domingo, 12 de abril de 2009

Noronha da Costa - Galeria António Prates


Noronha da Costa

Em Suspenso Silêncio

por Miguel Matos


A memória atraiçoa a mente. Calam-se as imagens outrora guardadas que aparecem enfim pouco claras e enevoadas, quase sempre sobrepostas em planos diferentes, convocando tempos e espaços distintos. Camadas, profundidades e volumes azuis, aqueles mares longínquos através de uma janela onde “Ela”, perdida no tempo, já não contempla o passado nem o futuro.


“É 'o tempo', o que de uma maneira perfeitamente consciente Noronha da Costa visa afinal 'coalhar', prender no espaço exterior dos seus 'objectos' e com dificuldade maior mas mais apaixonante resultado, no espaço imaginário da tela” - Eduardo Lourenço – O Espelho Imaginário


A luz, como causa transformadora e matéria pictural, é a obsessão de Luís Noronha da Costa, criador que desde os anos sessenta conquistou uma posição singular (e solitária) no panorana artístico português. Após a unânime aceitação inicial da sua proposta estética, passaram alguns anos em que a sua arte parecia estar relegada para um plano menos importante, consequência (não só mas também) de um afastamento em relação às principais questões em voga nas artes plásticas. Isto acontece até 2003, ano em que se realiza a grande exposição retrospectiva Noronha da Costa Revisitado, no Centro Cultural de Belém, altura em que o grande público tem finalmente a oportunidade de compreender todo um percurso ao longo de quatro décadas. A exposição no CCB constitui apenas um aviso e acaba por servir de gatilho. Noronha da Costa regressa dois anos depois com o que parece ser uma grande golfada de um novo ar, um fôlego vibrante de criatividade madura, uma reflexão formal continuada, bem distinta e no entanto, perfeitamente coerente. Este volte-face dá-se com Piero Della Francesca Após Lucio Fontana, exposição apresentada na Sociedade Nacional de Belas Artes. Mais tarde, em A Grande Janela de Kiev, exposição realizada na Galeria António Prates, Noronha da Costa reafirma com segurança o seu diferente caminho na mesma busca de questionar, de problematizar a imagem e o que existe entre ela e o observador. Com a presente mostra de pintura e objectos recentes, o artista demonstra que a vertente encetada tem na verdade um caminho bem traçado e no qual segue como numa espécie de ciclo estético: o retorno à questão inicial acerca da permanência da imagem na sua luta com o espaço, sob a influência omnipresente da luz.

Agora, já com um longo e heterogéneo caminho percorrido, é-nos permitido finalmente, se não mesmo chegar à resposta final, vislumbrá-la. Lá estão ainda as reminiscências de paisagens marítimas e crepúsculos, as ambiências oníricas, agora tratadas de outra forma. Minimais, depuradas, simplificadas e polissémicas. Imagens que não estão apenas por detrás do ecrã, mas também sobre ele, entre ele e nós ou até fora de quaisquer limites. São planos diferentes, sobreposições de imagens em dimensões que se multiplicam de tal maneira que já não sabemos os contornos ou profundidades daquilo que observamos. Obras que se autonomizam dos períodos anteriores numa nova linguagem e às quais o autor nunca chegaria sem percorrer todos aqueles oceanos difusos de espuma e criaturas femininas românticas. É a figuração que finalmente se desfaz para se multiplicar num silêncio expectante.


«Na realidade, se todas as coisas são imagens, todas as imagens nos aparecem como coisas.» - Fernando Pernes, Noronha da Costa - Galeria Quadrante


«É uma espécie de vida latente, de realidade submersa mas à beira da aparição» - diz Eduardo Lourenço em O Espelho Imaginário. Descrição que se aplica tanto à sua pintura-pintura como aos mais recentes objectos, aos quais Noronha da Costa retomou recentemente e em que cria “formas que valem como coisas e não como imagens de coisas conhecidas”, nas palavras de Rui Mário Gonçalves em A Arte Portuguesa do Século XX. Estes objectos “não se organizam volumetricamente como as esculturas, nem ilustram simbolismos; aludem ao tempo, como presença efémera intensa, sem depender do passado nem do futuro”. Podemos assim continuar a nomear estes novos objectos de anti-pintura, tal como o fez Noronha da Costa quando surpreendeu o meio artístico na sua estreia: “Eu fiz anti-pintura e objectos entre 1965 e 1968. Parti da anti-pintura para uma pintura de “projecção”, onde a imagem se separa do nosso próprio espaço. Nas artes plásticas ou se pensa o fim da imagem, e, portanto, a imagem, ou se enche o mundo de lixo, permitindo a criação de vazios que o Poder hoje preencherá com todas as suas formas de repressão e controlo”. As suas telas diluídas, difusas têm que ver, sobretudo, com essa colocação num espaço que é puramente pictórico, mas que vem com toda a formação de base decorrente da anti-pintura. Noronha da Costa passa assim para uma pintura extremamente idiossincrática, derivada da sua anti-pintura. Trata-se de celebrar a morte da representação através da representação desta mesma morte.


