terça-feira, 28 de abril de 2009

Lara Torres - Experiências entre a moda e a arte



Hoje visitei a Lara no seu atelier... Aqui vai o texto que escrevi sobre ela há um ano sobre “Fac Simile / Mimesis”:

A impressão da vivência pessoal marcada numa camisola. Os vestígios de um relógio. A reminiscência do tempo numa camisa já usada... O vestuário como registo de memórias é o ponto de partida para a exposição “Fac Simile”, de Lara Torres. A roupa como comunicação não verbal, como primeira camada pessoal. “Relacionamos as roupas com a altura em que foram adquiridas, com acontecimentos ou com determinadas épocas”, diz a criadora. É daqui que tudo parte para frames tridimensionais em tecido, porcelana, látex e prata.

Finalizado o curso de moda, Lara Torres, venceu o concurso Sangue Novo da Moda Lisboa, que lhe possibilitou estagiar durante três meses com Alexander McQueen, em Londres. Voltando a Portugal, apresenta colecções regularmente na Moda Lisboa. Mas o trabalho que Lara apresenta esta semana, apesar de se basear num conceito de vestuário, pouco tem de moda. O projecto “Fac Simile” é realizado em conjunto com Mário Nascimento (ceramista) e Catarina Dias (joalheira). “Desde 2005 que desenvolvo uma investigação sobre a relação entre o vestuário e a memória. E embora as colecções possam ter um aspecto diferente, é sempre a mesma base de pesquisa.”

Fac Simile” representa o caminho percorrido até chegar a uma colecção de moda. Só que esta experiência inscreve-se num outro domínio de interesse, com uma linguagem mais aparentada com as artes plásticas. “Para mim todas essas fronteiras e separações não fazem sentido. Quando faço uma exposição estou a utilizar um formato que não pertence à moda e sim às artes plásticas, mas porque existe um conteúdo que precisa dessa forma. Quero resolver o problema da relação das pessoas com a moda quando a encaram como uma futilidade. Quero atentar contra isto, porque me incomoda. Por ser vestuário, as pessoas tendem a pensar que o meu trabalho é pouco sério.

Assim, decidi mostrar tudo o que foi feito antes de concretizar este projecto que culmina na Moda Lisboa com a performance “Mimesis”. A exposição é feita no meu atelier e mostra as coisas que correram mal, as experiências, os fracassos. Na moda, normalmente apenas se vê o produto final, mas o processo é o mais importante. Decidi mostrá-lo para que as pessoas percebam por-que é que a minha roupa lhes pode parecer tão estranha.”

Os três criadores juntaram as áreas de forma a que se perdessem os contornos entre elas. Isto foi possível porque Lara Torres conseguiu um apoio da Direcção-Geral das Artes, o que já de si denuncia não só o carácter peculiar de “Fac Simile”, como a abertura que começa a haver nas instituições estatais. Lara não se proclama artista, mas utiliza as ferramentas da arte. Por outro lado, as peças expostas são objectos e não roupas. Não se destinam a ser usadas no corpo e possuem uma profundidade plástica e conceptual que transformam o todo num conceito artístico, uma entidade híbrida, experimental e transversal (características da arte contemporânea).

Faz sentido investigar o lugar do vestuário e a sua relação com o homem. A questão da memória tem a ver com isso. Comecei a pensar nesta ideia quando vi uma foto-reportagem sobre os conflitos na Bósnia, acompanhando os destroços do que tinha acontecido. Impressionou-me brutalmente. Era uma recolha dos corpos e das peças que os podiam identificar. Havia mortos e sacos com objectos pessoais, roupas. Por vezes só através do vestuário é que os familiares conseguiam identificar as vítimas. Foi daí que parti para a investigação da memória e da identidade. Uma busca quase arqueológica em que cada camada de trabalho oferece conhecimentos e descobertas sobre os próprios materiais.”

Um inventário de fragmentos e objectos íntimos, como memórias desfocadas com o passar do tempo. “Fac Simile” é uma exposição surpreendente e poética.

Time Out, 4 de Março de 2008


segunda-feira, 27 de abril de 2009

Sitexcape - A arte em versão ao domicílio


A arte em versão ao domicílio (tipo, vamos a casa)

Precisa de estímulo artístico? Miguel Matos receita-lhe várias doses de um remédio criativo chamado Sitexcape

A arte pode assumir as formas mais diversas e pode suscitar os encontros mais inesperados. É de encontros que vive um projecto recente chamado Sitexcape.com. Como dá para ver pelo “.com” é um site, pois claro. Mas aqui reside uma plataforma de troca de experiências e conhecimentos, pessoais, teóricos, práticos e quase sempre artísticos. “A ideia do sitexcape é ser um ponto de encontro de ideias e experiências de criação”, explica Natércia Caneira, artista e criadora deste site que envolve outros autores como Orlando Franco, Susana Anágua e Bábara Assis Pacheco, entre outros. “Queremos promover situações criativas. Não no sentido de uma galeria, uma revista ou um simples website. Queremos criar situações paralelas ao que normalmente é entendido como arte”.

No Sitexcape, workshops, precursos culturais, tertulias e residencias artisticas são elaborados com uma forte componente experimental. O projecto mais interesante será as reuniões de amigos em casa de coleccionadores de arte, com a intervenção dos artistas deste colectivo. Em Portugal temos escondidos em suas casas coleccionadores privados com obras muito importantes que só são mostradas aos seus amigos em jantares privados. São pessoas endinheiradas que estão fartas de sair e fazem festas em casa. O sitexcape aparece nestas festas e dinamiza a noite com as peças de arte e as palavras trocadas em casa. “As pessoas compram obras de arte mas por vezes não sabem muito bem porque gostam daquilo e não possuem bagagem para entender e fazer ligações. Compram por gosto. O que nós fazemos é ir lá a casa e esclarecer as coisas. Às tantas cria-se uma dinâmica em que de repente estamos a falar de política, de história... Avança-se para uma série de conversas que partem da arte para outros temas e em que todas as pessoas participam. Costumo levar outro artista comigo e trabalho também com pessoas da área de teatro, de história de arte... tudo depende da colecção que as pessoas têm em casa. Nao há limites de tempo para a conversa. Dura o tempo que tiver de durar”, diz Natércia. É o verdadeiro espírito de tertúlia, quando se pensava que esta se arriscava à extinção.

Mas como funcionam estas tertúlias animadas pelo Sitexcape? O coleccionador contacta o colectivo através do site e Natércia faz-lhe uma visita. Normalmente estes serões são só para amigos, à porta fechada pois os coleccionadores são como todos nós e não gostam de trazer estranhos para casa e muito menos de revelar tesouros publicamente. É uma coisa mais intimista e que passa de boca em boca. O resultado são experiências únicas. “conhecemos pessoas fantásticas com experiências interessantes e diferentes. Fascina-me este meandro de pessoas que são invisíveis à maior parte da sociedade”, revela Natércia. Mas o sitexcape tem outras valências e não se fica por aqui. Existem também as residências artísticas em que se junta um grupo de pessoas durante três dias fora da cidade, num espaço rural, fora do contexto em que normalmente os artistas trabalham. Partilham-se assim ideias e projectos. A questão que está por base é a mesma que, segundo Natércia Caneira, dá origem ao nome Sitexcape: “quando estas desenquadrado és mais criativo e descobres coisa novas. É a ideia do artista em viagem, típica do século XIX que faz cada vez mais sentido”. Para os mais afoitos da aprendizagem há workshops em parceria com instituições como os de desenho que neste momento decorrem no Museu de Ciência e no Museu de História Natural. São aulas práticas para pessoas que já sabem alguma coisa mas que querem um acompanhamento ao seu trabalho.

As dicas estão lançadas para coleccionadores que querem animar uma noite com amigos e para artistas em busca de inspiração. Agora é explorar o Sitexcape e descobrir outras ferramentas para crescer na arte.

Time Out, Março 2009

sábado, 25 de abril de 2009

David LaChapelle



«Nao tenho qualquer interesse na fama

David LaChapelle

Por Miguel Matos

David LaChapelle é um dos mais famosos fotógrafos da actualidade. Nasceu em 1969 e, enquanto bebé, era fotografado pela sua mãe, envergando umas asinhas de anjo feitas em papel. Certa vez, a mãe fotografou-o com roupas inspiradas no filme Música no Coração, em frente a mansões de pessoas desconhecidas. Enquanto jovem, LaChapelle era apenas um puto com más notas e desprezado pelos colegas da turma na sua terra natal, North Carolina, América. Passava o dia em aulas de artes plásticas (as únicas em que obtinha bom aproveitamento) na North Carolina School of Arts, e vestia as roupas mais bizarras que podia, com uma grande influência da música punk e disco. Assumia-se clara e coloridamente gay e era considerado um freak. «As pessoas atiravam-me comida na cantina porque eu me vestia de maneira diferente. (...) Chamavam-me maricas. Houve alturas em que eu já não conseguia aguentar mais», revelou à revista The Advocate.


