quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Paula Rego - Nossa Senhora das Histórias



Paula Rego viveu desde os sete anos no Estoril e foi lá que o seu imaginário começou a florescer. Agora é em Cascais que encontra a sua segunda casa: a Casa das Histórias Paula Rego. O museu de torres altas da cor do tijolo, desenhado pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura, abre as suas portas na sexta-feira. Miguel Matos foi recebido pela artista.

“Interessa-me aprender a desenhar melhor. É o que eu gostava, mas demora tempo e é preciso muito trabalho”, confessou Paula Rego à Time Out, como se tivesse ainda muito caminho por fazer. Na Casa das Histórias Paula Rego conta-se a história de evolução da artista e o processo de como ela chega à linguagem que tem hoje.

A Casa das Histórias Paula Rego é caso raro entre os museus portugueses. Setecentos e cinquenta metros quadrados pensados e concebidos desde o primeiro tijolo para instalar uma colecção própria. Ou seja, um projecto integrado que tem em conta a escala do país e da zona em que está inserido, nunca esquecendo a dimensão internacional da artista.
A colecção da Casa das Histórias foi toda ela doada por Paula Rego, que manifestou desde o início total disponibilidade e empenho no projecto. Ofereceu ao museu toda a sua obra gravada (ao todo são 257 gravuras, serigrafias e litografias), assim como centenas de desenhos e aguarelas que vão desde pequenos esquiços, esboços e estudos onde busca espontaneamente a forma e as composições. Para além disto, ainda emprestou por dez anos (renováveis por período idêntico) toda a sua colecção de pintura e desenho, com exemplares icónicos, anteriormente presentes nas retrospectivas de Serralves e Museu Reina Sofia de Madrid. “A colecção de Paula Rego permite mostrar todo o seu percurso criativo”, diz Dalila Rodrigues, directora do museu. “Por isso organizámos o percurso expositivo a partir de critérios cronológicos, cruzando temáticas e técnicas em salas sequenciais.”

Que história se conta nesta casa de altas chaminés? Tudo começa logo nos primeiros anos da pintora, com as suas primeiras colagens e uma abordagem quase abstractizante onde critica o Portugal salazarista dos anos 50 e 60. Passa depois para os anos 80 com as temáticas relacionadas com a sexualidade e uma agressividade muito perturbadora, narrativas interpretadas maioritariamente por animais como o leão, o coelho, o urso... São contos centrados em questões de dominação e poder no seio da família. “Em vez de se apropriar de imagens, mutilá-las e cortá-las como nas primeiras obras, ela regressa ao desenho, executado directamente sobre o suporte”, explica Dalila Rodrigues. “No seu percurso, ela vai passando gradualmente de um registo abstracto para o figurativismo realista. No final dos anos 80, na série de pinturas e gravuras Meninas e Cães, Paula Rego conquista a linguagem figurativa, a profundidade espacial e a mobilização de dispositivos que servem a sua principal finalidade: contar histórias.”

