quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Cristina Ataíde - Diário de Viagens Interiores


Miguel Matos viu Cristina Ataíde “Suspender o Ar” em montanhas, na Casa da Cerca, em Almada.

Num mundo cada vez menos ritualizado, falta-nos algo que marque a passagem dos estádios da vida. É esta dimensão simbólica, íntima e ao mesmo tempo social que atravessa a exposição de Cristina Ataíde na Casa da Cerca. Tudo começa e se desenvolve ao longo de viagens em montanhas, listas de pensamentos e desejos.

“As listas que faço sistematicamente são o mote desta exposição. As montanhas têm a ver com a natureza, com percorrer o mundo... Subir a montanha, com a sua componente interior, simboliza os nossos estados na vida.” Como o barco que ocupa a galeria do pátio e, suspenso no ar, atravessa o espaço, num movimento de passagem, de transição. Na capela, um amontoado de paus envolvidos em faixas vermelhas escritas com desejos dos seus amigos, apoia-se na parede. Fitas brancas esperam o visitante, para que possa pedir um desejo, juntando-se aos desejos de outros.

“Pele” é um conjunto de desenhos onde Cristina Ataíde capturou a textura da superfície de árvores, pedras, falésias ou até lava da Ilha do Pico, por exemplo. Sobre a folha, a pele dos locais por si visitados. Cada um destes desenhos tem marcado o nome do local, a hora e a data em que foram realizados, o que lhes dá um carácter pessoal. São diários de viagem: “apodero-me dos lugares, trago-os comigo, principalmente quando são especiais”, diz.

Na obra recente de Cristina Ataíde, há a omnipresença do pó e do pigmento vermelho. O pó pode ser visto como símbolo da morte e o vermelho, o símbolo da vida, da energia feminina e do sangue que oxigena o corpo. Esta junção representará o ciclo da vida, do qual a morte inevitavelmente faz parte? “Para mim há um percurso circular vida-morte-vida, um ciclo de renovação.” Como numa lista interminável em que diz “O pó do meu corpo – O meu corpo em pó”, há nesta exposição uma união de opostos: yin/yang, positivo/negativo em círculos infinitos. A espiritualidade aqui presente tem a ver com as suas viagens à Índia. “Foi aí que comecei a ligar-me ao pigmento vermelho e ao pó. Por exemplo, o sacerdote põe o pigmento kanku na testa para que os visitantes de um templo saibam que ele está santificado. Além disso, quando há visitas de personalidades, os indianos colocam no chão linhas de pigmento, como nós fazemos com tapetes de flores. É uma coisa tão presente que se torna impossível não captar.”

Um enorme desenho pendurado sobre o visitante representa as montanhas e simboliza a realização humana, mas traz um sentido de contemplação. Um sentimento de universalidade ecoa nas paredes com línguas e grafias de todo o mundo. No longo papel onde crescem estes cumes a preto e vermelho, uma lista de quase todas as montanhas que existem e, assinaladas, as que a artista percorreu. “Isto representa a minha pequenez e a enormidade do mundo. Para mim, as listas são uma maneira de reter as coisas. Quando se escreve, a coisa ganha uma dimensão mais concreta. Depois podemos esquecer. Isto é uma tentativa de esvaziar. O vazio é muito importante para mim, porque só se consegue encher depois de se esvaziar.”

De novo o ritual da viagem como metáfora, tal como acontece numa instalação vídeo com imagens de aeroportos. “Gosto muito de aeroportos, de não-lugares, porque são sempre diferentes e encontramos milhares de pessoas anónimas. Os aeroportos têm resquícios dos sítios onde estão, línguas e músicas diferentes”. A viagem termina no cume de uma montanha de papel, branca e vermelha. Frágíl como a vida...

“Suspender o Ar” está patente na Casa da Cerca (Rua da Cerca, Almada) até 16 de Maio. Aberta de terça a sexta das 10.00 às 18.00. Sábados e domingos das 13.00 às18.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 15 de Fevereiro de 2010

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