terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Eduardo Nery - Imagens da desumanização

Miguel Matos usou o pretexto de uma nova exposição para conversar com Eduardo Nery sobre um zigue-zague de temas e controvérsias.

A luz é o elemento que penetra no olho para criar imagens no cérebro. Eduardo Nery tem baseado a sua investigação no modo como a retina absorve e descodifica aquilo que a estimula. Nas suas colagens, pinturas, tapeçarias, azulejos, vitrais e outras técnicas, é uma manipulação retiniana aquilo que o define. E a luz manipulada atinge o seu climax no medium que a ela mais directamente se liga: a fotografia. As fotografias de “Vida Dupla, Casa Arrumada” são fotografias de dupla exposição derivadas das colagens dos anos 70, “O Museu Imaginário na Sociedade de Consumo”, que incluiam títulos tão irónicos e divertidos como “A Batata Frita na Existência Humana”. Nessas obras misturava e punha em colisão obras da pintura antiga com imagens vindas da publicidade e da comunicação social. Naquela altura uma crítica à sociedade de consumo era a coisa mais natural, e hoje? A exposição que inaugura esta semana na Ermida de Nossa Senhora da Conceição é testemunha de um percurso diversificado, mas pouco reconhecido. Uma provocação poética e ideológica que permite debater os fantasmas da sociedade.

O Eduardo tem uma dualidade constante na sua obra. Se por um lado há obras em que reflecte sobre a pintura, questionando-a e pondo em causa as noções de espaço, consegue também em outros trabalhos fazer um comentário social. Neste momento, recorrendo à técnica da dupla exposição, volta à crítica da sociedade de consumo... Para muitas pessoas, o objecto artístico não passa de um veículo de afirmação de status. Como comenta isto?

Primeiro, uma pintura é um objecto, não há volta a dar-lhe. Pode ser um objecto particularmente rico em conteúdos espirituais, mas em termos materiais é realmente um objecto. A maioria das pessoas vê a pintura como uma coisa em que se pode empatar dinheiro e que é rentável em termos de mercado. O conteúdo intelectual ou emocional não é para elas o mais importante. É apenas um investimento ou um bem sumptuário como os carros, as propriedades ou os barcos que compram.


O pior é quando as pessoas se transformam em objectos ou vivem para eles.

Esse é o ponto fundamental que procurei explorar. As pessoas estão de tal maneira envolvidas com os objectos que se transformam elas próprias em objectos. Como os modelos que posam para as fotografias de publicidade: já são objectos. Tornam-se dependentes destes e dos objectivos que estão por detrás da imagem. As mensagens económicas, o marketing, a sociedade de consumo e o poder económico são quem alimenta tudo isto. Portanto, as pessoas são esvaziadas da sua individualidade e personalidade, passando a funcionar sobretudo a um nível comportamental definido pela sociedade de consumo.


São seres humanos funcionais, portanto. Vivem para servir os objectos.

E são o prolongamento desses objectos. Este trabalho tem a ver com a antepenúltima exposição que fiz em Lisboa, na Galeria Arte Contempo e tratava da metamorfose do homem em animal. Todos nós temos um lado animal que rejeitamos por nos sentirmos acima desse nível, mas a verdade é que, quando menos se espera, esse animal vem ao de cima. Todas as séries de fotografias e colagens têm focado qualquer coisa que ainda não disse. Esta exposição é sobre o tema do humano a desumanizar-se.

Isso tem muito a ver com a ironia que utiliza sempre na sua obra... mas os portugueses não convivem muito bem com a ironia, ao contrário dos ingleses por exemplo...

Quando eu era mais novo, muita gente adorava contar anedotas. Hoje em dia não tenho à minha volta pessoas que o façam. Acho que as pessoas nunca tiveram sentido de humor ou estão a perdê-lo com os seus quotidianos. Estão ensimesmadas com as suas coisas. A ironia é uma provocação, mas é também um olhar novo de quem rejeita sentir-se esmagado pelo status quo. Posso dizer que a minha ironia começa em obras que nem passam pela cabeça das pessoas. Em 1970, muitas das obras do final da minha fase Optical Art eram irónicas: entrei para dentro da perspectiva depois de a estudar a fundo e a minha ironia era sabotar o próprio sistema, mas para isso era preciso conhecê-lo muito bem. Por exemplo, em muitos dos meus trabalhos da série “Sólidos no Espaço”, as perspectivas parecem ir contra nós, como parecem ir para trás, como um objecto que devia estar atrás e está à frente, numa perspectiva invertida. Viro tudo ao contrário. Não é a ironia que as pessoas sentem imediatamente nas minhas colagens ou fotografias ao brincar com temas que dizem respeito aos seus quotidianos. São formas de pôr em causa os sistemas de representação na arte, a perspectiva e o claro-escuro. Esse olhar irónico é quase niilista na sua negação, mas também tem a ver com o facto de ter entendido muito bem o dadaísmo e incluir o fantástico.

E por falar em dadaísmo e fantástico, a sua obra tem muito de surrealismo e de metafísica, não é verdade?

Mas diga isso em público a ver se alguém percebe. É que não há meio de finalmente se entender isso. O paradigma do que diz é o quadro que está na Brasileira do Chiado: é um bom exemplo daquilo que fiz nesse período e está cheio de ironia e de situações metafísicas. Eu ando completamente perto dos surrealistas, mas nunca fui associado a eles porque as pessoas adoram formatar. O Eduardo Nery é o pai da Op Art ou o mestre da arte pública e não existe mais nada.