Já durante o período de formação na Slade School, em Londres, a jovem artista é muito clara na sua preferência pela linguagem figurativa. No entanto, devido à tirania do estilo, ser figurativo nos anos 60/70 era quase uma impossibilidade. Até ao final dos anos 80, Paula Rego faz uma progressiva libertação dessa tirania e embrenha-se na tarefa de ser contadora de histórias. A artista não se compromete com o questionamento da arte e suas linguagens, como os seus contemporâneos. “Paula Rego questiona a vida através das possibilidades conceptuais e formais da arte e não o inverso. E, com o intuito de contar histórias, reinventa a tradição figurativa e narrativa da pintura”, conclui Dalila Rodrigues.
Os sucessivos discursos, séries e técnicas que vai experimentando têm que ver com essa finalidade essencial. Ela vai adoptando técnicas que lhe permitem uma aproximação à história.
“É na história que eu coloco toda a minha vitalidade”, disse a artista durante a montagem da exposição.
O museu assume uma grande presença da sua obra gráfica, muitas vezes relegada para segundo plano pelo público em geral. A colecção é maior do que aquilo que está à vista e por isso serão organizadas exposições fora da casa com as peças da colecção. Para além da exposição permanente, sujeita à rotatividade de algumas peças, como convém a um museu dinâmico, há lugar para exposições temporárias que mudam a cada seis meses. Para a inauguração, a mostra temporária será também ela dedicada a Paula Rego, com algumas das suas obras das mais importantes, peças de grande formato emprestadas pela Galeria Marlborough, que representa a artista em Londres. Depois disso, será a vez de apreciar a pintura do seu falecido marido, Victor Willing.
As linhas de orientação para a programação de exposições temporárias decorrem das questões artísticas que a obra de Paula Rego coloca. “Como Paula Rego é uma pintora narrativa,
e como toda a tradição da pintura ocidental
é marcadamente narrativa, teremos sempre exposições de grandes mestres antigos internacionais. É esta a vocação do museu”, revela Dalila Rodrigues.
Um espaço descontraído, informal mas cosmopolita. Vinda de fora, uma luz rosada penetra dentro do branco imaculado do interior enquanto as janelas abrem para o jardim. É o que nos espera nesta casa com auditório para 800 pessoas onde acontecerão regularmente ciclos de conferências internacionais que abordam as ligações entre as artes visuais, a literatura e o cinema. Haverá cursos e workshops intensivos em horário pós-laboral, com grandes especialistas internacionais. Há também uma cafetaria arejada e aberta para o frondoso jardim, a loja com merchandising e objectos inspirados na obra da senhora que dá o nome à casa, assim como peças que evocam as formas do trabalho de Souto de Moura. Nas estantes e vitrinas espreitam livros da livraria Galileu, objectos d’A Vida Portuguesa e jóias de Paula Crespo e Paula Paour. E para testemunhar a vida e obra do museu, serão lançados livros próprios: um catálogo da exposição temporária, um outro contendo a totalidade da colecção com reprodução de todas as obras e ainda um livro sobre o edifício. E isto é apenas o início da história...


Os quadros preferidos
de Paula Rego, por si explicados

Pillowman, 2004

“Esta é uma obra inspirada na peça de teatro com o mesmo nome que eu vi em Londres e que me deixou muito emocionada. Gostei muito, mesmo. Então, transformei
o cenário e transpu-lo para o Estoril. À esquerda vemos a menina que queria ser Jesus Cristo, por isso carrega a cruz feita com um escadote e uma trave de madeira. No escadote está pendurada uma borracha daquelas que as crianças mordem quando lhes estão a nascer os dentes. Tem a cadeira forrada com o mesmo tecido da cadeira do meu pai. É uma coisa muito pessoal, a mistura entre o pillowman e o meu pai. No centro, o que se vê ao fundo é a praia do Estoril. Tem presente o pequeno príncipe e o Saint-
-Exupéry que viveu no Estoril durante
a guerra e que jogava muito no casino.
À direita, a menina fez uns bonecos com maçãs. Os braços são lâminas de barbear. As maçãs são para o pai comer, pois ela não gostava do pai. Ao meio deste quadro está a minha neta que serviu de modelo e o pillowman em baixo. O pillowman é um boneco que construí para servir de modelo, com collants, e tem um edredon por dentro.”

O Anjo, 1998

“É um anjo da guarda vingador, redentor e ameaçador. É o quadro de que eu mais gosto e que levo comigo quando morrer.
É da série O Crime do Padre Amaro. Traz consigo os símbolos da paixão: a espada
e a esponja. Nasceu, ganhou forma e sabe-
-se lá para onde seguirá. É cruel para as pessoas que são más e nos tratam mal mas é bom para as pessoas que nos protegem.”

Entre as Mulheres, 1997

“Gosto muito deste quadro, da série
O Crime do Padre Amaro. Aqui, a personagem masculina está a fingir que tem nove anos porque aos nove anos vestiam-no
de menina e davam-lhe muitas festinhas. Ele ficava todo contente. É o padre Amaro em pequenino, mas aqui vê-se um homem adulto porque o meu modelo era um homem.”

Time Out, Setembro 2009

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