quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Joana Vasconcelos - A rainha da sucata



Depois de Paula Rego, Cabrita Reis e Julião Sarmento, Joana Vasconcelos é dos poucos artistas portugueses a chegar ao leilão da londrina Christie's. Ela é para uns a heroína da arte contemporânea portuguesa, para outros uma criadora comercial perdida no pecado da celebridade. Esta bipolaridade estará à vista de quem quiser apreciar ou julgar na exposição “Sem Rede”, que reúne as principais obras do seu percurso.


Com 15 anos de carreira já és considerada a artista mais importante da tua geração e a primeira a ter uma exposição antológica num grande museu. Consideras-te um caso único?
A minha geração é a do Alexandre Estrela, do Rui Toscano ou do Noé Sendas. Mas é uma geração que não tem muitas pessoas. Há outras mais ricas, como a do João Pedro Vale, da Filipa César ou do Vasco Araújo, cinco anos mais novos. São grupos diferentes. Passando esse factor, há um outro importante: nas carreiras artísticas determinam-se alguns períodos. Costuma-se falar dos primeiros dez anos de existência. Se resistires a estes, já é uma vitória, mas a verdade é que a este período resiste muita gente porque a malta é nova e despreocupada, está cheia de pica e aguenta-se. Depois começam os primeiros encargos familiares ou laborais, apanham o primeiro embate do mercado. Com essas responsabilidades, metade deles desiste até aos 15 anos de trabalho. Daí para a frente já só ficam aqueles que na verdade têm alguma hipótese. Normalmente, a exposição que estou a montar só se faz aos vinte anos de carreira. É a consolidação. E só se faz uma exposição destas aos 20 anos porque só então é que tens quantidade de obra para o fazer e provaste que estás cá para ficar. Eu comecei a expor em 1994. Se contares até 2010, são 16 anos. No entanto, ao contrário de outros, eu tenho mais quantidade e qualidade de obra. Consegui fazer mais obra em menos tempo e por isso posso fazer aos 38 anos o que devia fazer aos 43. Mas isso não faz de mim melhor ou pior do que os outros artistas da minha geração.

A verdade é que em Portugal nunca se faz uma contextualização histórica da nossa arte. Parece que os novos artistas apareceram de repente... Onde estão os fundadores da arte contemporânea portuguesa?

Portugal não é bitola neste campo, porque em Portugal nunca se faz nada como deve ser, com princípio, meio e fim. Se te posicionares num ponto de vista internacional, o que eu estou a fazer é normal. Vamos andar para trás... Portugal tinha uma lacuna muito grande em termos de dar valor aos seus artistas e contextualizar o seu meio cultural num sistema internacional. Quando se percebeu que isto era uma grande bagunça, viu-se que não se tinha dado valor a uma grande geração que tinha sido omitida do panorama internacional, como o Noronha da Costa, o Júlio Pomar, etc... Como era uma geração de ditadura, apagou-se. A arte portuguesa só existia do Julião Sarmento para a frente. Quando se percebeu esse erro histórico, houve várias iniciativas em todos os museus para recuperar um passado perdido, uma malta muito boa que se tinha apagado. Elegeu-se então a Helena Almeida como um bom exemplo. Ela, que fora muito mal tratada e esquecida, foi recuperada. E isso aconteceu não porque toda a gente virou santinha. É que para te inscreveres no mercado internacional, tens que ter história. Foi assim que Helena Almeida se tornou a estrela principal desse grupo, tal como aconteceu com o Júlio Pomar. Toda a gente dizia mal dele, mas depois, quando se percebeu que havia um gajo com 80 e tal anos a produzir, de repente, antológicas do Júlio Pomar havia todos anos. A Lourdes Castro é o fado português: toda a gente achava que ela é que era a nossa grande artista e, depois ela pira-se para a Madeira, xau bye bye. Por causa destas coisas é que se fez a exposição “Anos 70” há pouco tempo na Gulbenkain, porque esta geração está a desaparecer e o vazio é notório. Mas aquilo é apenas para limpar a consciência, devia haver agora uma série de exposições à séria. A coisa é muito grave... nessa recontextualização, de repente percebe-se que não havia uma colecção de arte contemporânea, como agora há a colecção Berardo que tem um papel importantíssimo, dando à capital uma noção internacional. Aparece também o Centro de Arte Manuel de Brito, com a colecção da Galeria 111 para contextualizar essa geração.

