo e daqueles que ela observa e analisa. Neste caminho que segue, a palavra é companheira quase omnipresente. As letras e as palavras, os signos e os símbolos são as linhas com que tem cosido as suas exposições e ao longo do tempo as peças que as constituem têm passado da bidimensionalidade vertical para uma cada vez mais assumida tridimensionalidade em todas as posições imagináveis. Sendo a artista amante das palavras, escritas, cosidas (cozidas?), pensadas, desenhadas, faladas... é, pois, natural, que os livros acabem por ser matéria de exploração. Ainda para mais no contexto de uma exposição inserida dentro de uma livraria. É que dentro de uma livraria há livros mortos e livros vivos. Livros que se vêem, livros que se lêem. Livros que se dirigem a quem por eles passa e outros que nada dizem (uns vivos e silenciosos, outros mortos estarão). Tal como nós, os humanos, que raramente somos livros abertos. Estes livros de Alexandra Mesquita são “Livros Vivos”. Livros que, por teimosia e artes mágicas, se revelam fechados, abertos, silenciosos ou em queda livre.

Já em 1993, Alexandra Mesquita apresentava os livros como suporte. Eram peças com um carácter mais pictórico, mas já pretendiam sugerir que o seu conteudo tinha sido alterado, criando inclusive relevos que podiam simular a destruição pelo fogo, entre outras possiveis sugestões. A utilização e transfiguração de objectos pré-existentes na sociedade de consumo é prática comum no percurso de Alexandra Mesquita. Objectos banais, dos que encontramos nas lojas ou no lixo são elementos de narrativas fragmentadas. Afinal, como refere Catherine Millet, “já os dadaístas haviam dado a entender que não havia razão para não se utilizar também, nas obras de arte, qualquer outro objecto produzido industrialmente”
2. Os livros, pese embora a sua associação directa à cultura e ao conhecimento, são ainda assim objectos de consumo, mas não só. Espelham os interesses e sentimentos de quem os lê ou as aspirações de quem apenas os transporta. Os livros de Alexandra Mesquita reafirmam a dependência da artista em relação à palavra e à comunicação como motor das relações sociais. Nisto dá-nos a observar a palavra viva que se esconde na intimidade codificada em cartas ilegíveis ou a palavra distante que se fecha no seu território geográfico/identitário. A palavra egoísta que não se dá a entender num livro cheio de palavras afins. A palavra diária que se regista para se esconder. A palavra que circula dentro de nós, se recicla e torna a percorrer o corpo alimentando a vida, a palavra que, enfim, desagua no papel e se encontra com outras no mundo-livro. Estes são livros de escritas entrecruzadas que desafiam a descodificação e não apresentam solução à vista. São palavras que se soltam do seu chão e escorrem, mesmo que por vezes sem destino nem receptor.


Miguel Matos


1
Rilke, Rainer Maria. Da Natureza, da Arte e da Linguagem. Largebooks, Lisboa, 2009
2
Millet, Catherine. A Arte Contemporânea. Instituto Piaget, Lisboa, 2000

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

São Trindade


São Trindade só expõe individualmente as suas fotografias há seis anos, mas apresenta um corpo de trabalho impressionante. Entre registos autobiográficos e tributos aos amigos, vai trilhando o seu percurso sem ambições desmedidas. Mesmo assim, é a autora de uma das melhores exposições de fotografia de 2010, “The Tailor”. Um trabalho que indica um valor a observar daqui em diante.
Enquanto as raparigas boazinhas vão para o céu, São Trindade vai para todo o lado. O trabalho desta fotógrafa (nascida em Coruche em 1960) não é, por definição, leve. É mesmo denso e por vezes sujo, como a vida. Mas tem zonas de claridade. As imagens que apresenta saem-lhe das entranhas, sem subterfúgios nem meias palavras. O corpo que retrata é o seu, por vezes como um objecto em performance, outras denotando um abandono, um sentimento de desolação. Mesmo através das suas personagens, São Trindade retrata sempre as suas misérias pessoais, as suas paixões, as suas derrotas ou os afectos que vai consolidando. É um ser humano, antes de ser artista.
Se São Trindade não for nomeada para o Prémio BESphoto pela sua exposição “The Tailor”, na Galeria VPF Cream Art, é porque os membros do júri andaram distraídos este ano. A artista (cuja primeira mostra em nome individual acontece apenas em 2004) entregou aos olhares do público uma exposição de fotografia que não se ficou por esta definição. Foi uma instalação, uma exploração pictórica sobre os limites entre a fotografia e a pintura, sobre a própria história da fotografia e até tocando no auto-retrato, tudo isto arrumado num projecto coerente e sem falhas.
São Trindade fez o curso de Pintura, mas nunca “exerceu” a actividade, enveredando logo pela fotografia. “Comecei a perceber que a pintura não servia para dizer as coisas que eu queria da maneira que eu queria. Tinha uns amigos fotógrafos e aprendi com eles a revelar filmes e comecei a fazer experiências com fotogramas e objectos. O interesse pela fotografia foi crescendo. Não sabia bem como fazer, mas percebi que era importante para mim e que servia para eu dizer as coisas de outra maneira.” Mas a pintura não ficou de lado na vida de São. Continua a fazer, como diz, “muito desorganizadamente”, livros de artistas em que junta colagens, desenhos, pinturas e outras técnicas.
O interesse pelo cinema é algo que também sente desde sempre. No seu trabalho há uma relação constante com o cinema. “Tenho a tendência de fazer trípticos e dípticos com as imagens que muitas vezes nem sequer contam uma história. Na edição tendo a agrupar as imagens.” Este espírito foi mais óbvio quando realizou, em 2009, a exposição “Kglamour” na Kgaleria. Tratava-se de um projecto específico sobre o aniversário da galeria e continha em si o espírito da época dourada de Hollywood, retratando os seus amigos envolvidas no colectivo Kameraphoto.
Voltando ao leitmotiv do seu trabalho: o auto-retrato. Uma das grandes razões porque São se fotografa é porque a maior parte dos projectos que faz tem a ver com as suas experiências, com as suas vivências, a sua vida. “Só há uma hipótese: tenho de ser eu, senão soa-me a falso.” Sendo quase sempre a fotógrafa quem aparece nas imagens, quem nós vemos nas fotografias pode ser a São Trindade, mas também pode ser uma personagem. No entanto, essa personagem vive dentro do corpo de São e por ela foi criada, por isso, até que ponto se pode dizer que essa personagem não se identifica com a fotógrafa? “Acabo por ser sempre eu”, admite.
A expectativa fica no ar sobre qual o próximo capítulo nas imagens de São Trindade: “Não gosto muito de falar nas coisas que vou fazer. Quando o faço há qualquer coisa que sai e que depois faz falta para concretizar...”