No Museu Berardo, Rui Chafes e Orla Barry apresentam até 21 de Agosto a exposição a quatro mãos “Five Rings”. Num percurso pensado como uma sucessão de encenações dentro de uma galeria cavernícola, as peças em dueto encaminham o visitante na exploração da palavra dita, desenhada, esculpida… Um projecto que demorou dez anos para se ver concretizado e que culmina na última sala com a simbiose perfeita dos dois artistas numa instalação capaz de provocar um estado de transe. A Artes & Leilões entrou no mundo das ideias e do ferro de Chafes.
Um dos aspectos que atravessa o seu trabalho é a relação directa com um corpo. Mas é uma relação feita através de um vazio, de uma impossibilidade. Trata-se de um corpo impossível?
A escultura não é um corpo, mas é sobretudo um paradoxo em si porque é a demonstração de uma impossibilidade. Eu não acredito no objecto. Não acho que o objecto seja o fim em si mesmo. Nesse sentido, a escultura relaciona-se com a perda, com a ausência, com o lugar não habitado, mas sobretudo por eu não acreditar no objecto como insubstituível, irreparável, incontornável… No entanto ele é a única possibilidade que nós temos para demonstrar uma ideia.
É uma escultura orgânica?
Se calhar é mais óssea. Tem a ver com o lugar do corpo enquanto espaço efémero, espaço mutante em que já não existem distinções. É como uma carapaça ou um esqueleto que fica a substituir um corpo.
São esculturas como receptáculos “activos”, ou seja, estão à espera de serem usadas, activando uma relação com o espectador mesmo que este não as habite fisicamente?
O meu trabalho é a realização de um espaço utópico que nunca é preenchido. Existem excepções, como foi o caso da obra realizada em colaboração com a Vera Mantero. Nessa obra, o espaço utópico foi violado. Se correu bem ou mal não sei, mas para mim foi importante. Foi precisamente o momento em que publicamente, e de forma irreversível, eu ocupei esse espaço. Por outro lado, a Vera não tem corpo. O corpo dela é uma escultura, uma energia, uma sabedoria, uma consciência. A maior parte das pessoas que vêm o meu trabalho não se apercebe da sua relação com o corpo. Nesta exposição há a peça Three sisters listening to the sound of the earth moving through their bodies com as medidas exactas das bacias das irmãs da Orla Barry. É uma ficção que parte de coisas concretas como as medidas de um corpo.
Já realizou exposições com Fernando Calhau, Vera Mantero, Alberto Carneiro, Orla Barry… O que é que acontece quando trabalha em colaboração com outros artistas? O seu processo criador transforma-se?
É como ir a andar e passar ao pé de abismos. Georg Büchner dizia que cada ser humano é um abismo. Quando nos debruçamos sobre ele temos vertigens. Se eu vou trabalhar com um artista estou a aproximar-me muito desse abismo. Tento sair de lá sem cair.
E sai-se o mesmo após contemplar o abismo?
Nunca se sai o mesmo. Avanço para outras coisas, abro outras portas. Transformo-me, altero-me. Se fosse para ficar na mesma não valia a pena.
Há uma disrupção que permite ao público olhar para a obra de cada artista de uma outra forma…
A questão dos públicos é muito curiosa porque dois artistas têm dois tipos de público diferentes. Quanto mais afastadas forem as suas áreas, mais afastados são os públicos. As experiências que tenho feito dividem muito os públicos. Por exemplo, quando trabalhei com o Pedro Costa havia um público do cinema e outro das artes plásticas, que nunca se tocam. Com a Vera Mantero havia a divisão entre o meu público e o público da dança e da performance. Poucas pessoas conseguem ter a elasticidade para entender as ligações. Nesta exposição há de novo um teste a essa situação e na sala final já não dá para separar as partes, é uma obra única composta pelos vários elementos e em que as valências de cada artista estão condensadas num só resultado.
Os seus trabalhos têm títulos que acrescentam significados. Nas obras de Orla Barry a própria palavra é objectificada e mostrada. Isto torna mais visível aquilo que sempre esteve presente?
Penso que sim. Esta exposição é sobre palavras – escritas, faladas… as palavras dão nomes às pedras e aparecem nos desenhos, nos vídeos… Todas as peças têm títulos e aqui a palavra tem tanta importância como tudo o resto. A matéria do meu trabalho é ferro e palavra. O poder da palavra é muito superior ao da imagem. Uma palavra pode salvar ou pode matar.
Os dois artistas já tinham trabalhado anteriormente. Como é que começou esta exposição que agora vemos, de que ideia partiu e como se desenvolveu a nível conceptual.
Isto foi uma feitiçaria… Fizemos o primeiro trabalho há dez anos na altura em que nos conhecemos, aquando de uma exposição na Bélgica que juntava poesia e artes visuais. Ficámos interessados no trabalho e na personagem um do outro. Quando fizemos a primeira peça em conjunto, começámos imediatamente a pensar num segundo trabalho que é, no fundo, um projecto imparável.
Foi um trabalho sem objectivo definido, como uma relação à distância que no fim poderia ou não ter uma apresentação?