«O meu trabalho baseia-se totalmente na fantasia. Fugir para o mais longe possível da realidade.»


Um dia, cansado de tudo isto, fez as malas e rumou a Manhattan, onde se sentiu de imediato entre os da sua espécie. Gente diferente, criativa, enérgica e com um apetite devorador pela vida. Nessa altura, a meca das celebridades, freaks, chiques e outros que tais era o Studio 54, e foi lá que David foi parar, acabando por trabalhar no clube. Certo dia, encontrou um brinco no chão e com ele comprou a sua primeira câmara (veio a saber mais tarde que a jóia pertencia a Paloma Picasso). A ambição da fotografia levou-o a ingressar na Arts Student League e na School of Visual Arts. Mas a loucura não o abandonou e as suas companhias preferidas eram Michael Clark, Leigh Bowery e os infames Club Kids. «Não fazia ideia que este círculo era considerado como o “epicentro do cool”. Toda essa loucura criativa... Eu pensava que era assim que a vida era depois de se deixar a escola». Um dia, nos bastidores de um concerto dos Psychedelic Furs, no Ritz, travou conhecimento com Andy Warhol. As cartas estavam na mesa e a sorte a seu favor...


«Adoro todos os tipos de exibicionistas ou pessoas doidas.»


Andy Warhol era o director da mais excitante revista saída de Nova Iorque, a Interview. Era o sonho de David poder fazer parte daquela equipa e foi Warhol quem primeiro detectou o seu talento. A explosão de loucura que era a Big Apple no início dos 80’s nunca deixou de influenciá-lo. E a fantasia que se vivia todas as noites no Studio 54 é parte importante disso. No entanto, como disse à Black Book, o revivalismo não o fascina: «Acho que somos sempre um produto daquilo com que crescemos. Acho que esse tempo me inspirou. Mas não me interessa ver um filme sobre isso ou ler acerca de tal assunto. É mesmo entediante. Quer dizer, quem snifou coca com a Liza [Minelli]? Quem é que quer saber disso? Vejam o que lhe aconteceu. Vejam o que aconteceu a todos eles. Muito poucas pessoas saíram daquela fase».


«O meu trabalho baseia-se em encontrar a beleza no banal e tornar o vulgar em extraordinário. Quero alargar a ideia de realidade e ajudar as pessoas a sentirem que tudo é possível.»


Em 1984, David fotografava regularmente para a Interview sob a direcção de Warhol, cuja única exigência era: «toda a gente deverá parecer bela». Princípio que LaChapelle cumpre religiosamente até hoje. Trabalhou furiosamente até à morte de Warhol, em 1987. E como é hábito, entram novos directores, saem talentos. La Chapelle foi despedido e durante dois anos andou perdido. Pouco antes, o azar já lhe tinha batido à porta: o seu namorado morreu com SIDA, alterando drasticamente as fotografias tiradas a partir de então. Como contou à revista Ocean Drive, «Eu estava muito assustado (...) Fazia montes de imagens de anjos e pensava no Céu. Parei mesmo de trabalhar. Mas durante esse tempo aprendi a trabalhar a cores e depois, anos mais tarde, consegui usá-las e divertir-me de novo. Os 80’s foram os anos do preto-e-branco de Bruce Weber, Ellen von Unwerth, Herb Ritts, e eu andava a lidar com muita tristeza e melancolia. A cor representa uma perspectiva mais alegre e, nos anos 90, queria fazer fotografia de outra maneira». E foi a partir daí que a loucura cromática que conhecemos do seu trabalho se tornou o seu paradigma visual. Mas as máfias da moda e da fotografia rejeitavam esta estética. David parecia estar com a carreira no fim, com pouco mais de 23 anos. Até que o director da (fabulosa) revista Details o repescou...


«Quero que todas as pessoas que eu fotografo pareçam estrelas de cinema ou de rock. Não quero expôr os seus defeitos, rugas ou borbulhas. Quero mesmo é fazer com que pareçam espantosas.»


Uma das fotografias de que LaChapelle mais se orgulha é a que mostra dois marinheiros a beijarem-se perto de um navio. A visionária marca Diesel pegou nessa imagem e utilizou-a como publicidade aos seus jeans. Foi mais um passo para que David se visse publicado por todo o mundo. As encomendas nunca mais pararam desde então (Vogue, Vanity Fair, Rolling Stone e I-D são clientes habituais, assim como foi a The Face). E deste Tupac a Madonna, de Amanda Lepore a Eminem, passando por Pamela Anderson, Uma Thurman, David Beckam, Paris Hilton, Hillary Clinton e Britney Spears, poucas são as celebridades internacionais com C e I grandes que não foram fotografadas por este génio. A revista American Photo elegeu-o como uma das dez pessoas mais importantes na fotografia. O lendário Richard Avedon disse um dia: «De todos os fotógrafos que inventam imagens surreais, é o Sr. LaChapelle quem tem o potencial para ser o Magritte do género». E apesar dos tempos mais difíceis pelos quais passou, o reconhecimento é quase unânime, com prémios que vão desde o International Center of Photography Infinity Award, ao VH1 Fashion Award.


«Vestir muitas roupas pode ser limitativo. A nudez é libertadora, lembra-me de uma certa liberdade de atitude; é dizer que não nos vamos acomodar».


A sensualidade é um elemento omnipresente nas imagens de LaChapelle. Mesmo quando fotografa celebridades, consegue sempre arrancar-lhes o pedaço de tecido que esconde a sua verdadeira personalidade. Ele já despiu meia Hollywood, muitas vezes revelando feras sexuais em actores low profile. Apenas Madonna, surpreendentemente, se recusou a tirar a roupa perante a sua objectiva. Entre os artistas que toma como mestres, é Guy Bourdin quem mais o influenciou (sendo, no entanto, obrigatório mencionar também Fellini, Helmut Newton e Diane Arbus). E a estética destes é perfeitamente reconhecível. Mas a outra grande fatia de influência é a da Arte Pop, que observamos na forma como David recorre a elementos da vida quotidiana e do consumismo, em especial.


«Odeio a ideia de bom gosto na fotografia e na arte.»


E depois de anos a explorar a imagem parada, LaChapelle seguiu a exploração da sua mente fervilhante através do vídeo. Começou com um pequeno filme para a MTV, depois um videoclip para os Dandy Warhols e um spot para Giorgio Armani. Depois seguiram-se Christina Aguilera, Britney Spears, entre outros. Estreou-se no documentário com Rize, um filme sobre a dança/fenómeno cultural/social Krumping. Choveram prémios como o do Festival de Aspen para melhor documentário e uma menção honrosa no Festival de Sundance. Mas é de fotografia que este texto fala, pois acaba de ser lançado pela Taschen o livro Artists and Prostitutes. Uma compilação das melhores imagens, em espécie de retrospectiva. 688 páginas em tamanho XL e impressas com a mais avançada técnica de modo a suportar a saturação de cor típica de LaChapelle. São apenas 2500 cópias para todo o mundo, assinadas e numeradas pelo autor. Já era estranho a Taschen não ter dedicado até agora um livro a este homem. Mas entrar nesta aventura sairá caro: controlem esses instintos, pois cada exemplar custa a simpática quantia de 1500€!!!


Umbigo, Março 2006

terça-feira, 21 de abril de 2009

Tapeçarias: Arte com luxo e tradição



Tapeçarias: Arte com luxo e tradição

No Alentejo a arte faz-se ponto a ponto. Miguel Matos visitou em Lisboa a Galeria de Tapeçarias de Portalegre


São feitas em lã e penduram-se na parede. Representam milhares de horas e centenas de dias de trabalho. São obras de arte por direito próprio e vêm todas do Alentejo. Criadas por artistas de renome como Almada Negreiros ou Graça Morais, as Tapeçarias de Portalegre combinam a arte e o luxo em fios de um ofício único. Uma arte rara que exige muito conhecimento e preserverança. Existem poucas manufacturas deste tipo na Europa e em Portugal, com edições artísticas, é esta a única em funcionamento.

