Miguel Branco traz à mira do olho animais. Animais banais como galinhas, avestruzes, macacos, cães... Seres ambíguos que nos questionam, sem sabermos porquê. Que nos aprovam e reprovam sem sabermos como. Que nos interpelam sem nada dizer. Sujeitos que representam uma busca do vazio para encontrar algo que está dentro de nós. Desde há 25 anos que Miguel Branco exulta e subverte as tradições menores, pondo-as ao uso de uma proposta insólita e singular. Mantém a presença da figuração na sua obra, mas não é esta que está em primeiro plano na sua pesquisa e sim um jogo de requintes surrealistas que questiona a função da pintura e da escultura nos dias de hoje.
Os trabalhos de Miguel Branco recorrem a uma miríade de referências diferentes e revisitam elementos pertencentes a géneros considerados menores como a arte animalista, a natureza morta ou as vanitas, a arte subalterna como o cinema de série B e outras coisas fora da hierarquia de uma arte grande. São influências vindas da pulverização imagética de um quotidiano saturado. «Isto tem a ver com uma descrença da minha parte em tudo aquilo que é pomposo. Logo, fui pelo lado oposto», diz. Conhecendo o seu trabalho, parece que todas essas referências juntas acabam por criar um mundo extraído de um bizarro filme com personagens de uma história que nós não conseguimos ver... «Estes trabalhos não procuram ter uma narrativa. Pelo contrário, tentam funcionar em curto-circuito», assume Branco. Quando monta uma exposição, Miguel Branco faz por escoher peças que não possuem nexo quando alinhadas umas com as outras. «Para mim é importante criar um sistema desconexo, como estilhaços de sentidos que vêm de imensos lados diferentes. O meu trabalho andou sempre à volta de um esvaziamento de um sentido narrativo». As suas minúsculas pinturas e esculturas escapam a categorias e produzem no observador uma estranha vibração à medida que este se aproxima para as conhecer melhor. A pequena escala só aumenta o mistério e prova que a força pictórica pode ser condensada em poucos centímetros quadrados. «O espectador é arrastado para um peep show mútuo: para que o quadro fale, também ele deve aproximar-se ou afastar-se (...), partilhando o protagonismo com o que é representado», diz Manuel Castro Caldas no recente livro sobre Miguel Branco (ed. ADIAC/Assírio&Alvim).
Miguel Branco é alguém que pinta e que gosta da tradição da pintura, mas depois de tantas rupturas e revoluções estéticas, depois do pós-modernismo, como é que isto é possível? A morte da pintura é assunto ele próprio moribundo. Como pode hoje a pintura existir? Miguel responde: «mediante determinadas condições e muitas restrições. No meu caso não se trata tanto de um trabalho que fala da morte da pintura mas sim de um trabalho que quer fazer alguma coisa com isso. Ou seja, que ainda acredita na sua sua possibilidade, mas dentro de um campo reduzido. O que interessa aqui não é constatar a morte da pintura. É preciso compreender qual é ainda o seu possível comprimento de onda. Para mim a pintura é um meio privilegiado e universal de veicular sentido».
Na busca de sentidos e possibilidades, apareceram as séries de pinturas com aves. «Eu estava interessado em fazer uma pintura bastante operática e exuberante em termos sensoriais. A galinha é provavelmente o animal próximo de nós com menos psicologia, enquanto o macaco ou o cão são o pólo oposto. As galinhas remetem para a pintura do século dezoito, em que os efeitos lumínicos eram trabalhados com alguma economia mas com sofisticação dentro de um jogo plástico.» Nos seus quadros, Miguel Branco parece iluminar os seus animais como se eles fossem objectos. Interessa-lhe, no caso da pintura animalista, fazer um cruzamento entre a paisagem, o retrato e a natureza-morta. São animais que parecem objectos porque estão numa posição de ambiguidade, em que não conseguimos saber se estão vivos, parecem autómatos.
Depois da sua primeira exposição individual, em 1988 onde apresentou esculturas em terracota e desenhos, Miguel Branco dedicou-se exclusivamente à pintura, com intervalos entre fases devido a aparentes esgotamentos de ideias. Nessas alturas intercalou a pintura com a produção de escultura. «Em 1996 achei que o meu trabalho tinha chegado a uma espécie de beco sem saída e que já não era uma coisa vital», confessa. «Assim, deixei de pintar e fui viver para Londres durante dois anos. Foi muito importante, parar para pensar. Em Londres, comecei a fazer as primeiras esculturas minúsculas em fimo. Mas é preciso dizer que essas esculturas não tinham qualquer relação com o meu trabalho e nunca pensei em expô-las. Comecei por fazer bonecos de plasticina com os meus sobrinhos no Natal e no Ano Novo. Depois levei os materiais para Londres e fiz mais, sempre com um propósito meramente lúdico. A certa altura comecei a ter a mesa cheia de bonecos».
O fimo, material mais associado ao artesanato e ao universo infantil do que propriamente à produção artística, faz parte desse plano de adoptar as técnicas, modos e assuntos “menores”. O que se disse sobre a pintura assume então uma dimensão mais radical. Por outro lado, permitiu a Miguel Branco obter peças com um aspecto que é ao mesmo tempo plástico e orgânico. «Quando voltei vim com a ideia de fazer uma exposição com aquelas peças, mas achava que eram muito pequenas. Depois voltei a pintar e fiz coisas muito díspares. Comecei a pintar nuvens, montanhas, figuras humanas...». Entretanto, as dimensões das pinturas passaram a ser ainda mais reduzidas: «os quadros de animais, na altura em que deixei de pintar, tinham 40x50cm. Quando achei que isso não interessava, mandei cortar as madeiras em pedaços pequenos e pu-las na mala quando fui para Londres, pensando que serviriam para fazer esboços para pinturas maiores. Quando comecei a pintar nesses tamanhos, ao terceiro ou quarto dia, percebi que esta escala dava-me a possibilidade de pintar qualquer coisa. Isso foi uma liberdade enorme. É uma dimensão que se afasta da escala pública, foge da pintura decorativa e isso permite-me uma variação temática. Tornou-se uma questão de criar coisas condensadas. E há pinturas que, apesar de muito pequenas, aguentam uma parede inteira». De facto, Miguel Branco trabalha sempre no limite. A limitação do tema, da escala, do suporte ou do material... sempre com obstáculos. «Acho que não se pode trabalhar de outra maneira. À medida que os quadros foram encolhendo, também se foram tornando mais soltos. Algumas imagens quase se desfazem quando nos aproximamos delas. Interessou-me criar um dispositivo óptico».
Dentro do reino de Branco, distinguem-se os territórios da pintura e da escultura, esta última numa linguagem muito mais depurada, contida, quase minimal. «Estas esculturas são como bonecos, brinquedos, coisas industriais ou objectos de um ritual... o lado da magia está ainda mais presente nestas formas. E depois a escala pequena confere-lhes hibridez». Agora está a trabalhar em direcções diferentes. A sua bela corça em bronze é um trabalho que apresenta já uma presença escultórica forte, indicadora de novas incursões que aguardamos com curiosidade deste lado do espelho.
Umbigo, Setembro 2009
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