As fotografias de Edgar Martins, vencedor da última edição do prémio BES Photo, andam a correr o mundo numa polémica sobre os limites da arte, do jornalismo e da intervenção digital nas imagens publicadas em meios de comunicação. Tudo se passou nas páginas da revista do jornal americano New York Times que encomendou ao artista português um ensaio fotográfico sobre a crise do mercado imobiliário. As fotografias mostram o interior de casas abandonadas e ruínas de edifícios em 19 cidades dos Estados Unidos. O trabalho fotográfico “Ruins of the Second Gilded Age” foi publicado na revista e no site do New York Times, tendo depois sido retirado da net. Porquê? Porque todo o ensaio foi divulgado como sendo um trabalho sem qualquer manipulação digital de imagens, mas um leitor mais atento conseguiu descobrir uma série de pistas inequívocas que deixam a descoberto muito truque de Photoshop. “A maioria das imagens não reflectiam inteiramente a realidade que pretendiam mostrar. Se os editores soubessem que as fotografias tinham sido digitalmente manipuladas, não teriam publicado o ensaio fotográfico”, é o comunicado do NY Times, que até à data de fecho de edição não respondeu às tentativas de contacto da Time Out Lisboa. A notícia do presumível embuste corre já em dezenas de jornais, revistas e blogs. Por todo o lado há indignação, acusações e defesas que de degladiam num tumulto de argumentos e debatem a arte e o fotojornalismo como arqui-inimigos. Curioso é ver que os jornalistas crucificam o fotógrafo, assim como os artistas esfregam as mãos de contentes com este percalço, ao ver um eventual concorrente na iminência de se afundar. Os críticos e curadores de arte contemporânea relegam a questão para segundo plano e defendem Edgar Martins.
As fotografias que valeram a Edgar Martins 25 mil euros de prémio BES Photo eram imagens captadas na escuridão, com exposições prolongadas, que lhe valeram noites passadas ao relento. Quanto à manipulação digital a elas aplicada, não se faz referência, mas qualquer espectador que as visse, adivinhava a sua existência. Gerry Badger, fotógrafo, arquitecto e crítico de fotografia, diz, no livro publicado no contexto do BES Photo: “Cada imagem fotográfica é um paradoxo. Somos implicitamente levados a acreditar (e com uma força poderosa) na verosimilhança de uma fotografia. Contudo, cada imagem fotográfica é essencialmente um simulacro estático e artificial da realidade”. O que Edgar Martins fez no NY Times foi, por exemplo, copiar algum lixo que está no chão de uma sala, e reproduzi-lo ao lado, para preencher uma falha na imagem. Recortou um interruptor e copiou-o noutra parede para criar simetria. Edgar Martins não é um jornalista e esta é a sua primeira fotoreportagem (talvez também a última). Ele é, acima de tudo, um artista e foi no conhecimento do seu trabalho de arte que o NY Times lhe fez uma encomenda. Desta decisão pode-se questionar: até que ponto é que um artista se consegue submeter à condição de retratista, à simples captação da realidade?
A posição do júri do prémio Bes Photo é de menosprezo a esta confusão, visto ser partidário da divisão entre fotojornalismo e arte. E se naquele há regras, nesta elas são sempre questionáveis e, portanto, tudo é permitido. O crítico de arte Alexandre Pomar comenta a polémica da seguinte forma: “Espero que esta situação possa fazer avançar a discussão sobre a questão da verdade e da mentira na fotografia e na arte em geral. As fotografias são sempre construídas, mesmo aquelas que passam por transparentes, objectivas ou realistas. É isso que o debate vai tornar claro. A manipulação que se faz por processos digitais apenas apura, melhora aquela que é possível por processos analógicos”. Mesmo que se trate de uma fotografia de reportagem há sempre uma construção que assenta no espaço e no tempo, no recorte de uma cena e no parar de um momento. “Toda a arte pode ser uma ilusão, grande parte da arte tem a ver com a mentira”, admite Alexandre Pomar. “Essa ideia de averiguar se uma imagem é ou não verdadeira tem muito pouco sentido. Não há razões para considerar que o fotojornalismo tem uma garantia de verdade ou de autenticidade e sabe-se que todas as fotografias passam sempre pelo Photoshop. Esta discussão tem-se afastado do tema do trabalho, sobre a crise ecomómica e ela não é modificada ou viciada pela alteração fotográfica”. E acrescenta ainda: “Parece usar-se uma abordagem convencional ou ingénua e mesmo redutora da fotografia "jornalística" mais tradicional numa situação em que se encomenda a um fotógrafo-artista (e se aceita) um trabalho artístico de propósito documental”.