A Rua da Academia de Ciências é um local que mistura a arte contemporânea e as técnicas ancestrais. Para além da Galeria Ratton Cerâmicas, mesmo ao lado está a Galeria das Tapeçarias de Portalegre, o que prova que a tradição e a vanguarda podem mesmo dar as mãos. E não se pense que se trata de uma mera técnica de reprodução de obras de arte. Muitos artistas trabalham em específico para tapeçaria: Menez criou a pensar nisso. Júlio Pomar, Eduardo Nery e Lourdes Castro também, para além de muitos outros. “As tapeçarias são normalmente produzidas em edições limitadas de quatro exemplares, mas também existem peças únicas, feitas por encomenda. Não há reedições e as obras são todas assinadas pelo artista e com certificado de autenticidade”, diz Maria João de Melo, responsável pela galeria. Quanto aos preços destas obras, não são propriamente simpáticos. Podem ir dos 8 mil aos 90 mil euros, dependendo da complexidade e tamanho.

Agora um pouco de história: a tradição de tapeçarias em Portugal começa no século XVIII com manufacturas instauradas pelo Marquês do Pombal, que pouco tempo duraram. Foi apenas em 1946 que foi fundada a Manufactura de Portalegre e dois anos depois surge a primeira tapeçaria mural, por João Tavares. Ninguém dava grande coisa por este projecto até que em 1952 os tapeceiros franceses reconheceram a sua qualidade. Como é hábito, só depois de os estrangeiros gostarem, é que os portugueses começaram a apreciar. Guy Fino, um dos fundadores, consegue então convencer Jean Lurçat, o renovador da tapeçaria francesa, a visitar Portalegre. Aí confrontou-o com duas peças. Uma tecida em França e que o próprio Lurçat oferecera à esposa de Fino, e a sua réplica tecida em terras alentejanas. Convidado a identificar a tapeçaria francesa, Lurçat escolheu a de Portalegre. A partir de então considerou as nossas tecedeiras como as melhores do mundo.

A tapeçaria de Portalegre parte sempre de um original de um pintor. É a transposição para um outro suporte e a uma outra escala desta obra. Maria João de Melo explica sucintamente como se dá este processo: “o original é apresentado e a partir dele são feitos diapositivos que são depois projectados em papel de quadrícula milimétrica. A cada quadrícula corresponde um ponto. A desenhadora vai desenhando em tamanho real sobre este papel. Após isto, faz-se a escolha das cores. Uma tapeçaria tem uma média de 800 cores que são todas escolhidas individualmente sobre o desenho original. A Manufactura trabalha com cerca de sete mil cores mas se não existir um tom específico para um determinado pormenor, manda-se tingir. Cada tapeçaria tem cerca de 2500 pontos por decímetro quadrado, podendo atingir os dez mil em zonas mais exigentes. Uma tecedeira faz mais ou menos 5cm de altura por 60cm de comprimento por dia. O tempo total de execução depende da dificuldade do desenho, mas uma tapeçaria pode demorar um ano inteiro a produzir desde o início ao fim”. Poder-se-ia dizer que é arte em paciência de chinês não fosse ela estar profundamente enraizada nas nossas tradições têxteis.

Time Out, 15 Abril 2009

domingo, 19 de abril de 2009

António Palolo - We all Live in a Yellow Submarine...


António Palolo

We all live in a yellow submarine...

por Miguel Matos


Será esta imagem um frame do psicadélico filme “Yellow Submarine”? Parece que é mas não é. Finalmente acontece uma exposição antológica do pintor António Palolo no Centro de Arte Manuel de Brito, a primeira em doze anos de silêncio, que reúne obras desde os inícios dos anos 60 até 84.


António Palolo é um artista de quem pouco se fala, quase nada se escreve e raramente se expõe. Em portugal há um vazio de crítica e de história de arte que permite estes exemplos de grandes artistas acerca dos quais pouco ou nada se diz. António Palolo morreu cedo em 2000, com 54 anos e deixou atrás de si uma obra desigual que reflecte o seu carácter insaciável. Artista autoditacta nascido em Évora, pulou a vida toda de fase em fase. A necessidade de experimentar será talvez a característica mais marcante do seu trabalho, que acompanhou diferentes movimentos artísticos, passando do informalismo para a transvanguarda, pela arte-pop, pelo abstraccionismo geométrico até à arte conceptual. Num jogo contínuo que estabelece com o olhar, Palolo propõe um sistema integrado de formas orgânicas com estruturas geométricas. Sem nunca abandonar o seu reconhecido apelo ao sensorial do Homem, ele pretendeu conhecer a arte tanto quanto pretendeu conhecer-se como artista.


Palolo foi o destemido artista heterogéneo, pintor, autor de videos, de instalações e diaporamas. A sua insegurança (talvez pela falta de uma formação oficial), levou-o a querer abraçar sempre a corrente artística dominante.“Palolo não havia frequentado as Belas-Artes, e a sua formação autodidacta foi norteada por um forte instinto plástico, por uma necessidade interior que parecia conciliar, não sabe bem, não se sabe como, a fisionomia de uma paisagem alentejana, com a versatilidade de uma paisagem interior. Num primeiro momento foi no real que procurou marcas e signos para depois os transfigurar em surreais alegorias. Estas começaram por revelar uma sensibilidade pop. Mas seguiram depois os imprevisíveis caminhos dos ventos que sopravam nas searas e tudo agitavam à sua passagem, polindo as aparências”, diz Eduardo Paz Barroso, no único livro dedicado ao artista, editado pela Caminho e entretanto praticamente esgotado. Segundo Helena de Freitas diz numa ficha informativa do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, “O desenvolvimento desta vertente geométrica na passagem para os anos 70 conduziu-o a um abstraccionismo de sinalização pop ou psicadélico, através da cuidada articulação de bandas coloridas, num progressivo fascínio pelas possibilidades construtivas da simetria e do ritmo”.


Durante o seu caminho, António Palolo rompe com o que quer que seja, assim como nunca apresentou medos absolutos de abandonar as suas anteriores formas de expressão e redesenhar outras. Martirizava-se na incessante busca do género, técnica e momento para responder às suas questões. Após o 25 de Abril, abandonou bruscamente a figuração de raiz pop, entregando-se a delírios mais característicos do pós-modernismo, tendo participado na mítica exposição “Alternativa Zero”. Na década de 80, quando muitos dos seu colegas apelavam e afirmavam pelas artes visuais que a pintura tinha dias contados, Palolo finca-se na premissa do "não abandono" e das novas linguagens na permanência e autonomia da pintura. Entretanto, neste momento de indefinição nas artes visuais e em que não se pode traçar uma tendência principal, não deixamos de pensar: Como seriam hoje as obras de Palolo se ainda estivesse entre nós?

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Fátima Miranda - «Não procurei a voz: encontrei-a e casei com ela"



Fátima Miranda

«Não procurei a voz: encontrei-a e casei com ela»

por Miguel Matos

«O artista é um órgão de resistência. Somos como barricadas contra o medo e a indiferença. Não somos entertainers nem decoradores. Lutamos contra a degradação do gosto e dos conceitos de verdade e beleza. Gosto de reivindicar a capacidade do artista para despertar as máximas possibilidades de percepção, para descodificar, para pôr em evidencia as contradições. Isto faz com que todos sejamos mais livres»

Setembro. Madrid, babel multicultural. La Noche en Blanco – uma noite em que a frenética cidade parece estar sob o signo da loucura criativa. Milhões de pessoas vagueiam pelas ruas como formigas. Templo de Debod, monumento egípcio rodeado de água. Entra uma mulher e começa a chover. Um cenário quase sagrado. Uma voz inumana e hipnótica agarra uma multidão que não arreda pé apesar do dilúvio. Fátima Miranda continua estoicamente na luta contra a chuva e o vento apenas usando como arma o seu corpo sonoro. Uma hora depois nós não somos os mesmos, a chuva parou e a criatura abre uma sombrinha antes de desaparecer.

«Pode-se ler muito da personalidade de uma pessoa apenas ao escutar a sua voz. Há vozes que são mais neutras e outras que definitivamente te horrorizam. Há vozes que te seduzem...», diz Fátima Miranda, cantora, performer, criatura onírica em palco e excelente conversadora na sala de sua casa, no bairro de Lavapies, no centro de Madrid, onde fui recebido com cerveja, gengibre e amêndoas.