«Porque não é apenas a intervenção da pintura no espaço que se observa, mas também, simultaneamente, a entrada do espaço na pintura. (...)»

José-Augusto França - Oito Ensaios sobre Arte Contemporânea


Há nestas obras um cada vez maior espírito de experimentação e de desafio aos limites da percepção. Quer seja através dos objectos ou da pintura - que se questiona incessantemente a si própria e interroga a imagem com o mesmo fervor - pairam aqui diferentes dimensões em simultâneo. Nas palavras do próprio: “Tem a ver com o problema da luta entre imagem e espaço. Nos quadros que estou a fazer, o observador quer determinar o espaço com o olhar e o olhos fogem-lhe para o que está ao lado, que é também o espaço. Mas um e outro querem ser imagens e se quisermos vê-los como imagens somos atirados para o que é o espaço. Se quisermos ver o espaço, somos atirados para a imagem”. Quanto à tensão enquadrada nestas suas caixas, a questão persiste... “Estes globos dourados surgem na sequência das minhas duas exposições anteriores, onde procurava uma relação entre espaço e imagem. O espaço, é renascentista; a imagem, é pos-renascentista. É a partir dessa luta que podem então aparecer objectos que são simultaneamente imagem e espaço.” Mas não sabemos, agora, se esta é uma luta real ou se estamos já num espaço progressivamente abandonado pelas imagens num conjunto de obras em que tudo se indefine. Noronha da Costa não denomina estas peças como esculturas ou pinturas. São objectos, e por aí se dá a relação íntima com a anti-pintura, como a entende José-Augusto França: “A relação entre os dois elementos é mútua; um e outro se tornam ambivalentes. A pintura é reduzida a um estado em que, ao mesmo tempo, existe e não existe, se renega para se tornar outra”.

Se a importância do trabalho deste homem é inquestionável, então porque razão o seu nome raramente aparece citado entre os maiores artistas portugueses contemporâneos? Bernardo Pinto de Almeida, no livro Noronha da costa ou a Consciência do Tempo, fala sobre uma obra que, não obstante os esquecimentos pontuais da crítica e da comunidade artística, é reconhecida como incontornável na história da arte portuguesa. “Se é verdade que o pintor recebeu nos inícios da sua intervenção um invulgar reconhecimento crítico, de resto reconhecido, pela inovação que a sua obra trazia e, ao mesmo tempo, pela elegância conceptual e formal que nela se casavam, e soluções que aliavam o maior preciosismo a uma estruturação plástica de extrema eficácia visual, o facto é que essa obra caíu numa espécie de esquecimento crítico que só se explica num contexto cultural como o português”. No entanto, Luís Noronha da Costa brinda-nos agora com um corte neste marasmo através de um trabalho incansável e refrescante. Ele prova mais uma vez que a sua proposta continua actualizada num registo experimental. Recorre forte e coerentemente à História de Arte e à Filosofia, sem no entanto podermos integrar o seu campo perceptivo numa corrente pré-estabelecida. Estamos perante um conjunto de trabalhos que resgata as questões da imagem, como o autor as iniciou nos anos 60. Desta vez com objectos ainda reminiscentes da anti-pintura, assim como pinturas de dimensões cambiantes que se projectam frente a si próprias, no observador, e fazem uso do que está por detrás delas para o integrar como parte delas. Cria assim uma experiência de fruição do objecto que se assemelha a um jogo de partilha de sensações. Estamos perante o refinar de uma linguagem quase metafísica que nos devolve à contemplação, estado essencial ao fruidor para que aceite a questão proposta. Luís Noronha da Costa insiste: “A minha pergunta em relação à imagem não será ainda um problema da imagem?”. A pergunta perdura. A formulação da mesma é que varia, agora com uma sintaxe talvez mais próxima da primeira, continuando paradoxal e surpreendente.


Noronha da Costa trabalha e manipula o espaço, o lugar onde em tempos reinou a abolida representação e re-cria assim a sua pintura-pintura. Se este autor desde sempre trabalhou o ecrã e o espelho como omnipresenças da sua obra, assistimos agora, nestes objectos e telas, ao sublinhar de um tempo cristalizado, à multiplicação e ao estilhaçar das superfícies em suspenso silêncio.


Catálogo Noronha da Costa: Obra Recente – Pintura e Objectos. 6 Mar – 4 Abr 2009 Galeria António Prates


1 comentário:

  1. é uma honra ler um texto teu para um artista como o Noronha da Costa! Obrigada!

    bárbara valentina

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