Miguel Matos teve uma aula de estética em casa de Nadir Afonso e ficou a perceber melhor a sua visão da arte.
Aos 89 anos, Nadir Afonso apresenta na galeria São Mamede uma nova exposição de pinturas a óleo sobre tela e guaches. “Renascimento” é um conjunto de imagens de cidades, o tema mais recorrente do artista. A Time Out aproveitou o pretexto e teve uma conversa que se transformou numa lição de estética e teoria da arte com o mestre do abstraccionismo geométrico.
A cidade é o tema que acompanha desde sempre o seu trabalho. Acha que a cidade é a grande realização humana, um símbolo da civilização?
Como arquitecto é claro que penso no funcionamento da cidade, mas como pintor o tema não tem importância nenhuma. O tema não é a arte. Quando o indivíduo começa a pintar, procura formas que o impressionem mas eu posso ser impressionado por leis que não são artísticas. Como arquitecto tenho de fazer obras perfeitas e a perfeição cria uma emoção, mas a perfeição não pertence à arte.
Antes de ser conhecido como pintor, chegou a trabalhar como arquitecto para Le Corbusier e Oscar Niemeyer. Acha que se não tivesse tido estas experiências a sua obra seria exactamente igual?
Não sei responder a essa pegunta. A arte é irracionalizável. Não sei até que ponto os meus conhecimentos arquitectónicos influenciaram a minha criação artística. É natural que sim, mas não tenho a certeza.
Não considera a arquitectura como arte?
Não, porque a arquitectura tem uma justificação que não é puramente dada pelas leis matemáticas. Está ligada à perfeição, que é uma coisa diferente.
E por ser uma actividade ligada a uma função específica, não é pura criação. Será por isso?
Exactamente. A função da arquitectura é habitada por leis da perfeição que não têm nada a ver com as leis da harmonia, como eu a entendo.
Ao longo da sua vida tem defendido esse princípio em diversos livros e estudos. Pode explicar essa sua concepção de arte e dos mecanismos que a rodeiam?
As leis que regem a obra de arte são leis concretas, matemáticas. Mas essa matemática não é apreendida pelo raciocínio e sim por uma intuição inata. Isto é um bocado complicado... Andei toda a vida a pensar e a escrever sobre isso. Ao mesmo tempo que fui pintor, procurei compreender esses meus impulsos intuitivos. O artista plástico tende a não racionalizar a sua actividade. O esteta, por outro lado, racionaliza mas não tem a intuição inicial. Tenho a impressão de que para se criar uma obra compreensível, capaz de se transmitir, o indivíduo tem de ter a intuição e a racionalização. E só então é que se pode construir uma crítica de arte. Na minha vida procurei ser um prático, ter impulsos intuitivos e depois compreender porque é que num quadro eu pus um quadrado e não um círculo. No fundo, quis compreender os mecanismos da criação...
Mas para além dessas regras, a sua criação procura a beleza?
A beleza tem limites. A obra de arte obedece a leis matemáticas e eu chamo-lhe beleza, mas outros chamam beleza à perfeição e à originalidade. O esteta confunde as coisas. Está a ver uma obra original e diz que é bela. Ela pode ser original mas não ser bela. Por outro lado, pode ser bela e não ser arte. A meu ver a beleza na arte é matemática.
Fala muito da importância da intuição, mas esse é um factor que está cada vez mais afastado da arte contemporânea, não é verdade?
Está, mas ela é essencial. É por isso que a minha concepção estética é oposta à concepção vigente. Pensam que a arte é a natureza vista através de um temperamento. Pensam que o que existe na arte é um factor psicológico do artista. Eu digo que não. O que intervém na arte é o regresso à natureza e a faculdade de o espírito sentir e empregar as suas leis. Eu digo que o espírito apreende a natureza mas não tem factores próprios que sirvam a arte.
Acredita que há sempre um raciocínio lógico por detrás da criação de cada obra de arte?
Sim. Cheguei a esta conclusão: as leis da matemática são incompreensíveis, mas há uma intuição que distingue o bom do mau. Eu não percebia porque fazia as coisas como fazia. Mas depois compreendi que não era uma coisa racional. O indivíduo sente mas não sabe compreender o mecanismo.
Mas pode-se criar uma obra de arte pelo processo inverso? Começar pelas regras e criar a partir delas?
Não. É preciso praticar e sentir primeiro essas leis. Acabei de escrever um estudo em que faço uma síntese de toda a minha démarche artística. Andei toda a vida a tentar compreender as coisas que sentia e acho que agora já consegui. Tenho a inpressão de ter conseguido finalmente fazer uma ligação entre a intuição inicial das formas e as conclusões que tirei depois de racionalizá-la.
E é através da matemática que podemos explicas os impulsos artísticos?
Sim, são fenómenos puramente matemáticos.
E isto funciona para a pintura, para a escultura... e para a arquitectura?
A obra de arte é puramente pictural e escultórica. A arquitectura já funciona de outra maneira.
Defende que a arte pode ser misturada com a política?
Jamais!
Mas muitos artistas defendem conceitos ideológicos através da arte...
As leis da arte não são sociais nem políticas. Na arte pura, o indivíduo deve pôr de parte todas essas manifestações.
A arte pura de que falou agora tem a ver com uma busca do absoluto. A que se refere o Nadir quando diz que procura esse absoluto?
É o ser total. É o ser em que a lei matemática é essencial.
Julga ter atingido já esse absoluto em algumas obras? Como sabe que o atingiu?
Sei disso quando olho para uma obra e não sinto necessidade de alterá-la. Quando sinto que posso ainda alterar uma obra é porque não cheguei a atingir o absoluto. Agora, pode haver uma evolução na sensibilidade. Eu posso fisicamente estar inferiorizado, mas, e talvez isto seja uma imodéstia, sinto que do ponto de vista mental e psicológico, eu evoluí. Não tenho as faculdades que tinha aos 30 anos mas tenho uma sensibilidade mais aguda e por isso posso retocar os meus quadros porque agora sinto mais a matemática da obra. Acho que a minha sensibilidade está mais refinada, mais requintada.
“Renascimento” está patente na galeria São Mamede (Rua da Escola Politécnica, 167) até 10 de Novembro. De segunda a sexta das 10.30 às 20.00 e sábados das 11.00 às 19.00. A entrada é gratuita.
Time Out, 27 de Outubro de 2009
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