domingo, 28 de junho de 2009

Mas afinal quem é Jorge Molder?


O artista em metamorfose. “Pinocchio” é a exposição que Jorge Molder apresenta no Chiado 8. O nariz de Miguel Matos aprovou.

Existem várias razões para um artista se auto-retratar. Uma delas é mentir – actividade preferida do bonequinho de madeira mais famoso do mundo. Quando um autor pinta ou fotografa um retrato de si próprio, ele pode querer assumir uma outra identidade sem no entanto fugir completamente de si mesmo. E com isso acaba por ser o “mirone” da sua própria imagem, um voyeur.
Jorge Molder trabalha o auto-retrato há quase 20 anos. Nas suas fotografias, sempre a preto-e-branco, o que vemos não é exactamente a imagem do artista mas sim a imagem de uma personagem criada por ele. Uma personagem que, ela própria, não é concreta. Não é sempre a mesma – e assim se cria o enigma da auto-representação.
Na exposição “Pinocchio”, Jorge Molder avança para um outro nível, ao encobrir o seu rosto com uma máscara feita a partir do seu rosto. A coisa complica-se e torna-se mais abstracta. O interesse aumenta...
Molder mandou executar uma escultura que o representasse: um duplo do seu corpo. E o que fez? Fotografou-se a partir desta peça.
A função da máscara é encobrir e disfarçar aquele que a veste. Sob a máscara encontra-se, supostamente, a verdade. Mas o que é que acontece quando a máscara representa, copia a verdade que se esconde por debaixo dela? É que em “Pinocchio”, a máscara que Molder veste é uma réplica do seu próprio corpo. Isto é uma subversão do retrato. Como diz o crítico de arte Bruno Marchand acerca destas obras, “é fácil perceber como nos habituámos a procurar nestas imagens pistas que nos conduzam a uma determinada verdade sobre o sujeito retratado. De certa maneira, esperamos que elas nos comuniquem um estado de alma ou que nos dêem acesso a uma espécie de autobiografia sumária do artista”. Mas neste caso, as expectativas, como sempre acontece nos trabalhos de Jorge Molder, saem goradas.
A personagem que nos aparece à frente fica ainda mais longe da sua pessoa. Até mesmo a ausência de quaisquer referências pessoais, temporais ou de local nas fotografias adensa o mistério. No entanto, afirma-se mesmo assim a continuidade da obra do artista, pois o discurso tem o mesmo tema, uma e outra vez. E qual é esse tema? A identidade – sempre esta. “Pinocchio” joga o mesmo jogo de sempre mas com novas cartas.
O mais perturbador neste magnífico conjunto de imagens é reparar que fotografias de máscaras, fragmentos de mãos e esculturas possuem tanta expressividade como o modelo a partir do qual foram criadas. Não só são mostradas as peças que constituem o duplo do artista como também partes do processo de construção destas mesmas peças. É a identidade a ser esticada e estilhaçada até ao seu limite. Cria-se uma sensação de estar perante um puzzle hipnótico, ao observarmos estas imagens de um metro quadrado numa companhia de seguros em pleno Chiado.
“Pinocchio” está patente no Chiado 8 (Largo do Chiado, 8) até 10 de Julho. De segunda a sexta das 12.00 às 20.00. A entrada é gratuita.


Time Out Lisboa, terça-feira, 23 de Junho de 2009

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Miguel Branco - Um Bestiário de Micropersonagens


Miguel Matos leu e recomenda o livro sobre Miguel Branco. Leve os óculos e visite também a exposição na livraria da Assírio & Alvim.



A fábula começa na rua Passos Manuel. Ao entrar pela porta da livraria Assírio & Alvim, o olhar foge para pequenos rectângulos nas paredes do fundo, na galeria. Uma pequena e simpática corça em bronze diz olá e apresenta o visitante aos seus amigos, representados à sua volta em minúsculas pinturas. São caveiras, macacos, avestruzes, galinhas e personagens ocultas que perturbam e intrigam. O que fazem eles aqui? São testemunhas do lançamento do livro sobre quem as criou.

Esta é a primeira monografia sobre a obra de Miguel Branco, contando com dois textos sobre os 25 anos da sua produção artística. Finalmente todas as criaturas de Branco estão reunidas numa análise a quatro mãos. São dois os autores: Manuel Castro Caldas, presidente do Ar.Co (escola onde Miguel Branco lecciona Pintura) e Mark Gisbourne, crítico de arte. Ao longo destas 144 páginas, faz-se uma leitura exaustiva e cronológica da obra do artista, percorrendo as várias fases, as várias séries temáticas, as diferentes abordagens e influências. Manuel Castro Caldas cede, aqui e ali, à tentação comum aos teóricos de arte: complicar o texto com referências que apenas entendidos poderão achar interessantes. No geral, consegue descrever e analisar a obra de Miguel Branco, mas fica-se pelas teorias e processos, deixando assim de lado a oportunidade de realçar a matéria mágica e intrigante de fábulas e mistérios que vivem encerrados nas peças do artista. Um texto objectivo, meio desencantado, como se Miguel Branco não fosse capaz de provocar sensações com as suas imagens.

No segundo texto, o inglês Mark Gisbourne já entra por análises mais livres e de cariz biográfico, mas também ele parece um pouco preso aos caminhos percorridos. Não se esquece, no entanto, do carácter enigmático da obra de Miguel Branco. Sendo assim, são dadas ao leitor as ferramentas de contextualização para que possa entrar pelo seu próprio pé na exploração deste mundo que engloba elementos aparentemente díspares como o rococó e o cinema de série B. Referências e contra-referências explicadas nestas páginas e que se revelam com o avançar das séries e dos trabalhos seja em pintura ou em escultura.

Num único parágrafo, Mark Gisbourne consegue sintetizar o trabalho deste artista: “o mundo de Miguel Branco é um verdadeiro arquivo de ideias e fontes, abarcando tudo, desde a arte da Renascença até aos cartoons manga, do horror gótico até aos espectáculos do bizarro ou à ficção do fantástico”. Salienta ainda o parentesco com os surrealistas belgas, como Magritte, e fala de uma tendência para a aproximação ao fantástico e à ficção científica, após temas de criminalidade, sadomasoquismo e “personagens transgressoras de cabeça tapada de negro”.

Segundo Gisbourne, “Branco não descarta soluções e influências que venham do seu interesse por formas históricas da arte, tais como a caricatura, a pose e o fingimento ou a máscara, mas elas serão expressas de modo cada vez mais intenso e livre nas suas madeiras de pequena dimensão que se tornaram as suas superfícies de eleição.”

Com uma qualidade excepcional na reprodução das imagens, o livro de Miguel Branco é em si um objecto precioso, documento biográfico do autor e explicativo do aparecimento daqueles animais insólitos dispostos em cenários abstractos, esqueletos grotescos e criaturas mascaradas que espreitam e se deixam observar em dimensões de miniatura. Ao vivo, esta pequena escala obriga o observador a aproximar-se de tal maneira à imagem que esta se perde e dilui. Agora pode levar estes bichinhos e personagens mascaradas para casa, mas certifique-se de que não saltam das páginas para os seus sonhos...

A exposição “Trabalhos Recentes” de Miguel Branco está patente na livraria Assírio & Alvim (Rua Passos Manuel, 67 B) até ao final de Junho. Aberta de segunda a sábado das 10.00 às 13.00 e das 14.00 às 19.00 horas. A entrada é gratuita e se comprar lá o livro ainda tem 10% de desconto.

Assírio & Alvim / ADIAC
30€

Time Out, terça-feira, 19 de Maio de 2009