domingo, 7 de março de 2010

Clara Martins - Pétalas de desejo


Duas personagens apaixonaram-se num pátio de vasos esquecidos ao sol. Cactos são as espécies ainda activas numa história que se conta ao observador apenas através de fragmentos. Mas isto é apenas o início de “Botânica Flesh”, pois o que se segue é um desabrochar de sentimentos e emoções, garridas como as cores das telas.

Clara Martins assume a sua paixão pela botânica e recorre à ilustração científica para recolher inspiração. Assim, desenraiza as flores e faz crescer pernas. Através da associação de dois universos díspares, cria uma nova ordem no universo, uma subversão maliciosa. Ao arrancar os objectos da sua significação habitual, parece ir de encontro às ideias surrealistas. Vejamos: se as duas grandes direcções do surrealismo, como salientou Yvonne Duplessis no livro O Surrealismo, são, por um lado “sugerir o mistério do inconsciente, por outro subverter o real”, Clara Martins, consciente ou inconscientemente, seguiu-as sem qualquer preconceito. Eis um exemplo contemporâneo e arejado do surrealismo como “realidade supraordenada, supranatural, onde desaparece a aparente contradição entre o sonho e a realidade”, como escreveu Walter Hess no livro Documentos para a Compreensão da Pintura Moderna. Surreal sim, na sua estética de descontextualização do real, abrindo as portas do inconsciente para uma intromissão transformadora do indivíduo. Não tão surreal no sentido ideológico ou mesmo programático. No entanto, sabendo do registo quase automático da sua pintura e da livre associação de elementos pictóricos, com recurso às ferramentas da consciência, pode-se reforçar mesmo tal ligação à estética surrealista.

Nos trabalhos mais recentes de Clara Martins, por entre os canteiros imaginários que a artista nos propõe visitar, o crisântemo é a flor que aparece mais recorrentemente. Segundo algumas filosofias orientais, esta flor simboliza a simplicidade e a perfeição. Começa a florir no Outono, estação das folhas caducas, período de tranquilidade antes das tempestades e da abundância após as colheitas. É considerada uma planta que liga a vida e a morte, o Céu e a Terra. Tal como o erotismo se liga a ambas as dimensões. Se a artista americana Georgia O'Keefe (1887-1986) erotizou estilizada e descaradamente todo o tipo de flores, Clara Martins não se coibiu de ir mais além e criar uma quase narrativa fantástica. A sua utilização de partes do corpo feminino, descontextualizadas e, de certa forma, tornadas em fetiche, faz talvez lembrar a ousadia do alemão Hans Bellmer (1902 - 1975) quando este montava pernas de diferentes manequins, criando obras desarmantes na série “Die Puppe”. As flores das imagens de Clara Martins tomaram como suas pétalas, as pernas de bonecas desmembradas, num erotismo torcido e mascarado de inocência lúdica.

Como lolitas vegetais e perversas, estes seres transgénicos vivem de simbolismos ocultos. Se quisermos procurar paralelismos entre Clara Martins e outros autores, estes tocarão certamente em alguma pintura do francês Yves Clerc (n. 1947), também ele criador de metamorfoses em alguns aspectos análogas a estas, nomeadamente quando faz uso da sua mestria em texturas para transformar mulheres em seres vegetais, num plano mais decorativo do que o de Clara Martins, divertido na primeira camada, perturbador logo na subsequente.

Em “Botânica Flesh” há uma dimensão oculta, que pertence à esfera da intimidade, mas que se revela, mesmo que timidamente. O que se apresenta e se camufla sob estas pétalas é também o desejo. Mas não só o desejo, como também um lado fetichista. Se um indivíduo sente estímulo erótico ao contemplar o órgão sexual feminino, esse desejo é reprimido socialmente ao ser considerada negativa a sua expressão. Opera-se assim uma deslocação para algo que o simbolize, o que pode ser, por exemplo, um sapato - extremidade oposta e representativa deste desejo. Podem ser também as pernas que ao órgão sexual conduzem, tal como o sujeito desejante poderá apenas ficar pela analogia da flor e do seu gineceu. Midori, figura central da cultura do fetiche em Nova Iorque, salienta (no livro The Beauty of Fetish) que “nós os humanos somos criaturas simbólicas. Interpretamos o mundo à nossa volta em conjuntos de símbolos apreendidos e comunicamos uns com os outros através de uma série de símbolos de linguagem, música e arte comummente aceites. O sexo é uma forma de comunicação, de facto, a expressão sexual humana é quase inteiramente um conjunto de comportamentos apreendidos. Naturalmente, como um reflexo do mundo à nossa volta e da história antes de nós, a nossa simbologia sexual inclui os materiais que representam os nossos objectos de desejo”.

A flor, tantas vezes usada como símbolo erótico ganha nestas pinturas um carácter quase agressivo. Entre a ironia, o humor e a alusão ao órgão sexual feminino, torna-se surpreendente notar que estas flores tanto despontam a partir de espinhosos cactos como de domésticos vasos, tal como os instintos femininos, tantas vezes selvagens, outras tantas formatados e contidos pelas regras sociais. As saias, decentes coberturas de supostas indecências, são relegadas para as folhas com seus padrões de xadrez. São superfícies de texturas geométricas, como tecidos antigos, de batas de escola ou de saias de Verão. Espelham o interesse da artista pela moda como fenómeno estético e social. Nos trabalhos que realiza, são estas saias que captam clorofila para alimentar as belas pernas e estimular o seu crescimento, presas em cálices e corolas que farão parte de ramalhetes destinados a ofuscar intenções e inventar outras, quando ofertados em ocasiões urgentes e apropriadas.

Se por um lado, Clara Martins cria este universo de flores psicadélicas e explode com elas em múltiplas cores, por outro, a artista decide aprisionar estas mulheres que, de cabeças ocultas sob as pétalas, destas não poderão fugir. Se elas são símbolo de erotismo e fecundidade, não será menos verdade que isso as limita. É a partir deste pensamento que passamos à escultura que centraliza e unifica os desenhos e pinturas apresentados. Tudo começa em “Mihanovichi”, pintura em que os corpos destas mulheres aparecem representados de uma outra forma: com vestes coloridas e espaços vazios no lugar de cabeças. Essas cabeças aparecem depois numa estrutura de grandes dimensões. Uma enorme flor multicolor em que, a partir de fichas eléctricas, sobem aos céus os caules/veias que logo a seguir, em movimento descendente, chegam ao chão e finalmente se transformam em cabeças humanas. Cabeças essas que, ao não se apresentarem com rostos, se tornam universais, menos particulares e por isso, mais sujeitas a interpretações pessoais de quem as observa. Íntimas, como refere Clara Martins.

Miguel Matos

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