terça-feira, 14 de abril de 2009

António Júlio Duarte - Deambulações em Terreno Urbano


Umbigo Junho 2008
António Júlio Duarte

Deambulações em Terreno Urbano
por Miguel Matos

É um autor que se afasta daquilo que se faz na fotografia contemporânea formal, exageradamente asséptica e conceptual. As imagens de António Júlio Duarte não são, no entanto, concretas e imediatas. Cada observador tem a liberdade de criar uma história própria à sua volta. E embora as fotografias não sejam narrativas, pressupõem a existência de uma narrativa anterior ou posterior ao momento capturado. Oscilando num limbo posicionado entre a fotografia artística e o fotojornalismo de autor, há a presença constante do humano, de vidas sonhadas numa paisagem urbana. As vidas que podem ser as nossas ou as experiências de personagens excêntricas que muitas vezes temos no interior. Retratos paralelos e marginais que espelham a realidade visível pelo seu oposto em pequenos mundos. Uma penumbra reveladora de luz.


Grande parte do teu trabalho é composto por fotografias de viagem. No entanto tu não és um fotógrafo de viagens. Interessa-te sim fotografar as vivências em contexto urbano. Então porquê tantas viagens e referências ao Oriente?

Por duas razões. Por um lado por ter uma relação muito forte com Oriente. É um lugar que sempre me interessou e onde me habituei a trabalhar. Depois porque, pensando na estrutura das cidades, estou convencido de que as cidades orientais são uma espécie de paradigma da cidade. É para esse modelo que todas as elas caminham. Depois tem a ver com um sentimento de que, comparada com o Oriente, para mim a Europa é um território morto. No Oriente sente-se uma energia diferente, o ritmo a que as coisas se modificam é outro. São cidades em constante mutação e em evolução permanente, mesmo em termos de actividade cultural e artística. A Europa é muito mais estagnada.


De que forma as pessoas são diferentes na Ásia e na Europa?


São diferentes pela vivência no espaço exterior. Há um aproveitamento muito maior das estruturas da cidade, o que tem também a ver com as condições de habitabilidade. Não há o enclausuramento que vemos cá.

Mas isso nota-se assim que chegamos a Espanha. Vais a Madrid ou Barcelona e vês toda a gente na rua a qualquer hora, o que não acontece em Lisboa...

Portugal sempre foi para mim um território estranho na forma como os espaços públicos não são usados. Mas as cidades orientais são um paradigma também nas piores coisas. A sociedade caminha para uma divisão abrupta entre duas classes: a alta e a baixa. Na Europa caminhamos também para isso, mas no Oriente essa realidade é muito visível.


Sei que estás a pensar em viajar menos e fotografar mais em Portugal...


Sim, é outra das minhas preocupações. Tenho uma necessidade cada vez maior de ter alguma coisa a dizer sobre o meu próprio território. Eu já não viajo. A viagem pressupõe uma deslocação constante. Eu agora vou para um sítio, tento ficar lá o máximo de tempo possível e tento ter uma vida rotineira. Contrario o espírito da novidade constante que faz parte da viagem. Eu gosto de voltar aos sítios. Se há uma cidade onde gostei de fotografar quero voltar passados dois ou três anos e vou acompanhando a sua evolução voltando sucessivamente.


Só te sentes com autoridade para exercer um olhar crítico sobre aquilo que conheces bem. É isso?


Sim. Em portugal é esse o tipo de trabalho que quero fazer. Não é bem uma crítica mas sim uma análise, uma opinião sobre o que se passa à minha volta. Comecei com as séries sobre as strippers e os boxers, seguindo a convicção da Diane Arbus que dizia que fotografar aquilo que é exterior, que está à margem da sociedade, pode funcionar como um espelho dessa mesma sociedade.


A série que fizeste sobre desencarceramentos tem também a ver com essa ideia?


Tem a ver com a constatação do facto de Portugal ser um dos países com mais acidentes nas estradas. É uma forma de ir aos assuntos fora de uma perspectiva jornalística e ir por caminhos transversais. Tem a ver com outras preocupações fundamentais, como o sexo, a morte, etc.

Nesta série fizeste um curso...

Fiz um curso de desencarceramento para poder fotografá-lo.


Costumas infiltrar-te nos mundos que fotografas?


Não é bem infiltração. Uso muito as técnicas do fotojornalismo, mesmo ao nível da planificação dos trabalhos e das abordagens. Mas é difícil fazer alguém compreender que se quer fotografar qualquer coisa e que isso faz parte de um projecto pessoal. Há um processo de sensibilização para as pessoas perceberem o que estou a fazer e depois estabelecer uma base forte de confiança, o que demora tempo. É preciso viver a comunidade que se está a fotografar e criar uma empatia com as pessoas. É uma observação participante. E depois são trabalhos difíceis de largar, de sair deles. Por isso desgastam. No caso dos desencarceramentos foi diferente. É uma actividade extremamente violenta e perigosa para as pessoas que o fazem – os bombeiros. É minuciosa, de uma grande precisão. Qualquer pessoa externa a esse processo tem de ter um conhecimento profundo sobre o que se está a passar para não pôr vidas em risco. Daí a necessidade de ter feito a mesma formação que os bombeiros fazem.


É por isso que eu não te acho um voyeur, ao contrário de algumas interpretações que tenho lido sobre ti.


Isso tem também a ver com as técnicas que eu utilizo, como o uso dos flashes, fotografar muito próximo das pessoas... A minha maneira de fotografar é cada vez menos discreta. Não sou a favor da discrição, de o fotógrafo não poder participar...

Pois, porque para se ser voyeur há que ter um certo distanciamento, uma camuflagem...

Quero que as pessoas estejam conscientes da minha presença e reajam a ela. Há um jogo que eu crio.


As séries dos desencarceramentos, dos strippers e dos boxers foram expostas por vezes em conjunto e misturadas entre si. Isto cria um novo nível de significado, antagonismos e intersecções entre os vários conjuntos de fotografias...
Não gosto de fechar os trabalhos. Gosto que as fotografias possam circular entre séries.

Quais são as tuas referências no que diz respeito a fotógrafos?

É claro que tenho admiração por alguns fotógrafos. Há fotografias de que gosto muito mas não têm a ver directamente com o meu trabalho. Consigo identificar algumas referências mas muitas delas nem vêm da fotografia. Vêm do cinema, da literatura, da música. Por exemplo, tenho um grande interesse pela fotografia japonesa dos anos 50 e 60. Há uma questão que para mim está sempre presente: como se fotografa uma cidade? Nesse sentido, o filme Chungking Express ensinou-me muito. Muitas vezes ao fotografar uma cidade tende-se muitas vezes a fotografar a sua estrutura física, o urbanismo. Eu vejo a cidade como uma coisa orgânica.


O que fotografas quando estás descontraído sem pensar no trabalho. Ainda fotografas inocentemente os amigos?


Nao. Gostava, mas não consigo distinguir as duas coisas.


Como vês o panorama da fotografia contemporânea em Portugal?


Cada vez há mais coisas interessantes. Mas há um problema que tem a ver com o mercado. É ele que dita as modas ou aquilo que se consome num determinado período de tempo e aquilo que se tem valorizado nos últimos anos como sendo de valor e projecção, em 90% dos casos não me interessa e não tem a ver com as minhas preocupações em fotografia. O que é divulgado e chega ao público não é o reflexo daquilo que se vai fazendo.

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