terça-feira, 14 de dezembro de 2010

David Oliveira - Desenhar no espaço


Artista recentemente surgido na paisagem da arte portuguesa, David Oliveira (Lisboa, 1980) começou a expor em 2005 e mostra agora novas obras na Galeria Pedro Serrenho. As suas esculturas parecem causar um entusiasmo súbito em quem as vê.
A prova disso é a exposição “One Week Studio”, que estava para durar apenas uma semana mas que, depois de montada, foi prolongada para um mês, tal o efeito causado pelas peças no espaço. Filipa Oliveira, curadora dos “Project Rooms” na Arte Lisboa 2010, também foi uma das pessoas atingidas pelo espanto. Ao visitar a galeria durante a preparação do seu projecto, viu a instalação em arame “Biblioteca ou ensaio de multiplicação de planos”, de David Oliveira, e não resistiu a convidá-lo para instalá-la também na feira de arte. Não é de admirar, pois as peças de David Oliveira possuem um apelo que advém do facto de nos baralharem a percepção ao duvidarmos da sua presença entre o desenho e a escultura.

Não se trata de um corpo de trabalho baseado em conceitos rebuscados. Cada peça de David Oliveira é um estudo das capacidades de representação através da linha tridimensional em arame. No entanto, a escultura que realiza nesta técnica é capaz de criar sombras que são desenhos de linhas e manchas. Projectada na parede, a peça funciona em diálogo com a sua sombra. Essa sombra aproxima-se mais do desenho e causa uma duplicidade na obra. É difícil dizer se os trabalhos de David Oliveira são puramente escultura ou se são também desenho. A esta dúvida, David responde: “A minha formação é em escultura, como tal sou escultor. Este ano ingressei no Mestrado de Anatomia Artística, que tem uma vertente de desenho muito forte. Estas últimas esculturas, mais riscadas, partilham com o desenho valores plásticos, compositivos, metodológicos, que esbatem muito mais essa fronteira. Tornando-se mais próximo deste, contudo, ganham mais matéria, peso, aproximando-se também mais da escultura. É aqui que se situa o meu trabalho, no melhor de dois mundos, mas se me perguntarem eu direi que sou escultor e não desenhador.”

Esta exposição povoa a galeria com uma miscelânea de personagens humanas e animais em poses várias, explorações do retrato e cristalizações de movimento em linhas de arame. Não há um tema específico que David trate. Ele prefere a exploração do material e da técnica ao serviço de um registo figurativo. David Oliveira explora as capacidades de desenhar no espaço e criar personagens e ambientes com esta forma de arte “em esqueleto”, como se sublinhasse o essencial do desenho, mas também o essencial da escultura, retirando tudo o que é acessório. A sua obra, como diz o artista, “é puramente visual”.

David Oliveira é, ainda timidamente, um dos talentos que despontam em forma de promessa. Representado pela peculiar Galeria Mito, em Barcelona, acaba de vencer o Prémio Revelação em Escultura, na IX edição do Prémio de Pintura e Escultura D. Fernando II e é um dos seleccionados no concurso Jovens Criadores 2010, do Clube Português de Artes e Ideias. São pequenos indícios de uma carreira ainda curta, mas causadora de interesse.

Miguel Matos

“One Week Studio" está patente na Galeria Pedro Serrenho (Rua Almeida e Sousa) até 30 de Dezembro. Ter-Sab 11.00-13.00 e 14.00-20.00. A entrada é gratuita.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

David de Almeida - A Matéria em Discurso Directo


Como artista total que é, David de Almeida (São Pedro do Sul, 1945) sempre se dedicou à pintura, à gravura, à escultura e assemblage com resultados que criaram o seu discurso próprio. É esta faceta diversificada que se revela a muitos como uma surpresa nesta exposição antológica. A mostra não pretende ser exaustiva e organiza-se segundo a coerência das obras datadas de 1982 a 2010.
Na pesquisa plástica e estética de David de Almeida há um diálogo entre aquilo que o material é e aquilo que ele é capaz de realizar. Existe quase sempre a marca daquilo que o material riscou ou gravou na superfície para depois fazer emergir o próprio material que originou o risco, a mancha ou mesmo a cicatriz. “Não tenho grande relação com a tela”, diz o artista. “Sempre fui criado no meio dos materiais, das oficinas... tenho essa relação com a coisa física.”

Nesta exposição, os sentidos são convocados numa experiência em que o diálogo entre composição e material obriga a dupla leitura.

O difícil está em decidir qual delas é a primeira. Ou se capta a totalidade da obra ou se cede ao apelo físico e se parte à descoberta dos seus elementos matéricos. Descobrir de que é feita a obra, sentir a rugosidade da superfície vertical ou quase tocar (é o que apetece) a textura do metal em bruto, oxidado ou polido. Ou da pedra, esculpida ou aglutinada.

A surpresa está garantida para quem não tem acompanhado a actividade expositiva do artista em galerias como a 111 ou mais recentemente a Valbom, onde mostra regularmente o seu trabalho de pintura e escultura. A gravura, técnica talvez esperada pela maior parte dos visitantes, apenas aparece aqui em poucos mas excelentes exemplos. Em Portugal, país onde a gravura já teve dias áureos, não se aprecia esta técnica, perdurando o desinteresse e incompreensão face à obra gráfica. Assim, revisita-se nesta antologia um período dos anos 80, menos conhecido. “Na inauguração percebi que até alguns amigos meus não sabiam que eu fazia este tipo de trabalho”, conta David. “Algumas destas obras apenas tinham sido expostas na Galeria 111, numa altura em que a crítica emergente dos anos oitenta estava mais preocupada com outros assuntos. Anos depois, alguns críticos escreveram que as coisas mais importantes que eu fiz foram desta época.”

