Leonel Moura, embaixador português para o Ano Europeu da Criatividade e Inovação, lançou um livro sobre uma lata de dejectos humanos. Para Miguel Matos, isto é pretexto para uma conversa.
30 Gramas é o mais recente livro de Leonel Moura. Anda à volta de uma famosa obra do artista italiano Piero Manzoni: um senhor que em 1961 encheu uma série de latas com 30 gramas de excrementos seus e anunciou o preço de cada uma como sendo correspondente ao seu peso em ouro. Neste livro, a “Merda d’artista” despoleta uma perseguição à verdade. Mas a verdade, como diz o autor, não é o “assunto da arte”.
Este livro fala de temas complicados na arte. Porque é que partiu da ousadia de Piero Manzoni para criar uma história?
A carreira dele é curta, pois morreu cedo, mas fez coisas muito interessantes no final dos anos 50. Por exemplo, desenhou uma linha num rolo enorme de papel, que depois selou e ficou fechado. Mas a sua obra maior é a “Merda d’artista”. Manzoni pertenceu a um movimento artístico italiano contra a arte convencional, em que a própria atitude começa a ser uma obra de arte. Ele fez 90 latas que hoje em dia são compradas pelos museus a preços fabulosos, mas há uma espécie de enigma em relação ao que está lá dentro. Há quem diga que não têm nada. A verdade é que esse assunto nunca foi esclarecido e os próprios museus rotulam a obra sem definir o seu conteúdo. Peguei neste mistério e aproveitei para fazer uma espécie de viagem pela arte mais incompreendida do século XX.
O Leonel também propõe uma rotura na arte. Destaca-se por ser o pioneiro em Portugal a criar arte com robôs...
Sempre tive a ideia de que se eu queria ser um artista a sério teria de ter conhecimentos fora do âmbito da arte. No final dos anos 80, isso tornou-se uma questão radical. Decidi abandonar o meio artístico porque achava que andava tudo à volta das mesmas coisas e era difícil fugir a isso. Larguei as galerias com que trabalhava e cortei relações com alguns artistas. Na arte e na ciência, para se resolver um problema é necessário sair do contexto desse problema.
Mas aquando de Lisboa 94 Capital da Cultura, apareceram várias obras suas de arte pública e são célebres as interpretações de retratos de gente importante como Amália Rodrigues.
O problema de um artista que se torna conhecido por um tipo de obra é que as pessoas querem mais daquilo e nós temos de responder. Ainda hoje há pessoas que vêm ao meu ateliê perguntar se eu tenho Amálias! Aliás, este ano há a grande exposição no Museu Berardo sobre Amália Rodrigues e é claro que vão lá estar os meus trabalhos, é inevitável. Sou perseguido pelo fantasma da Amália. Gostava muito dela do ponto de vista pessoal, mas a minha ideia não era fazer um retrato da Amália. A obra tinha mais a ver com a questão de um país periférico como Portugal e dos seus problemas com a identidade.
E quando se dá a sua retirada, investe no campo da ciência. Por onde começou?
Numa primeira fase, deixei-me fascinar por algumas ideias da ciência. Desde muito jovem sempre li livros sobre ciência e gosto de tentar perceber algumas coisas. O que mais me deu a volta à cabeça foi perceber que as coisas não funcionam em processos lineares ou consequentes. Percebi que tudo funciona numa base caótica, aleatória e de repente é que as coisas se transformam e dão origem a algo que nós conhecemos. Todo o sistema da produção de arte em que se concebe uma coisa com processos lineares até chegar a um quadro é completamente obsoleto. Tenho de fazer obras de arte em que eu desencadeio o processo mas não sei no que vão dar porque isso é que se aproxima da realidade natural. Comecei a interessar-me por algoritmos que simulam comportamentos da vida e geram formas imprevisíveis. Depois acabei por chegar à robótica porque queria sair do computador.
Não chegou a enveredar pela bioarte. Não tem o complexo de Deus, portanto?
Nada disso. Não sou crente, pelo contrário. Estou a simular mecanismos da natureza, mas isso não tem nada a ver até porque eu acho que a natureza não foi criada por Deus. Não quis enveredar pela bioarte porque não me agrada manipular a vida real. Tenho muito respeito pela vida desde a mais pequena bactéria ao elefante.
Com esta vertente artística ainda pouco explorada, está no fundo a questionar profundamente a arte e os seus processos. Tal como Manzoni...
A arte é para construir mitos e novas ideias. Só quando nós fazemos uma coisa que transforma a própria noção de arte é que estamos a fazer arte. A arte a partir do século XX não tem de representar nada. É uma coisa em si própria. E depois de Duchamp ainda mais. Os ready-mades (o urinol, por exemplo) têm interesse não como objectos mas porque desencadearam a transformação da arte. Isto ligou a arte ao conceito de inovação.
O Leonel Moura foi nomeado embaixador em Portugal para o Ano Europeu da Criatividade e Inovação, junto com figuras de renome mundial como por exemplo, o designer Philippe Starck, o arquitecto Rem Koolhaas, a coreógrafa Anne Keersmaeker e Erno Rubik, o criador do cubo mágico. Que balanço faz desta iniciativa?
Tem sido uma experiência interessante. A ideia, desde a primeira reunião que fizemos em Praga, foi fazer um manifesto da criatividade. Em cada país temos promovido conferências e por cá temos a decorrer o Concurso de Ideias Criativas. Mas o essencial do trabalho tem sido redigir o manifesto que está quase pronto e será publicamente anunciado em Setembro. Somos mais de 20 pessoas com entendimentos diferentes sobre o que é a criatividade. Este será um documento interessante pois tem uma série de reocomendações para a União Europeia. Uma das conclusões é que todos os problemas vão dar à educação. Uma das coisas que observamos em Portugal é que a nossa escola está pouco virada para a expresão criativa. Os professores debitam conhecimentos que os alunos memorizam, o que não tem qualquer interesse. Temos de fazer uma grande revolução no ensino, mas no nosso país vai ser muito difícil porque qualquer modificação que se faça tem sempre a oposição dos professores.
Tal como defende a subversão dos mecanismos da arte, Leonel Moura deixou de ser o artista que pinta quadros e é mais como o galerista que representa os seus artistas robôs. Mudou-se para a Lx Factory e prepara para breve mais um livro, desta vez de poesia escrita por um robô.
O Robotarium, ateliê e galeria de Leonel Moura fica na Lx Factory (Rua Rodrigues Faria, 103, H2.0) e está aberto de segunda a sábado das 10.00 às 19.00.
Time Out, 28 de Julho de 2009
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