Mas vontando ao presente... O facto é que nenhum outro artista português tem no seu atelier uma empresa, uma máquina montada como a tua. Até trazes as tuas próprias gruas para o museu... Não te limitas a produzir objectos, tens todos os departamentos sob a tua alçada.
Isso é porque o país está diferente, mais aberto, mais democrático. Tenho vindo a descobrir que há outros artistas com tanta energia como eu. E se a Paula Rego, a Graça Morais ou a Graça Costa Cabral tivessem tido as mesmas condições que eu tenho hoje, não tenho dúvidas que elas fariam as coisas como eu faço.

No entanto, nenhum artista da tua geração consegue ter um sistema tão forte...
Se viermos para o nosso tempo, esta geração sofre de um mal terrível. O Alexandre Estrela foi para Nova Iorque. Quando voltou, já não sabia onde estava, foi dar aulas. O Noé Sendas é o profissional das bolsas que já nem sabe de que país é. O Rui Toscano saiu da ESBAL, foi parar a uma grande galeria e agora está com o problema de atravessarmos uma crise que nos toca a todos. Depois tens-me a mim que não fiz nada dessas coisas. Fiz uma coisa mais maluca: não fui para fora nem me liguei aos lobbys, sou a independente.

Pois, porque te recusas a ficar ligada a uma galeria em exclusivo...
É preciso explicar que eu estive uns tempos na Galeria 111. Foi lá que me apercebi das gerações anteriores de artistas. Quando eu estudava no Ar.Co era-me dito que dali para a frente é que é bom. Na 111 diziam-me que dali para trás é que era bom. Foi muito engraçado: no Ar.co vi uma cena e quando entrei para a 111 é que vi o resto do filme... a minha cultura nacional ficou mais completa. Na 111 aprendi a respeitar a Graça Morais e no Ar.Co aprendi a respeitar a Ângela Ferreira. Todos constituem uma rede importante que é a nossa cultura.

E isso tem a ver com o teu envolvimento na salvação do Museu de Arte Popular...
Está tudo interligado. Eu aprendi a dar importância a uma coisa maior do que o artista. Quando eu percebi que a cultura portuguesa ia desde o Bordalo Pinheiro até à Susana Anágua, percebi que temos que respeitar todos, cada um no seu papel, nesta rede de croché que é a cultura. Como é que queres que as pessoas venham ao Museu Berardo e entendam a arte contemporânea se não podem passar primeiro pelo passado cultural português? Como é que vão entender isto, se não forem ver as rendas de bilros e as coisas todas do nosso artesanato? Por isso é que eu luto pelo Museu de Arte Popular. Para eu ter evidência no estrangeiro as pessoas têm que entender o meu país. Tudo tem importância para que a nossa cultura seja mais forte.

A tua obra é muito apelativa. Mas, para além do espectáculo visual, há uma componente de crítica à sociedade de consumo muito presente. Achas que as pessoas atinge essa camada de significado?
A criação já não está só nas artes plásticas. Está nas mãos dos designers, dos publicitários, da moda, da joalharia, do cinema, etc. Portanto, os artistas plásticos que estavam na sua redoma, passaram a ter que lidar com um mundo de criação muito mais aberto e vasto. A concorrência hoje em dia é feroz. Aprendi com o design e com a moda a valorizar o primeiro olhar. Isto tem a ver com a contemporaneidade. É a televisão e a publicidade que fazem isto. Tens que captar o olhar das pessoas em 30 segundos: é o chamado first glimpse. Não sou eu que fiz isso, é o mundo que está assim. E eu só olho para o mundo e digo: “Ai é para o first glimpse? Então espera aí que eu também sei fazer”. Porque eu, como artista plástica, tenho obrigação de captar as ideias contemporâneas e aplicá-las às artes. Quando olhas para as minhas peças, elas causam-te um impacto. Depois, a seguir, se tiveres pachorra, vais por-te a pensar. Mas a sociedade de consumo está estruturada de tal maneira que tu tens de consumir antes de pensar. Eu só apenas uma tradutora disso.

Queres dizer que é uma arte democrática e inclusiva? Serve para todos?
Sim, é democrática, mas particular. Se fores um curador podes até analisar o meu trabalho e escrever 50 catálogos à volta de uma peça, mas se fores a senhora da limpeza e quiseres curtir, também podes.

Isso porque o vocabulário usado no teu discurso é comum a todos nós. São coisas com as quais nos relacionamos...
Daí que toda a gente no meio artístico ache que eu sou muito comercial, porque nesse meio entende-se que tu não deves comunicar para as pessoas, e sim apenas para uma elite.