O pretexto para conhecer Fátima foi esta performance (porque não é apenas um concerto) que comemorava os 15 anos de carreira, mas começámos por falar de um espectáculo mais antigo do que este – Cantos Robados – pois este conceito explica em parte a sua obra. «Já percebeste que gosto de jogar com as palavras... Cantos Robados significa roubar, ir buscá-los às origens, às músicas ancestrais. Mas não me interessa copiá-las nem imitá-las. O que me interessa é roubá-las, realmente. Para mim! Fazê-las minhas!!! Até chegar a um ponto em que elas já não são elas mas sim eu. Transformá-las através do filtro da minha complexidade, da minha cultura, do tempo em que vivo. Comê-las realmente, digeri-las e convertê-las em algo diferente. Para mim a ideia de roubar opõe-se à ideia de imitar ou copiar que é o que faz a new age e tanta gente que trabalha com fusão, utilizando estes elementos de uma maneira necrótica. Pegam num elemento exótico e põem-no como um elemento decorativo. Não me interessa decorar. Interessa-me significar ou transmitir. Pegar nas coisas que roubo, repeti-las, repeti-las, repeti-las até que, depois de digeridas, caem sobre um terreno de cultivo que sou eu, onde há uma cultura, uma educação, uma opção estética, uma filosofia de vida, uma forma determinada de escutar...»



O que há de fascinante no teu trabalho ao vivo é a conexão íntima entre todos os elementos de um espectáculo. Não é só a voz... Hoje em dia não há muitos artistas que trabalhem a performance da forma como tu fazes, respeitando o seu sentido original...


Pois não... Ou então cai-se no domínio do teatro, por ser mais narrativo... Ah, experimenta isto. São gomas de gengibre... é maravilhoso experimentar a mistura de gengibre com amêndoas. Se os puseres na boca juntos... é uma descoberta que fiz há dois meses, o que achas? É que pica por um lado e suaviza por outro. Estas amêndoas não são as melhores, deviam ser mais salgadas, mas este gengibre é muito bom, comprei num mercado.


É realmente bom, e não é muito picante... Mas agora fala-me deste espectáculo no Templo de Debod. Foi épico! Aquela chuva imensa e tu com aquele fato esvoaçante branco e violeta contra o vento... Há uma altura em que estavas a cantar de frente para o vento e a chuva como se estivesses numa caravela, a lutar contra os elementos, as intempéries...


É verdade, um amigo disse-me: «estava a ver-te e era uma imagem maravilhosa e terrível! Épica!». A mim a pena que me dá é de não ter estado entre o público. Quando me dizem estas coisas gostava de poder ter uma Fátima fora e outra dentro do palco porque quando estou a actuar estou no meu mundo, numa concentração total.


Eu estava rodeado de centenas de pessoas. E muita gente não te conhecia nem estava preparada, e mesmo assim, sem conhecerem o teu trabalho - que por vezes é difícil para quem não está habituado - e apesar da chuva, estava como que hipnotizada, como que em transe.


Foi muito bonita a reacção das pessoas. Um amigo disse-me depois: «se viesse um raio, tu parava-lo!». E quando parou a chuva, coincidiu com a parte do concerto em que eu tocava um instrumento com água.


Este foi um espectáculo de retrospectiva de 15 anos de carreira... O que apresentaste são as obras que consideras as melhores?


Não, não é esse o sentido. O repertório que escolhi cria uma unidade e uma sequência, uma dramaturgia. Por outro lado, a nível técnico era necessário que não tivesse vídeos porque o risco de não funcionamento era muito grande por se tratar de um monumento ao ar livre. O espectáculo foi concebido tendo em conta as possibilidades e limitações do templo. E até com o vestuário quis ter o cuidado de não ser narrativa. Era a melhor selecção para este lugar.


De Cantar, era o nome da actuação. Porquê?


É o duplo sentido de cantar-decantar: separar o vulgar do puro, separar o essencial, como separar o líquido do depósito do vinho. No dicionário aparece a expressão inclinar-se para verter o líquido de maneira que por baixo fica o sólido. Gosto muito desta ideia e de associá-la à noção de haver várias capas, camadas...


Aproveitaste também para estrear Madrid Madrás Madrid... que tem a ver com a existência de tantas comunidades étnicas na mesma cidade...


Sim, havia uma paisagem sonora que incluia vozes indianas, do Bangladesh, Paquistão, uma mulher marroquina... Nessa altura foi quando choveu tanto tanto... Eu estava a cantar e tinha à minha frente um pequeno livro de orações de primeira comunhão com a partitura que foi ficando cada vez mais molhado e tudo o que escrevi se borrava... Entre uma e outra obra havia pequenos interlúdios com sons de ambientes de Madrid. Foi tudo recolhido com um microfone nos mercados, os gritos dos ciganos, dos chineses... Por exemplo, os chineses a gritar no mercado do Rastro “Camisas a Um Euro!!!”. Depois alguém diz oh Habibi e eu grito goool... adoro misturar tudo isto. Há uma realidade nova em Espanha: a imigração sempre esteve presente mas nos últimos anos tem aumentado. Aqui mais abaixo, o bairro de Lavapies está cheio de negros, cubanos, chineses. Isto é bom e uma fonte de música.


Reparei que muitas das músicas que cantas ao vivo estão tão rigorosamente estruturadas que parecem similares ao que se ouve no CD... Isso leva-me a pensar que tens uma partitura rígida...


Não gosto da palavra “rígida” por ser negativa, gosto mais de dizer que é fixa. Não é improvisada. Há uma estrutura muito clara em todas as minhas obras e sigo-a sempre. Tudo está tão trabalhado que cria uma liberdade e podes esquecer-te dessa estrutura.


Voltando ao assunto da retrospectiva e recuando estes 15 anos, como é que eles tiveram a sua origem?


Eu não era cantora nem compositora. No início dos anos 80, o compositor Llorenç Barber convidou-me a fazer parte de um gupo de improvisação, o Taller de Música Mundana. Eu era da área da História de Arte, era uma teórica. Mas ele queria formar um grupo de composição que não dependesse de partituras nem de cânones e pautas académicas. Ele queria gente que tivesse uma atitude musical mas sem formação, mais ligada à performance. E eu disse: ah pues si. Porque no? Parecia a coisa mais normal do mundo. Pensando em Marcel Duchamp, no Fluxus, surrealismo, dadaísmo, em todas as vanguardas e no underground, no happening... Não lhe dei muita importância e disse logo que sim. Subi ao palco de uma maneira espontânea. Era uma música orgânica, um pouco especulativa por causa do meu trabalho como historiadora de arte. Uma mescla de algo muito teórico com uma atitude muito intuitiva e selvagem como as duas partes do cérebro, coexistindo. Então nos ensaios a voz começou a sair pouco a pouco como uma reacção lógica. Por exemplo, eu estava a fazer ruídos numa garrafa de vidro e eu tendia a dialogar vocalmente com ela.


Não tinhas nenhuma relação anterior com a música?


Nada, nada, nada, nenhuma. Então comecei a improvisar com o que tinha à mão: um copo, uma colher, um tubo de plástico ou de metal... Tudo o que via convertia-se em objecto sonoro. Para mim a música é muitas coisas. Vivemos num armazém de ruídos que reciclamos e transformamos em música.


Escreveste livros, foste historiadora de arte e directora de uma fonoteca, depois veio a música... Existe alguma relação entre todas estas actividades?


Chegou uma altura em que queria alguma estabilidade e então consegui colocação como directora da fonoteca da Universidade Complutense e produziu-se aí um fenómeno interessante. Comecei a ter uma relação muito metódica com os documentos, assim como tinha acontecido antes, quando eu escrevi a minha tese sobre o urbanismo do pós-guerra em Salamanca. Seguia sempre uma metodologia muito rigorosa. Tinha uma boa relação com os documentos e com a organização da informação. Escrevi o livro La Fonoteca que recebeu um prémio do Ministério da Cultura. Em Espanha não havia nada sobre organização de documentos sonoros. Fiz até um plano de uma fonoteca ideal. Isto não tem nada a ver com o trabalho anterior nem estes dois trabalhos têm a ver com música mas no final tudo tem a ver com tudo. Eu tenho bastante desenvolvidas as partes analógica e analítica do meu cérebro. Ao mesmo tempo que sou muito rigorosa e organizo muito bem as coisas, tenho uma parte intuitiva bastante selvagem... Funciona como uma espécie de controlo da loucura. Quando ouves PercuVoz parece que estou completamente louca, mas há um controlo exacto, porque senão não poderia fazer o que faço com o virtuosismo com que o faço. E gosto muito disto.


Há músicas em que parece que descobriste uma linha melódica que depois catalogas e analisas incansavelmente, repetindo e variando até à exaustão, desenvolvendo-a... E depois consegues comunicar uma imensidão de elementos sempre sem usares a palavra.