Ao longo das salas testemunha-se uma redução das formas ao seu mínimo, maximizando as potencialidades plásticas da cor, da matéria e da textura, ampliando assim a experiência sensorial. Há diálogos e desdobramentos entre aquilo que David de Almeida faz nas diferentes técnicas. Um jogo entre a pintura e a escultura que transforma o bidimensional em tridimensional e vice-versa. É de destacar uma série de obras em papel moldado, realizada em 1982. “À volta do sítio onde nasci há imensas gravuras rupestres. Fiz o percurso destas gravuras e pensei que nunca se tinha tirado provas delas. Então decidi fechar o ciclo.”

A técnica consistia em colocar borracha de silicone por cima da pedra e assim fazer o negativo.

Esse silicone tinha que ter umas costas em gesso. “Andávamos nós pelas matas com o silicone, baldes de água e sacas de gesso às costas. Era uma mão-de-obra enorme... Depois trazia o molde para o ateliê, montava as placas de gesso e prensava a pasta de papel contra o silicone”, conta. O resultado são formas ancestrais em relevos brancos de papel como pedra. Aliás, a pedra está quase sempre presente na obra de David de Almeida quer em evocação, quer por sugestão ou mesmo em matéria, como nos quadros em que as composições geométricas são feitas em pedra em pó com gel.

Entre a forma e a matéria, a luta acaba em vitória para os dois lados numa antologia que leva a entender onde começou o trabalho que hoje vemos e porque chegou ao resultado final.

Miguel Matos

“David de Almeida – Antologia" está patente na Galeria do Palácio Galveias (Campo Pequeno) até 30 de Janeiro de 2011. Ter-Sex 10.00-19.00. Sáb e Dom 14.00-19.00. A entrada é gratuita.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Rui Effe - Tóxicos Delírios Musicais




Segundo a lenda medieval, na província de Taranto, no Sul de Itália, um veneno misterioso punha os habitantes em delírio, delírio esse que inspirou um género musical. São estas loucuras e estas músicas que se sentem ao percorrer com o olhar os percursos sinuosos dos desenhos parcos de cor mas plenos de movimeno de Rui Effe. “Uma noite adormeci a ver um filme e a meio da noite acordei com o som de um violino que tocava aceleradamente uma música lindíssima. Fui pesquisar à internet e descobri que a música era uma tarantela. Descobri também que associada à tarantela existe uma lenda. Foi essa lenda que me levou a fazer estes desenhos.” É assim que Rui Effe explica o porquê do tema da sua exposição “La Tarantella”, na Galeria de São Bento.
O corpo tem sido sempre uma das maiores preocupações e interesses deste artista (o seu blogue chama-se esteeomeucorpo.blogspot.com).

De forma menos directa, em “La Tarantella” é ainda o corpo que se expressa afectado e infectado através de um veneno catalisador de danças e convulsões físicas. Trata-se de uma representação gráfica de substâncias estranhas que, ao entrarem em contacto com o corpo humano, quer sob a forma física, quer espiritual, o tornam peculiar. Nesta representação, apesar de abstractizante, é possível visualizar correntes circulatórias em alta velocidade que fazem os olhos dançar pela superfície do papel e da tela como corpos em transe. É uma “exaltação, um delírio e a prostração do corpo assim que invadido pela substância contaminante”, diz Effe. O registo da maior parte destes trabalhos é de um desenho automático, realizado em velocidade sobre papel e em objectos. Desde sempre ligado essencialmente à disciplna do desenho, Rui Effe tem-se dedicado ultimamente também à produção de objectos, instalações e assemblages, com resultados plásticos misteriosos e impactantes. Em “La Tarantella”, o desenho torna-se mais uma vez tridimensional em telas suspensas, acordeões, ninhos, teias e outras realidades físicas em técnicas pouco convencionais. Há um lado obscuro e de opacidade que impede uma visão imediata do conteúdo de cada elemento. O mistério é parte integrante desta série, com peças desconcertantes que provocam o observador. Nem tudo é lógico, nada é certinho. “La Tarantella” gira em círculos e linhas sinuosas que entontecem como um veneno.

Uma vez que o conceito da exposição se baseia em crenças e mitos, eis mais um pouco do elemento histórico que fundamenta o conceito das obras. O título e género musical que serve de referência tem a ver com o tarantismo (também chamado tarantulismo). Segundo a crença popular este é um delírio muito específico, causado pela picada tóxica de uma aranha muito especial: a tarântula (Lycosa tarentula). Quando os habitantes de Taranto eram atacados por este bicho, o resultado era uma febre que se traduzia numa dança frenética – a tarantela. Nos desenhos de Rui Effe, os cérebros derretem-se, as figuras esbracejam, as veias dilatam-se e transformam-se em pautas de uma música veloz e inebriante como um orgasmo ou um outro qualquer êxtase físico ou mental.

Miguel Matos

“La Tarantella” está na Galeria de São Bento (Rua do Machadinho, 1) até 30 de Dezembro. Aberta de terça a sexta das 14.00 às 20.00. Sábados. domingos e feriados só por marcação. Entrada gratuita.