Para quem tem espírito de voyeur e morre de curiosidade sobre como um artista visual cria o seu universo, eis a oportunidade de espreitar, neste caso, para dentro da mente de Noé Sendas. Agora prepare-se, pois quando se espreita o alheio, nem sempre se vê o que se está à espera de ver... “Processo: Quem é Noé Sendas” é a auto-investigação que o autor apresenta no próximo sábado, no Atelier Real.A documentação do processo de trabalho na criação contemporânea é a ideia central do ciclo de residências artísticas “Restos, rastos e traços” no ateliê dirigido por João Fiadeiro. Esta semana o ciclo é protagonizado por Noé, artista visual que veio de Berlim, onde vive, para passar cá uma temporada, inserido num núcleo de criadores oriundos da dança. Parte deste projecto consiste num texto publicado no jornal do Atelier Real, assim como numa apresentação única nas instalações da companhia. Não será, portanto, uma exposição pura e dura. Será, sim, uma acção demonstrativa, seguida de uma conversa com o artista a que o público poderá assistir ou mesmo intervir. Pelo meio, vídeos, esculturas e uma banda sonora sempre à volta da identidade do autor e da sua relação com o espaço de trabalho.
Quem entrar neste simulacro de ateliê pode contar com um elemento surpresa. “Não quero desvendar já. É como um filme em que há um enredo e, dentro dele, um acontecimento. Se eu revelar à partida, perde o interesse.” Os visitantes podem contar com factores de perturbação dignos de um filme de David Lynch. Na verdade, a estranheza e o absurdo fazem parte do seu trabalho desde sempre. Noé Sendas é conhecido pelas suas esculturas e instalações com manequins realistas em poses insólitas, insinuando contextos urbanos. Desta vez serão expostos trabalhos que derivam daqueles que Noé apresentou recentemente no Porto e que consistiam numa série de fotografias manipuladas. O seu desenvolvimento inicia o processo que vem a público no sábado. São imagens de corpos “picadas”, uma apropriação de fotografias de domínio público, modificadas, amputadas, quase que transformando a imagem em escultura plana. O ambiente destas fotografias roubadas e mastigadas é surrealista, intrigante, conseguindo ao mesmo tempo uma subtileza que lhes confere mistério. “Ao contrário daquilo que faço na escultura, em que humanizo determinados objectos, nestas fotografias objectualizo as representações de seres humanos”, diz Noé. Numa mesa de madeira, as imagens estão dispostas sob volumes de vidros que contribuem para uma maior distorção daquilo que Noé nos deixa ver. E o que ele nos deixa ver pela primeira vez é também a construção de uma das suas esculturas. “Vou dar a ver umas coisas, mas sabendo que tenho outros trunfos neste jogo.” É um processo documentado, mas distorcido, como num truque de magia. Assim, Noé Sendas assume em público a mesma atitude que reside na generalidade da sua obra: tentando mostrar uma coisa, mostra afinal outra. O artista lança ao ar uma pergunta – Será a resposta esclarecedora?“
Processo: quem é Noé Sendas?” acontece no sábado às 18.00 no Atelier Real (R. Poço dos Negros, 55). Conversa com o artista pelas 19.30. Entrada gratuita.
Time Out, 16 de Março de 2010
Resgatado do arquivo, um texto mais antigo sobre o mesmo autor...
O predador de imagens
por Miguel Matos
Quem entrar na Galeria Cristina Guerra deverá ir preparado para um confronto de imagens insólitas e inquietantes. “The Hunter” é a proposta de Noé Sendas, nome recente mas já incontornável da arte contemporânea portuguesa. E não, as imagens que o leitor vê nesta página não sofrem de um defeito de impressão...
Em cada novo projecto, Noé Sendas apresenta uma personagem por si criada como mote para desenvolver um conceito. E se antes os temas foram “The Lodger”, “The Private Eye” e “The Collector”, agora entra em cena “The Hunter”. Desta vez, o artista recorreu a imagens de domínio público, evitando assim recorrer a actores ou câmaras. Pelo simples processo da edição de imagens Noé reuniu em si todos os elementos de uma equipa de filmagem, apropriando-se de materiais alheios como um caçador de frames. Um caçador que sonha viver as vidas de outras pessoas.
“São imagens tiradas de mais de 150 filmes”, explica Noé Sendas. “Piquei imagens com 5 a 10 segundos de filmes que já são de domínio público. O que me interessa mais no conceito são as imagens em si e não o contexto em que elas estavam inseridas. São pedaços de filmes série B da Hollywood dos anos 20, 40 e 50. No fundo, eu não quis criar propriamente uma narrativa, mas mais uma melodia de imagens. Escolhi filmes de domínio público para não interferir com direitos de autor e porque quando as imagens caem nesse estatuto é como se fizessem parte da natureza, podendo ser usadas livremente”.
“The Hunter” é um percurso constituído por três peças: dois vídeos (“Public Domain” e “Dead Weight”) e um conjunto/instalação de fotografias (“The Urban Legends”). As fotografias estão suspensas no espaço formando um pentágono em que o visitante penetra cautelosamente. A base de todo este universo é a criação de uma personagem e a partir daí começa a investigação. É sempre assim que começam as últimas produções de Sendas.
Desta vez a personagem que desencadeia a exposição é uma pessoa que está a caçar imagens pertencentes à história de arte. O que resulta deste processo é uma série de melodias visuais que transmitem uma sensação de voyeurismo relacionado com a história e não com situações reais. É a postura de uma personagem que se assume como voyeur e que tenta apropriar-se das imagens que são de outros para torná-las suas. Depois de passarem pelo seu crivo, são já uma outra coisa.
Noé Sendas faz parte de um conjunto de artistas portugueses que escolheram Berlim como cidade base, tal como Nuno Cera e Rui Calçada Bastos. Será que esta tendência recente é uma prova de que Lisboa é uma cidade limitativa para os artistas portugueses? “Fui para Berlim em 1999”, conta Noé. “Nessa altura eram poucos os artistas portugueses lá residentes.
Neste momento é lá que vivo e o panorama está diferente. 99% dos artistas portugueses que lá estão vivem ainda do mercado nacional. No entanto, ao nível da oferta cultural, Berlim é muito maior do que Lisboa e há muito mais acesso a comissários que por lá passam por ser uma cidade central.
Há lá muitos portugueses como há espanhóis, finlandeses e holandeses. Isto deve-se a toda uma qualidade de vida que é superior a muitas cidades europeias neste momento. Em Berlim existe uma troca de ideias e de vivências que é muito mais intensa do que em Lisboa. Cá ainda não foi criada uma ideia da arte como um produto que se pode exportar. No entanto, o mercado artístico português é ainda a base de sustentação para muitos.” A temporada de caça artística abre esta quinta-feira.
Time Out, 8 de Janeiro de 2008
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