Toda a gente já falou de todos os temas. A questão está na maneira como o fazes, na linguagem. O pior e o melhor poeta podem dizer o mesmo, mas a diferença está em como o fazem. É isto que me interessa. É uma reflexão sobre a importância da linguagem inteligível ou não inteligível. Naturalmente que a palavra é muito importante, mas há que questionar a necessidade da inteligibilidade. Por outro lado interessa-me implusionar e enriquecer as capacidades perceptivas de quem me escuta para que ambos – o ouvinte e o artista - adquiram um maior conhecimento de si mesmos. Porque quanto mais longe vais no como, no cultivar de um som, mais livre és...


Quando te oiço em CD as composições parecem todas muito sofisticadas e até electronicamente manipuladas, embora não o sejam. Esse nível mais básico perde-se e acabas por viajar muito dentro do cérebro para captar todas as tonalidades...


Isso é uma maneira de forçar o ouvido, de esticar as possibilidades de quem me escuta. Nesse sentido, o trabalho na Índia foi muito importante para desenvolver a microtonalidade – percursos muito lentos de microtons. No século XVIII decidiu-se dividir a oitava em 12 semitons iguais. Com isto ganhava-se a possibilidade de escrever em todas as tonalidades mas perdiam-se coisas como a microtonalidade. Porque se divides um espaço em 12, perdes as subtilezas e as afinações desiguais dos instrumentos. Tudo se codificou e marcaram-se os cânones daquilo que se considerava bem feito. Interessava-me recuperar a microtonalidade e por isso fui estudar para a Índia. Nas tradições da musica chinesa, japonesa, indiana e indonésia mantém-se a microtonalidade porque não se dividiu a escala dessa forma e por isso a sua riqueza é enorme. De um semitom a outro parece que há um quilómetro de distância. Mas para percorrer essa distância tão fina tive que identificá-la. Se o teu ouvido não sabe identificar um som não conseguirás reproduzi-lo. Nos conservatórios ensina-se a escala dividida em 12 – por isso o ouvido está educado de maneira limitada, enquanto que a minha forma de cantar recupera a microtonalidade que herdei da tradição do canto Dhrupad do Norte da Índia...


Fala-me desta técnica e como a aprendeste...


É uma tradição muito exigente. Podes estar a trabalhar uma raga durante dias e dias, a praticar uma só escala durante sete horas. É tremendo! Mas esse treino converte-se num ear training que te muda a percepção. A partir do momento em que tu o integras, o teu ouvido é que te dita o canto. Na realidade tu cantas com o ouvido e não com a garganta. A partir do momento em que o teu instrumento ouvido se refina, tens mais capacidades. Há uma frase maravilhosa de Goethe que diz «qualquer objecto bem contemplado desenvolve no homem um novo órgão de percepção». Todos contamos com os rudimentos, mas para quê ficarmos apenas pelo óbvio se tens um conteúdo que não o vês porque não tens o teu nível de percepção bem treinado? Há toda uma filosofia por detrás de tudo isto. Quando dizias que as pessoas ficavam embasbacadas a olhar para mim, pode ser que eu tenha um magnetismo e uma presença forte, mas há um “como” no cantar que está a sacar o melhor dessa pessoa embora ela possa não estar consciente disso.


O que sentes se te relaciono com Meredith Monk, Diamanda Galás, Laurie Anderson ou Sainkho Namtchylak? Concordas?


Acho que é correcto. Creio que Meredith Monk foi a pioneira neste terreno, juntamente com o italiano Demetrio Stratos. Seguramente que se eles não tivessem existido eu também não faria o que faço. Todos nós formamos uma família, embora sejamos muito diferentes uns dos outros. O que Sainkho faz é muito distinto daquilo que eu faço. Tal como Bobby McFerrin que apesar de ser maravilhoso vai por um lado mais comercial, David Moss, Phil Minton, e mesmo Maria João, que tem uma bela voz mas podia ser mais experimental. Outra percursora foi Cathy Berberian, antes mesmo de Meredith Monk. Há uma atitude comum em todos nós de escutar a voz de outra forma.... Com Diamanda Galás tenho em comum um rigor técnico mas ao nível estético não me diz nada.

Nesta altura toca o telemóvel: já estamos à conversa há quase três horas e Madrid espera-me para a despedida... Hasta pronto cariño!


Umbigo, Dezembro 2007

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Erwin Olaf - O Belo Entre a Sombra e a Luz



Erwin Olaf

O Belo entre a Sombra e a Luz

por Miguel Matos

Vivemos num mundo em que tudo tem de ter glamour e tudo tem de ser sexy. As páginas da Vogue exibem peles de animais mortos como galardões de estilo e status. A revista inglesa WIG publica um editorial de moda com o título de Chernobyl Chic e mesmo a Umbigo apresenta Executive Crash, uma produção fotográfica com próteses servindo de acessórios glam... Temos septuagenárias que tudo fazem para parecerem adolescentes. Os adolescentes vivem fechados num telemóvel. A crueldade atrai e a ironia faz parte do quotidiano. É um festim louco de desejos inatingíveis e de frustrações levadas ao epíteto de ambições socialmente obrigatórias. Um circo de palhaços tristes e animais transgénicos que o fotógrafo holandês Erwin Olaf decompõe em imagens de carácter cínico e quase psicanalítico.

Em que pensam as jovens cheerleaders desanimadas, imóveis num ginásio gigantesco? Porque não reagem as personagens da barbearia? O que paira no ar de tão inquetante em Hope e Rain? «Quando estava a fotografar comecei a pensar no mundo, com os recentes acontecimentos negativos, como o 11 de Setembro, o aquecimento global, etc... Nós estamos entre a acção e a reacção. Na série Rain, e talvez mais fortemente em Hope, sobressai este sentimento. É um momento muito passivo entre duas acções. Como um rapaz a quem a rapariga diz que já não o ama. E este é o momento antes de ele conseguir dizer alguma coisa, antes da reacção», explica Erwin Olaf à Umbigo. Trata-se de um conjunto de fotografias que nos fazem lembrar as clássicas imagens do pintor Edward Hopper, mas não foi esta a ideia inicial do artista: «Quis fazer algo dentro do estilo do pintor Norman Rockwell, algo muito alegre, que celebrasse a vida. Mas à medida que ia trabalhando e fotografando, ia ficando cada vez mais triste porque comecei a perceber que este mundo nostálgico já não existia e nunca mais regressaria, nem mesmo no meu estúdio. Então, à medida que o processo se desenvolvia, deixou de ser tanto Norman Rockwell para se tornar mais em Edward Hopper. O projecto transformou-se. Isto acontece sempre quando faço o meu trabalho livre. Tenho uma ideia, começo a trabalhar e a partir daí avança pelo seu próprio pé, sem a minha influência».

As imagens de Olaf parecem vindas de um tempo incerto, o que contribui ainda mais para a sua ambiguidade e por vezes traz um toque adicional de nostalgia. «Dá-me mais liberdade. Quando faço fotos com roupas ou penteados de hoje em dia parece que estou a fazer um editorial de moda e eu não quero isso. Não quero ser distraído por coisas de moda». A ambiência da maior parte das obras é cinematográfica, narrativa mas nunca conclusiva. «A maior parte das minhas raízes vem dos anos 70, 80. sou muito mais influenciado pelo cinema italiano, como Visconti, Pasolini, Fellini, assim como o cinema alemão de Herzog e Fassbinder. Estes realizadores influenciaram-me muito mais do que os recentes».

Mature é um dos trabalhos mais irónicos do fotógrafo. Nestas imagens, belas mulheres de rugas pronunciadas e barrigas que cederam já ao poder da gravidade mostram-se orgulhosas do seu corpo. Mas a série que pretendia ser uma exaltação da beleza e uma reflexão sobre a idade não foi bem entendida por alguns... «Muitas pessoas duvidam seriamente desse trabalho. Não foi um sucesso comercial, especialmente nos Estados Unidos. Mature diz algo sobre mim, sobre o facto de estar a envelhecer e a ficar mais maturo. O ponto de partida tinha a ver com o facto de eu estar a fazer 40 anos e julgava que estava a ficar muito velho. Tive esta ideia porque nessa altura andava a observar livros de fotos de pin-ups dos anos 40, 50 e 60. Acho-os muito interessantes porque são meio desenho meio pintura, e brincavam com o tema do sexo sem nunca o mostrar... Então estava eu a fazer 40 e a imaginar o artista a dizer à rapariga que estava a fazer o trabalho de pin-up: “fica assim, mantém-te nessa pose, mas eu tenho que ir comprar um maço de tabaco. E então ele desaparecia e voltava 40 anos depois...». A reacção inicial do público a Mature não foi boa, mas em Espanha, Itália, Holanda e França foi considerado um “breakthrough” porque o trabalho de Erwin Olaf começou a ser levado mais a sério. Todavia, nos países anglo-saxónicos como a Inglaterra, nos Estados Unidos e na Austrália, as dúvidas acerca da série pairavam.