Sim. Durante esses dez anos trocámos cartas, e-mails, faxes, telefonemas, encontros… e desenvolvemos muitos projectos, mas o essencial está aqui. A questão do tempo é essencial, porque há uma diferença gigantesca entre fazer uma exposição num mês ou em dez anos. Nesse período, uma série de dúvidas e certezas vão amadurecendo. Quando há dois anos fomos convidados por Jean-François Chougnet para fazer uma exposição no Museu Berardo, pegámos em todo o material que tínhamos e começámos a adaptá-lo às salas. Escolhemos estas galerias porque são um espaço claustrofóbico, sem janelas nem luz natural, com um tecto baixo. Queríamos espaço fechado e intimista.
Entendo as suas esculturas como estando relacionadas com a linguagem e função da joalharia contemporânea, sendo que o que define esta é, acima de tudo, a relação com um corpo ou a alusão à existência desse corpo. Isto acarreta noções de escala e aplicabilidade ou não das peças, para além de características ritualísticas. O seu trabalho funciona também nestas dimensões. Concorda a associação?
Acho que as palavras têm sempre raízes e essas raízes têm a ver com a nossa História. A escultura também tem várias raízes, naturezas e finalidades. Existe a escultura monumental, que não tem forçosamente a ver com a escala, mas sim com o seu propósito. A ideia de monumento tem a ver com uma colocação estática e com a polis. É uma escultura pesada, mesmo que seja pequena. Não se move, é monolítica. Há vários outros tipos de escultura, entre eles a escultura bárbara, que é a que me interessa. A escultura bárbara é nómada. É a faca que se transporta, o colar, a jóia, o ornamento. As minhas esculturas estão mais próximas dessa flexibilidade. Mesmo as obras de maior dimensão obedecem a uma lógica nómada, de leveza, de instabilidade, de transporte. As minhas esculturas são, de facto, próximas da joalharia, não pela sua utilização mas pela família a que pertencem – a família do ornamento bárbaro. A joalharia também é nómada e se guarda e é preciosa ao nível simbólico e material. Mas a escala e a proporção são diferentes.
Disse já várias vezes que acredita que a obra de arte tem um poder transformador. Não será uma ideia amplamente partilhada pela maioria dos artistas contemporâneos. Em que sentido a obra de arte ainda pode ter esse poder na vida, no pensamento e na cultura?
Se não tiver esse poder transformador não é arte, é outra coisa qualquer… A arte tem de ser capaz de transformar o olhar ou a vida de quem a observa. Não há arte sem transformação, é a transformação de uma coisa em outra.
Por isso não há arte que seja natural…
Sim, não há arte natural. Essa transformação não é magia. É a disciplina que o artista conseguiu para, com a sua experiência e o seu conhecimento, colocar os objectos que faz num plano semântico, simbólico, metafórico e metafísico, que muda alguma coisa nas pessoas. O mundo está cheio de objectos, não é preciso haver mais. A arte que é só uma ideia gira baseada em brincadeiras e gadegts não interessa. Um exemplo de um artista que consegue inverter o mundo e transformá-lo com uma pequena escala e poucos recursos é o Francisco Tropa. Ele trabalha genialmente o mundo dos pequenos nadas. Não é magia. É uma consciência muito apurada.
Os seus trabalhos de escultura impõem uma presença como entes ou presságios. Os ingleses têm a palavra “Omen”, que acho muito adequada…
Eu sei que é muito difícil escrever sobre o meu trabalho porque não existe nada parecido com ele. Portanto, não há muitos referentes conhecidos para começar a construir um discurso. Os pressupostos do meu trabalho estão ancorados em muitas coisas diferentes com distâncias no tempo e no espaço. De facto, são entes ou presenças. É um trabalho que cria uma relação obscura e ambígua com as pessoas. Eu próprio às vezes não o compreendo. Há casos em que só passados anos é que compreendo porque é que fiz determinada peça.
Trata-se de uma obra que não se deixa conhecer por completo. Há um lado enigmático. através do qual se opera um impacto no espectador.
Concordo. É um trabalho que oferece muitas resistências porque é misterioso. É muito mais da esfera do irracional do que do lógico.
Pratica um radical afastamento do lado mais mundano da arte e considera essa distanciação essencial para a sua vida e para o seu trabalho. Porquê?
Faço uma separação muito grande entre o que é a arte enquanto trabalho de pesquisa, investigação e experiência, e a minha vida. Não misturo as coisas. Essa ideia de o artista estar retirado do mundo é, para mim, essencial. Não quero nem preciso de publicidade. Ao contrário de outros artistas, recuso falar para a televisão, recuso retratos, recuso todo esse tipo de promoção e sou muito criterioso nas entrevistas. Vivo uma vida reservada, longe das imagens públicas, e assim quero continuar. Para mim a única coisa que conta é a obra, a escultura, o seu poder evocativo nas pessoas. Tudo o resto, todo o esforço de espectáculo e imposição social, é efémero e prescindo dele. É uma questão de higiene mental e emocional.
Miguel Matos