segunda-feira, 13 de julho de 2009
Kolovrat: entre o caos, a ordem e a entropia
Kolovrat: entre o caos, a ordem e a entropia
por Miguel Matos
“Estou a descobrir uma coisa: aquilo que se relaciona com o corpo está automaticamente relacionado com o espaço”, diz Lidija Kolovrat, a criadora nascida na Bósnia e que desde 1990 escolhe Portugal como seu território emocional.
Na sua pesquisa artística, Lucio Fontana pensou no vestuário como extensão e evolução natural da sua obra, saltando fora da tela que já tinha esquartejado na busca de novos espaços de intervenção plástica. Segundo Germano Celant, curador da Bienal de Florença de 1996 sob a égide do tema Looking at Fashion, Fontana buscava “a fronteira entre interior e exterior, entre tecido e pele, entre vestuário e nudez”. É nesta tradição artística que podemos enquadrar o trabalho de Lidija Kolovrat.
A criadora corta, retalha, cola, queima, junta e separa, recicla e abandona. Com este movimento paradoxal, Lidija Kolovrat cria a partir do caos controlado. Ao mesmo tempo que tudo no seu trabalho é fruto da espontaneidade, nada é deixado ao acaso. O aparente improviso é sempre pensado, calculado. Só após lançadas as bases de trabalho é que ela se lança na experimentação. As buscas de volumes, de torções de materiais e distorções de linhas e cores, são manipulações numa demanda plástica, uma procura de meios de expressão mutáveis e mutantes. O corpo aparece como suporte de uma peça. Não é a peça que serve o corpo. A roupa (e falamos de roupa como nomenclatura de um determinado objecto que pode ser autónomo, ou seja objecto “por si”) não elogia o corpo, não serve este, mas veicula ideias, mensagens, preocupações. Tal como o anti-desenho acabava por apelar a objectos indefinidos que por esta qualidade se definiam e saltavam do papel e dos materiais ao desenho atribuídos, Kolovrat cria peças de roupa que são talvez anti-roupa (?) ao abandonarem a tridimensionalidade de um adereço tradicionalmente destinado ao corpo. São como telas que se podem usar ou como saias que se podem pendurar. São tecidos serigrafados, pintados, esculpidos directamente sobre o corpo, desrespeitando-o no processo, mas obedecendo a este em última instância. Em casos extremos, uma peça deixa de ser aplicável ao corpo para representá-lo ou simbolizá-lo, marcando até a sua ausência, ganhando assim autonomia. Dois vestidos unidos pelos braços, uma roda de corpos, num registo performático. Todo este experimentalismo apropria-se de alguns processos e materiais da moda e não deixa de ser moda, mas utiliza a linguagem das artes, terminando num produto híbrido com este resultado desconcertante, provocatório e por vezes aleatório. Estes elementos pertencentes ao mundo filosófico ou social são depois mastigados, declinados para darem origem a vestuário. O vestuário como medium e não como função.
Exprimir e repensar um modo de vida, sublinhar a liberdade, reaproximar a arte do quotidiano, como os artistas pensaram a obra de arte total. Repescando o contexto da arte futurista e a sua relação com a moda, rejeitando os espartilhos das artes plásticas, a autora Florence Müller refere a estética do efémero de Marinetti e Giacomo Balla que traduzia em tecido “os elementos de síntese estudados em pintura, como a linha-velocidade, as formas-barulhos e os ritmos cromáticos”. Lidija Kolovrat, analogamente às linhas orientadoras dos futuristas, recontextualiza o indivíduo no meio social e urbano enfatizando os fenómenos sociais, provocando o questionamento acerca da nossa posição face ao mundo físico e ao mundo das ideias, aos condicionalismos políticos e ideológicos. Não se poderá falar de um conceito unificador da sua obra mas sim de um leitmotiv que insiste, contra a moda passageira e mundana, num uso lúdico destas peças, uso esse que reforça a idiossincrasia de quem a porta e não o espelho do gosto da época.
Numa das suas colecções mais bem conseguidas, a autora pega fogo a uma saia vermelha e com isso quase incendeia todo o seu atelier. Em outra das suas experiências, veste um amigo com um casaco que posteriormente é envolvido em látex, imobilizando o voluntário durante horas. Ele só é libertado à força de tesouras que finalmente redefinem as aberuras do casaco e revelam a sua forma e aspecto finais - registo final de um acto performático? Um casaco de aspecto usado adquire mais uma camada semântica ao ser “desenhado” a quente por pontas de cigarro acesas. Casacos de cabedal obsoletos pela mudança de gosto ao longo de 20 anos ganham novos volumes pela subversão da sua normal utilização. Eles são sujeitos à inversão, recortados para os mesmos membros em novos locais e ganham assim nova ordem. É este o método de Lidija Kolovrat: pegar nas regras, nas coisas normalizadas, repensá-las e apresentá-las à luz das suas preocupações ecológicas, sociais e políticas.
Lidija está neste momento a mudar de estado criativo. Está a deixar para trás o já histórico atelier/galeria Pedro e o Lobo, onde tem alimentado o seu KolovratLab e está a deixar progressivamente o ambiente Moda Lisboa como plataforma onde apresenta as colecções ao grande público e à imprensa. Doravante, os seus fiéis clientes entrarão num outro casulo. O atelier será construído na intimidade da sua casa e as colecções serão apresentadas em galerias ou outros espaços menos convencionais, adicionando mais um ponto à indefinição e multidisciplinaridade das suas peças. Este leilão na P4 Live Auctions funciona como um ponto de situação, uma visão histórica, uma reflexão retrospectiva sobre vinte anos do trabalho de Kolovrat.
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