A idade é realmente um tema tabu nesta sociedade da juventude a todo o custo. «Mas apesar de velhas, estas mulheres continuam a ser bonitas, é essa a mensagem... Em todos estes anos em que eu sou fotógrafo, tenho fotografado muitas pessoas que não são manequins, gosto de fotografar pessoas mais velhas e especialmente mulheres. Elas têm um humor muito específico e conseguem ter uma atitude cínica em relação ao seu corpo e à sua vida. Quando cheguei aos 40 pensei em celebrar essa idade e por isso tornei-as mais sexy», explica o fotógrafo.

O olhar peculiar e sofisticado de Erwin Olaf tem em si todos os elementos necesários para produzir imagens de alto impacto e eficaz comunicação. Isto aplicado ao seu lado mais artístico e livre fez com que ele se tornasse muito solicitado por importantes marcas mundiais para criar campanhas publicitárias. Aliás, isto nada tem de surpreendente uma vez que a boa publicidade vai sempre roubar ideias à arte contemporânea, assim como a boa arte está sempre relacionada com o mundo que nos rodeia. No entanto, Olaf consegue equilibrar estes dois lados profissionais: «estou muito contente com o rumo que a minha carreira tem tomado em relação à arte e à publicidade: ambas se influenciam reciprocamente de forma positiva. Por exemplo, se se olhar para Mature, no ano anterior eu tinha fotografado para a Diesel uma mulher a agarrar num velho pelos tomates. Essa campanha teve muito sucesso. E isso levou-me a querer fazer mais coisas com mulheres maduras. Mais tarde fotografei Royal Blood - jovens belos num fundo branco e imediatamente tive encomendas de todo o mundo para reproduzir a técnica que tinha sido utilizada».



A arte muitas vezes toma caminhos inesperados, revelando até mesmo ao seu autor significados e funções apenas presentes no seu subconsciente. O mesmo se passou com Separation, uma série em que num ambiente escuro vemos duas personagens, dois vultos de negro que tentam relacionar-se. Ambos estão vestidos em borracha negra (material fetichista e que nos priva do sentido do tacto), mas o sentimento que paira é tudo menos sexy. De facto, trata-se de mãe e filho e independentemente de todas as interpretações adicionais que os nossos cérebros e corações possam criar, eis a explicação de Erwin: «Tive a ideia de fazer uma série de uma mãe com o filho ambos vestidos de borracha, que para mim é uma metáfora para a solidão, de estar isolado daquilo que nos rodeia. Comecei a trabalhar e quando acabei, com as obras terminadas e em exposição no meu estúdio, eu estava sozinho a observá-las e emocionei-me. Lembrei-me então de todas as questões complicadas do meu passado, como por exemplo, na escola quando os outros rapazes não gostavam de mim, ninguém me aceitava e eu tinha que brincar sozinho. Isso causava-me uma sensação de isolamento... Aos oito anos de idade isto cria um sentimento de solidão... até aos 13, o que significa que foram cinco anos de isolamento... então, quando terminei Separation, senti que com esta série eu tinha conseguido exorcizar os pequenos demónios do meu passado».

Por toda a obra de Erwin Olaf, principalmente nos seus trabalhos mais antigos, o sexo e a beleza são temas omnipresentes, de forma mais ou menos óbvia, de forma mais ou menos chocante... Estamos a falar de uma carreira extremamente prolífica, com um vasto número de imagens inesquecíveis. E a acompanhá-las está sempre um toque de ironia, de crítica, de provocação. Em Le Dernier Cri, originalmente um pequeno vídeo, duas personagens femininas exibem aquilo que se poderia chamar de cirurgia estética extrema – fazendo lembrar as experiências artísticas radicais de Orlan (Umbigo #3). As duas ostentam com orgulho os acrescentos estéticos que implantaram no rosto. Uma crítica à cirurgia estética? Olaf é um fotógrafo de arte, de moda, de publicidade. Então porque está ele sempre a jogar com uma faca de dois gumes? «Não posso criticar muito o sistema da beleza porque eu próprio ganhei dinheiro com isso, portanto seria uma hipocrisia. A nossa indústria da beleza é tão decadente e cada dia que passa torna-se mais enlouquecida porque todos nós temos que parecer perfeitos. É por isso que eu fiz a série Le Dernier Cri, imaginando o que acontecerá no futuro com o conceito de beleza. Um dia será considerado belo ter um bloco de cimento implantado na cabeça ou no rabo. Esta ideia foi influenciada por pessoas como Amanda Lepore (Umbigo #13) e Jocelyn Wildenstein».

Erwin Olaf nasceu em 1959 em Hilversum, Holanda. A sua formação inicial foi de jornalismo mas em 1980 coneçou a trabalhar em fotografia como assistente de André Ruigrok. Aos 22 anos teve o primeiro contacto com o trabalho de Robert Mapplethorpe e Paul Blanca, o que o impulsionou a seguir o impulso da imagem. Não tardou muito até conseguir editar as suas primeiras fotos em publicações gay como The Advocate, British Gay Times e outras. A par com o trabalho regular em revistas, começou a trabalhar para cinema e editoras de música. O desenvolvimento artístico e conceptual levou-o a expor em galerias e em 1988 recebeu o primeiro prémio do Young European Photographer, expondo a série Chessmen no Museu Ludwig em Colónia. Em 1992 já expunha ao lado de artistas de renome como Cindy Sherman, Joel Peter Witkin, Pierre et Gilles, assim como o inspirador Mapplethorpe.

Os sucessos e pequenos escândalos causados pelas suas imagens fortes fazem com que tenha encomendas de toda a Europa. Em 1995 cria a série Mind of Their Own, retratos de pessoas com deficiência mental. No ano seguinte tem a experiência de criar obras para uma casa de banho pública do arquitecto Rem Koolhaas em Groningen e fotografa um projecto para a prisão de Zutphen. A versatilidade e diversidade do seu trabalho é demonstrada mais uma vez em 1997 com a série que faz para o Instituto Dennendal para deficientes mentais, assim como o portfólio de fotos do designer Walter van Beirendonck (Umbigo #17) publicado na revista View on Color e mais tarde a campanha de jeans Diesel premiada em Cannes. Em 1999 vemos o seu trabalho mais comercial para Levi's, Silk Cut, Hennessey Cognac, Laurent Perrier e Rifle. A par disto realiza a primeira grande série Mature, depois Royal Blood, talvez a mais conhecida, em que aparece uma jovem parecida com a princesa Diana com uma ferida causada pelo símbolo Mercedes. Camel, Nokia, Nintendo, Virgin e Energie são as marcas que se seguem, reconhecendo o seu génio e aplicando-o ao mundo da publicidade. Tanto na Europa como na América, são muitas as exposições colectivas e individuais assim como editoriais de moda em revistas de prestígio como a Citizen K. Separation é a série que apresenta em 2003, ano em que produz uma gigantesca instalação fotográfica no tecto da embaixada holandesa em Varsóvia, encomenda do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O calendário Lavazza de 2005 foi da sua responsabilidade, o que o ajudou a ser famoso mundialmente. A actividade frenética continua e pode ser apreciada no completíssimo site www.erwinolaf.com

Umbigo, Setembro 2007

terça-feira, 14 de abril de 2009

Susana Anágua


Susana Anágua
por Miguel Matos

“No futuro vejo a necessidade de devolver à arte os momentos de contemplação”, defende Susana Anágua (Torres Vedras, 1976). “Gosto da envolvência contemplativa entre o observador, o objecto e o artista, mas sempre com uma vertente conceptual. Sempre gostei muito dos conceitos que envolvam a ideia de ciclo, de rotação, encantamento e de paisagem. Como um catalisador de uma experiência individual, um encantamento, uma hipnose que nos vira para dentro e nos devolve a nós mesmos”.

Susana Anágua já expôs quase todo o tipo de trabalhos menos pintura. No entanto, o seu sonho inicial era ser pintora. “Desde miúda que pintava frutas e nús”, diz ela. Ou isso ou então gostava de ser cientista. Pegava em flores e metia dentro de água e depois fazia pastas, destilava a água e punha dentro de tubinhos. Escolhia as flores através das suas tonalidades e punha cascas de laranja na água para obter a cor. “Era uma cientista um bocado fraquinha porque o meu interesse era sempre a busca de paletas de cores. No fundo, eu queria ser artista e cientista só pelo romantismo da coisa”. Estudou Escultura no Ar.Co e a sua primeira peça foi logo como hoje ainda são todas: enormes e pesadas. Ou não tivesse ela instalado este ano no claustro do Mosteiro de Alcobaça um conjunto de torres de alta tensão em ferro ligadas por mangueiras cheias de água.