Hoje em dia, devido às capacidades digitais, a criatividade passou a assumir um papel preponderante e é preciso distinguir a criatividade encomendada daquilo que é a criatividade autónoma em que o artista adapta a realidade à sua visão. A Time Out pediu um parecer sobre esta história a João Palmeiro, presidente da Associação Portuguesa de Imprensa: “Parece-me que o protagonista deste caso está de boa fé e que não pretende enganar ninguém”, responde. “Aqui há uma confusão que se estabelece porque estas regras estão muito fluidas. O que me parece ser o caso é a vontade de o encomendador ter um produto que, para além de traduzir uma realidade, o faz com uma determinada qualidade estética”. Na opinião de João Palmeiro, essa vontade foi mal interpretada. “Estamos perante uma falta de educação acerca dos valores e direitos associados à criatividade, o que permitiu que um jornal muito conceituado encomendasse a um artista uma visão da realidade, não o acautelando suficientemente de que essa realidade deveria estar contida dentro dos limites jornalísticos. Por outro lado, o artista entende que isso não constitui para ele um limite e que não pode fazer um relatório daquilo que vê sem lhe dar uma qualidade estética. Por vezes as duas partes não concebem que a encomenda possa ser mal-entendida. Situações destas acabam por ser ridículas”, conclui. A declaração de Hamburgo, que os editores europeus assinaram na semana passada em Lisboa trata exactamente estas questões de autoria e direitos de difusão, para além de discutir e regular o uso das tecnologias e a educação para a criatividade.
É claro que num jornal nem o mais ínfimo pormenor de manipulação é aceitável. E é clara também a posição do New York Times acerca da modificação digital de imagens. Aqui, tanto o fotógrafo como os editores foram ingénuos. O primeiro ao achar que nunca ninguém notaria a sua intervenção nas imagens. Os segundos por acharem que um artista seria tão objectivo quanto um jornalista. Terá Edgar Martins metido o pé na argola? Certamente, pois poderia ter tido mais cuidado na apresentação e defesa do seu trabalho. Terá ele dado um tiro no pé? Só o tempo o dirá, mas no campo artístico, os grandes nomes estão a seu favor. A curadora independente Lúcia Marques já teve oportunidade de trabalhar com Edgar Martins. Quando tomou conhecimento desta história, a sua primeira reacção foi dizer: “é um excelente profissional e para mim é inacreditável que o Edgar tenha mentido numa situação em que tenha manipulado as fotografias”. Lúcia Marques acha que “por um lado se está a dar muita divulgação ao Edgar, mas num primeiro momento, tudo isto prejudica-o. No entanto a memória das pessoas é curta e se o trabalho dele é bom, o seu sucesso vai continuar. Isto até pode ser positivo pelos debates que podem surgir, mas é preciso aproveitar as polémicas no melhor sentido e não alimentar esta história comezinha”. Para já, está na calha a edição em livro deste projecto que será exposto em Outubro na Galeria Graça Brandão, em Lisboa.
Edgar Martins em entrevista
Quando entregaste estas fotografias para publicação de alguma forma sonhavas com uma polémica destas proporções?
Eu já previa que surgisse este debate, mas não o rumo que a conversa tomou. Apesar de eu não ter divulgado a forma como estas imagens foram produzidas, também nunca tentei esconder o facto de que estas imagens representavam construções e nunca escondi os próprios originais. Eu não sabia como é que este ensaio fotográfico iria ser apresentado ao público nem vi os layouts do artigo em antemão.
Mas então tu nunca baseaste o teu trabalho na premissa da não utilização de manipulações digitais?