É impossível neste momento não falar do resultado astronómico das tuas peças nos leilões da Christie's. O “Coração Independente” atingiu 192 mil euros e o sapato “Marilyn” ultrapassou os 573 mil euros... Podes explicar-nos como te viste inserida no circuito comercial internacional e como tem sido a tua experiência dentro do seu funcionamento?

O paradigma do mercado da arte contemporânea está a mudar. Enquanto que antes eram os galeristas que mandavam nas carreiras dos artistas, agora não. Quem manda são os coleccionadores e estes trabalham com curadores e no pensamento deles. É assim que começam a aparecer as grandes colecções. Passa a ter mais importância para o artista estar numa grande colecção do que numa grande galeria. Os curadores que escolhem as peças para os coleccionadores aconselham, escrevem textos, contextualizam a obra e ela é vendida. Assim, não temos que dar 50% da venda a uma galeria. Por outro lado, com a crise actual, a Christie's já não põe lá uns tarecos à venda só porque os galeristas querem. Tem um curador fantástico para a arte contemporânea que, quando organiza um leilão, monta uma grande exposição. Isto porque a Christie's quer ser um símbolo de qualidade conceptual e não de valor económico. Quando foi o leilão do “Coração Independente”, eu fui lá e nem queria acreditar naquilo. Os catálogos são lindos de morrer, há uma equipa que se dedica exclusivamente a escrever os textos sobre as obras. E isto é assim porque agora quando vão lá os coleccionadores e levam os seus curadores, ou a Christie's tem uma grande exposição, com uma curadoria perfeita, ou eles não compram.

E como é que se passa da participação do “Coração Independente” para a do sapato “Marilyn”?

O comprador do meu coração [existem três], através da sua curadora, decidiu emprestar a peça para expor em Moscovo. Quando eles põem o meu coração ao lado de peças do Jeff Koons e percebem que a minha obra tem tanta força como a dele, o curador da Christie's pôs-se a investigar sobre mim e sobre o meu trabalho. Vieram cá estudar-me, viram o atelier para saber se eu tinha estrutura para aguentar o embate comercial, fizeram-me uma entrevista e nem se falou em dinheiro. Com isso eles querem saber se tens qualidade, se tens obra e continuidade, se és verdadeiro ou não... não é uma avaliação monetária, mas sim de pensamento. E depois, como eu já tiha ido à Bienal de Veneza, tenho peças em grandes colecções internacionais como a Pinault e a Arnault, expus em Inglaterra, França, Japão... Tenho peças na colecção Berardo, que é muito importante... Já tenho o mínimo de requisitos para poder ir ao leilão. Então foram procurar as peças e havia um dos corações que era do Restaurante Eleven. Propuseram a venda e eles aceitaram. Quando foi a exposição, eu estava ao lado de artistas como o Gerhard Richter e o Damien Hirst, coisa que eu nunca tinha pensado. Depois, o sapato foi vendido no seguimento da primeira peça. Eles já tinham uma sala concebida para ele, com o conceito todo da exposição em que o sapato batia certo. Mas ainda há quem diga que eu sou só comercial, que sou o Tony Carreira da arte portuguesa. Eu nunca vi ninguém pimba na Christie's e não me lembro de ver outro português na colecção Pinault, mas pronto, deve ser eu que sou pimba. Não tenho culpa de ser a única artista de cá a ser vendida nesse leilão, nem fui eu que fui lá bater à porta. Como eu não me insiro nos circuitos habituais, sou mulher e nova, toda a gente pensa que se eu tenho sucesso, é porque sou filha de alguém rico. Nunca é porque eu trabalhei 16 anos no duro e a pagar as minhas coisas. É sempre por outra razão qualquer. Eu posso dizer que tenho tido sorte, mas junto a isso muito trabalho.


Achas que com isto conseguiste entrar na fase da internacionalização?
Isso nunca está conseguido. Com esta exposição mostro que estou a dar tudo por tudo. O facto de haver o leilão pelo meio demonstra que sou economicamente viável, mas eu não estou interessada nisso porque eu aqui já o sou. Não é meio milhão de euros que me interessa. O que me interessa é entrar no circuito artístico internacional e se a Christie's é uma forma de o fazer, porque não? Esta exposição é fundamental para isso. Quero mostrar aqui que tenho cabeça, que sei pensar, sei produzir, sou versátil e coerente e sei produzir uma exposição.

Ou seja, estás a entrar na fase dos vinte anos em diante...
Exactamente!

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