A inquietação de Susana não a deixou ficar muito tempo no Ar.Co e foi na Escola Superior de Tecnologia, Gestão, Arte e Design das Caldas da Rainha que acabou a licenciatura em Artes Plásticas. Começou a expor colectivamente com os colegas de curso do Ar.Co a partir de 1997. No final da licenciatura foi realizada uma exposição de trabalhos finais. Graças a isso, chegou à Gulbenkian um CD com imagens do seu trabalho que imediatamente lhe deu direito a ser convidada para participar na exposição “7 Artistas ao 10º Mês”. Ao mesmo tempo decorreria o Prémio Anteciparte ao qual Susana concorreu, tendo sido seleccionada como finalista. Ao estar ao mesmo tempo em duas importantes e prestigiadas exposições de artistas emergentes, deu-se o arranque da sua carreira. A partir daí, a Galeria Presença quis representá-la e ganhou o apoio de um coleccionador privado. Tem obras suas nas colecções da Fundação PLMJ e no Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Expôs individualmente no Espaço de Cultura Material Contemporânea e Arte em Castelo Branco e apresentou “Natureza Mecânica, Episódio 2: A Desorientação” na Galeria Presença. No ano passado realizou um Project Room na Arte Lisboa pela Galeria Sete, de Coimbra, mas 2008 é que foi o seu ano mais importante. A convite da Fundação Calouste Gulbenkian, expôs o projecto individual “Desnorte” no Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão. Ao mesmo tempo, entre os consagrados João Tabarra, Joana Vasconcelos, Fernanda Fragateiro, Ângela Ferreira, Miguel Palma e Pedro Cabrita Reis, Susana Anágua era a única artista emergente convidada a realizar uma intervenção no Mosteiro da Batalha para o evento “Sete Maravilhas de Portugal”, patrocinado pela EDP. “Este convite deveu-se ao facto de a exposição na Galeria Presença ter sido sobre energias e com moinhos. O meu trabalho adequava-se assim ao tema das sete maravilhas que era as energias”.

Susana Anágua encontra-se agora em Londres a fazer um mestrado teórico em Arte Digital na University of the Arts, como forma de melhor pensar e consolidar os seus conceitos. “Estou a centrar o meu mestrado na questão da entropia e da recuperação da ordem através do caos. É uma pesquisa entre a termodinâmica e a física que entendem a entropia como uma dispersão de energia”. Este ano, no Espaço Avenida, Susana apresentou um vídeo que documentava o processo de destruição de um pneu para extrair materiais específicos que seriam reaproveitados em outros produtos. A reciclagem como forma de contrariar a entropia. É um ciclo de destruir para gerar vida de novo.

Em Setembro está planeado o regresso de Anágua a terras alfacinhas. Poderemos ver o resultado das suas investigações numa exposição colectiva na Plataforma Revólver, cujo tema é “Artistas em Trânsito”. Até lá, as suas obras estão no acervo da Galeria Paulo Amaro e no site www.anagua.org.

Raúl Perez - "É como se os sonhos me saíssem pelas mãos"


Time Out, 11 Fevereiro 2009

Raúl Perez

É como se os sonhos me saíssem pelas mãos”

por Miguel Matos


Raúl Perez tem sido um segredo bem guardado na arte portuguesa. Até agora. O Museu Berardo, em co-produção com a Fundação Cupertino de Miranda abre as portas a um conjunto de obras criadas desde 1960 até agora. São 50 anos de sonhos e criaturas mágicas que saem à rua para nos enfeitiçarem. A Time Out à conversa com um pintor pouco dado a “ismos”.


O primeiro impulso que temos ao ver pela primeira vez as suas obras é associá-las ao Surrealismo. Mas o Raúl não se sente muito confortável com essa associação...

O que me torna próximo dos surrealistas é o meu processo de trabalho. Eu não sou capaz de fazer nada de uma forma racional, deliberada. Quando pego num lápis ou num papel as coisas saem-me. Nunca me fiz a pergunta “o que vou fazer?”. É este processo que me torna parente dos surrealistas. Eu nunca tinha lido nada do Breton antes de começar a pintar. Conheci o Mário Cesariny nos princípios dos anos 60. Ia com um amigo meu no Marquês de Pombal, vi o Mário Cesariny e fui falar com ele. Tinha eu nessa altura o cabelo comprido que me dava pelas costas e me dava direito a ser vaiado pelas ruas. As pessoas paravam para insultar-me. Fui falar com o Cesariny e disse-lhe que gostava muito da sua poesia e que gostava muito de poder conversar com ele. Ele então olhou para a folha que eu trazia pendurada ao pescoço e disse-me “você não tem grande coisa a aprender comigo. Mas eu, o Cruzeiro Seixas, o Pedro Oom, o Mário Henrique Leiria, vamos fazer uma exposição e leitura de poesia na Livraria Buchholz... se quiser apareça lá”. Assim, comecei a conviver com estes artistas. A partir daí começámos a encontrar-nos. Fomos convivendo e comecei a aperceber-me de que o meu próprio processo de trabalho identificava-se com o dos surrealistas, mas isto é muito antigo em mim e não me leva a proclamar-me surrealista até porque detesto ser qualquer coisa. Não tenho partido político nem religião nem clube de futebol. O que é ser surrealista? Acho esquisito, parece um partido político... Eu ponho em primeiro plano a liberdade e a autenticidade. Não me quero envolver nesses “ismos”.


Mas afinal onde tem andado estes anos todos para ser tão pouco conhecido? É muito raro ouvir falar de si.

O que eu faço agora é uma coisa que tem vindo a germinar ao longo dos anos, não veio do nada. Há os pintores “da casca”, que se preocupam com o mundo que os envolve e isso reflecte-se no seu trabalho. Eu sou uma espécie de mineiro à procura do meu ouro, esta coisa que todos nós temos cá dentro. Comecei este processo desde rapazinho. Sempre me conheci a desenhar e a pintar.


Porque esteve tanto tempo sem expôr?

Todas as exposições que tenho feito são em galerias de arte, que no fundo são comerciais, são lojas. Nunca fiz nenhuma exposição sem ser um bocado contrariado porque as coisas de que eu gostava muito não as queria vender e os marchands querem vender. Estes quadros que foram guardados, foram mesmo por causa disso. Podia expô-los mas nunca para vendê-los. Há quadros que apesar de serem meus e serem bons, não me apego a eles, mas há outros dos quais eu não sou capaz de me desligar. Esta exposição e a anterior na Fundação Cupertino de Miranda são as primeiras em que eu escolhi as peças que quero mostrar. É uma exposição planeada por mim e não por um galerista, o que tem outro significado.


Pinta muitas vezes os mesmos símbolos, como por exemplo as torres com asas, pode explicar porquê este motivos recorrentes?

Não há um motivo para isso. Quando estou a pintar não tenho consciência do que faço. Posteriormente é que me apercebo daquilo que um quadro significa. Isto são sonhos. Não são ilustrações de sonhos mas os sonhos em si. Desde muito cedo me apercebi de tudo o que eu desenhava às ocultas da consciência continha uma linguagem e uma filosofia próprias semelhantes às dos sonhos. Era como se os sonhos me saíssem pelas mãos. Fui-me familiarizando ao longo da vida com este processo que se assemelhava a um acto mediúnico e no qual eu representava apenas um simples instrumento. Esta experiência leva-me a postular que a arte é um prolongamento do sonho. Quando estou a fazer isto, comparo-me àquelas mulheres que estão no autocarro a fazer tricô e nem reparam no que estão a fazer. Na minha pintura dou muita importância ao desenho, que me sai espontaneamente. Depois as texturas que faço são como o tricô das mulheres no autocarro. Costumo também ter ao lado um bloco de papel onde anoto ideias sobre as coisas mais incríveis e que se referem à própria pintura. É filosofia. Não é uma filosofia que parte da realidade material mas sim das profundezas. Os sonhos estão imbuídos de filosofia, de poesia...


E os tais elementos simbólicos e recorrentes? Será realmente importante para o observador saber a sua explicação? Eu, por exemplo tenho uma interpretação pessoal, tal como outra pessoa terá uma diferente...

Esta tendência ocidental de querer explicar tudo... Tem de se racionalizar tudo... Estas coisas têm outra linguagem. Se abordarmos isto de uma maneira racional, adulteramos as coisas. A maior parte dos críticos tem um discurso lógico que, ao abordar estes quadros, desvaloriza-os, criando uma imagem adulterada.