É claro que nunca disse isso. O facto de eu não ter utilizado Photoshop em projectos específicos não significa que nunca o utilize. Sempre evitei falar sobre o processo de trabalho das minhas fotografias. Faço com que as imagens sejam ambíguas para que sejam as próprias pessoas a pensarem no porquê de as coisas estarem ali. O meu erro foi ter divulgado esses elementos em entrevistas. Com isso algumas pessoas formaram a ideia de que eu sou um purista e isso não é verdade. Apesar de eu não ter usado computadores nos projectos mais conhecidos, por vezes recorro a eles em outros projectos que provavelmente são menos divulgados. Como artista tenho que recorrer a todas as técnicas à minha volta.
Mas no site da tua editora, a Aperture, aparece um texto que salienta o facto de não usares tratamentos digitais, texto esse que foi, entretanto, alterado...
Não tenho qualquer controlo sobre essas sinopses que são escritas por outras pessoas e que depois são divulgadas. É óbvio que afirmei isso, mas no contexto de projectos muito específicos, como o livro “Topologies”.
Já aquando da atribuição do prémio BES Photo, disseste à Time Out que queres levantar questões e asumir comentários à realidade através das tuas fotografias...
Em vez de fazer um registo factual, estou a comentar a situação e a assumir-me como autor de um ponto de vista. Não são meras observações. Para aqueles que não entendem a relação entre a arte e a fotografia, isto parecerá apenas uma justificação. No fundo, cada uma destas fotografias assume a priori que é uma representação e portanto lida também com a questão de comunicar ideias.
Nas fotografias do BES Photo usaste Photoshop?
Essas imagens são quatro obras de um projecto extenso e que contou com várias coisas, nomeadamente as longas exposições, duplas e triplas exposições e, em alguns casos, elementos de digitalização. Mas não quero falar mais do processo. Neste contexto do NY Times percebo porque temos que falar disso, mas no campo das artes isso não faz sentido. Até mesmo no livro “Topologies”, o tal que foi definido por não ter intervenção digital, há sempre imagens que têm de passar por um processo digital, mas isso não significa que a construção da imagem seja digital. Na maioria das vezes é uma questão de restauro da imagem, para não ter riscos, por exemplo. Mas de agora em diante vou optar por não falar acerca destes processos porque se está a perder demasiado tempo a questionar as coisas erradas.
E quando o NY Times te encomendou este projecto, falou-se sobre a não utilização de intervenção digital?
Não posso ser explícito em relação a isso. Só posso dizer que tenho consciência das ansiedades que existem em relação a essa questão. O nosso ponto de partida, meu e do jornal, era diferente. A postura do NY Times tem sido de admitir que houve uma contradição, mas não me culpando directamente por ela. As pessoas podem ler nisso o que quiserem.
Então isso simplesmente não foi debatido antes de fazeres o trabalho?
Não posso dizer isso. A questão não é tão simples e por isso é que não posso dar uma resposta.
Mas faz parte das regras do jornal a não manipulação das imagens...
Não tinha conhecimento disso. Fiquei a saber depois, mas isso não significa que eles não me tenham dado a conhecer essa posição. Só que eu entendi que essas preocupações seriam aplicadas apenas no meio estritamente jornalístico. Se eu estivesse ciente de que isto era um trabalho totalmente jornalístico e que seria passível de acção em tribunal caso agisse em contrário, não me colocaria numa situação destas.
Achas que esta polémica se pode transformar em publicidade para o teu trabalho?
Esta controvérsia está a levantar questões sobre parâmetros e fronteiras que são desconfortáveis e que me parece serem evitadas no meio jornalístico. Através do meu trabalho sempre tentei silenciar o sensacionalismo e essa é a minha atitude na vida, tento evitar a intriga e o conflito. Se pode dar uma plataforma diferente ao meu trabalho, sim, é verdade. Para os puristas da fotografia, pode proporcionar uma plataforma negativa, mas para aqueles que de facto gostam de fotografia e de debate, pode ser uma coisa positiva. Para já, houve mais visitas ao meu website nos últimos dias do que nos últimos anos.
Time Out Lisboa, 22 Julho 2009
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