Mas de facto, o fantástico, o humor e a ironia são as traves mestras do surrealismo...

E depois pode ir até ao absurdo, como se pode ver em muitos títulos meus. Algumas imagens são intencionalmente incongruentes, assim como as fotografias que estou a fazer agora. Sei bem que estou a sabotar várias coisas. Esse lado irrequieto que há em mim vem desde criança e há-de acompanhar-me até ao fim da minha carreira. É a única maneira de me sentir vivo numa sociedade cada vez mais deprimida e esmagada pelos problemas do quotidiano. Vejo isso como um factor positivo capaz de rejuvenescer até a própria arte.


Parece que o Eduardo tem a obsessão de desconstruir, desfazer, partir a imagem, não é?

Sim, para depois recolher os fragmentos. A primeira vez que desconstruí e recombinei uma obra foi com os azulejos com imagens do século XVIII. São as “Figuras de Convite” que estão na estação do Campo Grande, que eu não teria feito se não tivesse feito antes disso o trabalho das colagens dos anos 70. Quando eu destruo, depois reconstruo os fragmentos.


A fragmentação atravessa a sua obra, mas numa multiplicidade de técnicas e linguagens diferentes...

Num artigo sobre mim na revista Colóquio Artes, Rocha de Sousa fala da existência de heterónimos na minha obra. Eu também acho que tenho vários heterónimos, mas, ao contrário de Fernando Pessoa, não lhes dei outros nomes. Talvez o devesse ter feito porque assim as pessoas hoje percebiam como é que um homem pode ser fotógrafo e pintor ao mesmo tempo.


Mas hoje há a designação do “artista visual”, que abarca todas as áreas. É mais abstracta e mais correcta...

Eu qualquer dia ponho isso nos meus cartões de visita. É que não sou só pintor. Também sou designer, como se viu na recente exposição de jóias na Ermida. Mas há dois heterónimos essenciais, que são extremos mas combinam-se a torto e a direito: são os lados racional e intuitivo. Por um lado, o jogo com a rapidez e a espontaneidade. Foi por aí que comecei, em obras gestuais que retomei mais tarde. Essa espontaneidade e automatismo são o lado oposto do design rigoroso que é o heterónimo oposto. Se eu estiver muito tempo a fazer uma das duas coisas tenho que voltar para a outra senão entro em desequilíbrio.

Trabalhou a antipintura na mesma altura em que Helena Almeida e Noronha da Costa estavam a trabalhar essa problemática. Desde os anos 70 que se discute a morte da pintura, com sucessivos funerais e reencarnações. Isso ainda faz sentido para si?

A pintura existirá sempre. Já lhe deram certidões de óbito vezes sem conta e ela continua aí.


São frequentes as comparações entre o seu trabalho e o de Vasarely, considerado o decano da Op Art. O que tem a dizer em sua defesa?

O meu trabalho no campo da optical art é completamente original e só espero que um dia alguém ponha as datas e as obras lado a lado para ver quem é que fez primeiro. Sou criticado de ter copiado o Vasarely, mas as obras dele que são parecidas com as minhas são posteriores. A minha op art centrava-se no campo da investigação da percepção, da cor e da luz e nos degradés que comecei a fazer em 1965, dois anos antes de Vasarely. Apreendi a disciplina dos degradés (que se encontram em muitas das minhas pinturas, no azulejo, na arquitectura e na serigrafia) não com Vasarely, mas sim com as minhas experiências em tapeçaria. Em 1960 fui para França trabalhar com Jean Lurçat, renovador da tapeçaria francesa do século XX. Aprendi com ele ao estudar as suas tapeçarias. Nas pausas de almoço ou nos fins de semana eu dedicava-me a estudá-las e ver como ele conseguia dar efeitos de relevo ou de vibração de luz.

E nesse tempo chegou a ter contacto com a obra de Vasarely?

Eu sempre tratei a cor agarrada à luz e joguei com os degradés em todas as cores ao contrário de Vasarely que inicialmente usava cores soltas. Fiz os degradés Op Art em 1965 e eles só aparecem em Vasarely dois anos depois. Em 1966, o José Augusto França levou slides do meu trabalho para a Galeria Denise René [a galeria que centralizava o movimento Op na Europa]. Portanto eu sei que a Denise René e os seus artistas viram os meus slides, embora eu não tenha estado lá para testemunhar. Mas posso ter contribuído para que o Vasarely tenha olhado para mim. Não posso afirmar mas posso pôr a hipótese de ter sido tudo ao contrário. Eu só peço que as pessoas sejam honestas comigo e reconheçam a minha originalidade. Tive o azar de ter nascido em Portugal, porque se tivesse nascido num país que não estivesse bloqueado no tempo de Salazar, entrava logo nos circuitos internacionais, coisa que não consegui. Toda minha obra a partir de 1967 não tem nada a ver com Vasarely pois entrei em diferentes áreas. Se o meu trabalho no campo da arte concreta é completamente original, então porque é que eu iria copiar o Vasarely numas coisas e não em outras? Vou ser sempre associado a ele até ao fim da vida enquanto as instituições não decidirem fazer a justiça de mostrar todo o meu trajecto até agora.

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