Mas a explicação que me está a dar é em si mesma uma explicação válida... a explicação de que estas coisas não se explicam... A Filosofia quer conhecer a realidade. E os sonhos não serão eles também a realidade, assim como os efeitos palpáveis que os sonhos têm em nós, na nossa vida e na arte?

Mas o que é que é a realidade? Os sonhos são muito importantes e são a raíz das coisas. A Filosofia devia partir daí. Todo o acto inconsciente tem a sua origem nos sonhos, são coisas oníricas...


Algumas das obras patentes nesta exposição pertencem à Fundação Cupertino de Miranda, outras são de coleccionadores particulares, mas muitas são suas. Porque guardou estas e não outras?

Porque é importante guardar. Porque significam marcos no meu percurso. Alguns dos quadros que eu guardei são os que eu considero os melhores.


E o que sente pelo facto de ser pouco reconhecido?

Então, quem não aparece...


Assume a sua responsabilidade, portanto. Mas gostaria de ser mais conhecido?

Tenho visto ao longo da vida as reacções das pessoas. Se há quem me compre quadros é porque gostam, mas eu não pinto para viver. De vez em quando vendo um quadro mas não tenho necessidade de vendê-los. Nunca subjuguei a minha actividade ao dinheiro. Tenho uma repulsa incrível a isso. Quanto a reacções, estou à espera... Vejam, eu agora estou a mostrar.

António Júlio Duarte - Deambulações em Terreno Urbano


Umbigo Junho 2008
António Júlio Duarte

Deambulações em Terreno Urbano
por Miguel Matos

É um autor que se afasta daquilo que se faz na fotografia contemporânea formal, exageradamente asséptica e conceptual. As imagens de António Júlio Duarte não são, no entanto, concretas e imediatas. Cada observador tem a liberdade de criar uma história própria à sua volta. E embora as fotografias não sejam narrativas, pressupõem a existência de uma narrativa anterior ou posterior ao momento capturado. Oscilando num limbo posicionado entre a fotografia artística e o fotojornalismo de autor, há a presença constante do humano, de vidas sonhadas numa paisagem urbana. As vidas que podem ser as nossas ou as experiências de personagens excêntricas que muitas vezes temos no interior. Retratos paralelos e marginais que espelham a realidade visível pelo seu oposto em pequenos mundos. Uma penumbra reveladora de luz.


Grande parte do teu trabalho é composto por fotografias de viagem. No entanto tu não és um fotógrafo de viagens. Interessa-te sim fotografar as vivências em contexto urbano. Então porquê tantas viagens e referências ao Oriente?

Por duas razões. Por um lado por ter uma relação muito forte com Oriente. É um lugar que sempre me interessou e onde me habituei a trabalhar. Depois porque, pensando na estrutura das cidades, estou convencido de que as cidades orientais são uma espécie de paradigma da cidade. É para esse modelo que todas as elas caminham. Depois tem a ver com um sentimento de que, comparada com o Oriente, para mim a Europa é um território morto. No Oriente sente-se uma energia diferente, o ritmo a que as coisas se modificam é outro. São cidades em constante mutação e em evolução permanente, mesmo em termos de actividade cultural e artística. A Europa é muito mais estagnada.


De que forma as pessoas são diferentes na Ásia e na Europa?


São diferentes pela vivência no espaço exterior. Há um aproveitamento muito maior das estruturas da cidade, o que tem também a ver com as condições de habitabilidade. Não há o enclausuramento que vemos cá.

Mas isso nota-se assim que chegamos a Espanha. Vais a Madrid ou Barcelona e vês toda a gente na rua a qualquer hora, o que não acontece em Lisboa...

Portugal sempre foi para mim um território estranho na forma como os espaços públicos não são usados. Mas as cidades orientais são um paradigma também nas piores coisas. A sociedade caminha para uma divisão abrupta entre duas classes: a alta e a baixa. Na Europa caminhamos também para isso, mas no Oriente essa realidade é muito visível.


Sei que estás a pensar em viajar menos e fotografar mais em Portugal...


Sim, é outra das minhas preocupações. Tenho uma necessidade cada vez maior de ter alguma coisa a dizer sobre o meu próprio território. Eu já não viajo. A viagem pressupõe uma deslocação constante. Eu agora vou para um sítio, tento ficar lá o máximo de tempo possível e tento ter uma vida rotineira. Contrario o espírito da novidade constante que faz parte da viagem. Eu gosto de voltar aos sítios. Se há uma cidade onde gostei de fotografar quero voltar passados dois ou três anos e vou acompanhando a sua evolução voltando sucessivamente.


Só te sentes com autoridade para exercer um olhar crítico sobre aquilo que conheces bem. É isso?


Sim. Em portugal é esse o tipo de trabalho que quero fazer. Não é bem uma crítica mas sim uma análise, uma opinião sobre o que se passa à minha volta. Comecei com as séries sobre as strippers e os boxers, seguindo a convicção da Diane Arbus que dizia que fotografar aquilo que é exterior, que está à margem da sociedade, pode funcionar como um espelho dessa mesma sociedade.


A série que fizeste sobre desencarceramentos tem também a ver com essa ideia?


Tem a ver com a constatação do facto de Portugal ser um dos países com mais acidentes nas estradas. É uma forma de ir aos assuntos fora de uma perspectiva jornalística e ir por caminhos transversais. Tem a ver com outras preocupações fundamentais, como o sexo, a morte, etc.

Nesta série fizeste um curso...

Fiz um curso de desencarceramento para poder fotografá-lo.


Costumas infiltrar-te nos mundos que fotografas?


Não é bem infiltração. Uso muito as técnicas do fotojornalismo, mesmo ao nível da planificação dos trabalhos e das abordagens. Mas é difícil fazer alguém compreender que se quer fotografar qualquer coisa e que isso faz parte de um projecto pessoal. Há um processo de sensibilização para as pessoas perceberem o que estou a fazer e depois estabelecer uma base forte de confiança, o que demora tempo. É preciso viver a comunidade que se está a fotografar e criar uma empatia com as pessoas. É uma observação participante. E depois são trabalhos difíceis de largar, de sair deles. Por isso desgastam. No caso dos desencarceramentos foi diferente. É uma actividade extremamente violenta e perigosa para as pessoas que o fazem – os bombeiros. É minuciosa, de uma grande precisão. Qualquer pessoa externa a esse processo tem de ter um conhecimento profundo sobre o que se está a passar para não pôr vidas em risco. Daí a necessidade de ter feito a mesma formação que os bombeiros fazem.


É por isso que eu não te acho um voyeur, ao contrário de algumas interpretações que tenho lido sobre ti.


Isso tem também a ver com as técnicas que eu utilizo, como o uso dos flashes, fotografar muito próximo das pessoas... A minha maneira de fotografar é cada vez menos discreta. Não sou a favor da discrição, de o fotógrafo não poder participar...

Pois, porque para se ser voyeur há que ter um certo distanciamento, uma camuflagem...

Quero que as pessoas estejam conscientes da minha presença e reajam a ela. Há um jogo que eu crio.


As séries dos desencarceramentos, dos strippers e dos boxers foram expostas por vezes em conjunto e misturadas entre si. Isto cria um novo nível de significado, antagonismos e intersecções entre os vários conjuntos de fotografias...
Não gosto de fechar os trabalhos. Gosto que as fotografias possam circular entre séries.

Quais são as tuas referências no que diz respeito a fotógrafos?

É claro que tenho admiração por alguns fotógrafos. Há fotografias de que gosto muito mas não têm a ver directamente com o meu trabalho. Consigo identificar algumas referências mas muitas delas nem vêm da fotografia. Vêm do cinema, da literatura, da música. Por exemplo, tenho um grande interesse pela fotografia japonesa dos anos 50 e 60. Há uma questão que para mim está sempre presente: como se fotografa uma cidade? Nesse sentido, o filme Chungking Express ensinou-me muito. Muitas vezes ao fotografar uma cidade tende-se muitas vezes a fotografar a sua estrutura física, o urbanismo. Eu vejo a cidade como uma coisa orgânica.


O que fotografas quando estás descontraído sem pensar no trabalho. Ainda fotografas inocentemente os amigos?


Nao. Gostava, mas não consigo distinguir as duas coisas.


Como vês o panorama da fotografia contemporânea em Portugal?


Cada vez há mais coisas interessantes. Mas há um problema que tem a ver com o mercado. É ele que dita as modas ou aquilo que se consome num determinado período de tempo e aquilo que se tem valorizado nos últimos anos como sendo de valor e projecção, em 90% dos casos não me interessa e não tem a ver com as minhas preocupações em fotografia. O que é divulgado e chega ao público não é o reflexo daquilo que se vai fazendo.