domingo, 12 de abril de 2009

Cruzeiro Seixas - «O surrealismo é um pontapé!»


“O Surrealismo é um pontapé”
(Time Out Lisboa, 11 Março 2009)

Quem melhor para comentar o surrealismo em Portugal do que um dos seus fundadores? Miguel Matos à conversa com Cruzeiro Seixas


“O Infinito Segredo” é o nome da exposição patente na Galeria São Mamede e que reúne obras de Cruzeiro Seixas desde os anos 40 até agora. Aos 88 anos, este homem finge que está velho mas acaba por provar diante dos nossos olhos que vive com força e faz os sonhos viverem, não fosse a sua arte uma exploração onírica do inconsciente. O ponto de situação pelo seu ponto de vista.

Parece que as forças do inconsciente tomaram a cidade de assalto. É a exposição de Surrealismo da Fundação Cupertino de Miranda na Cordoaria Nacional, Raúl Perez no Museu Berardo, Surrealismo no Centro Português de Serigrafia, debates e conferências e agora a sua exposição... Acha que há um novo interesse por esta corrente, é uma miragem ou apenas uma feliz coincidência?
Isso é muito difícil de responder. As pessoas andam esfomeadas porque nenhum organismo é capaz de organizar exposições que estejam ao nível de uma verdadeira sensibilidade ou cultura. As pessoas andam aqui por acaso e não há planos a longo prazo. Os projectos fazem-se por quem bate à porta. Bate à porta o Zé, faz-se uma exposição do Zé, e assim por diante. Isso não pode existir em parte nenhuma, só em Alguidares de Baixo... É inadmissível. E não me venham dizer que é por causa do dinheiro. É porque ninguém quer ou ninguém sabe fazer uma programação a sério. Estas exposições de surrealismo têm a ver com questões comerciais, como é o caso do Centro Português de Serigrafia. O Raúl Perez foi pedir à Fundação Berardo para expôr. Eu sou incapaz de pedir. E no que diz respeito à Colecção Cupertino de Miranda, nada foi feito com um verdadeiro entendimento.

Isso terá que ver com um vazio de espírito crítico e de uma deturpação da História de Arte. Só assim se explica o que se passa em Portugal em que se “enterram” gerações inteiras de artistas que tantas obras e investigações importantes fizeram e hoje são quase desconhecidos. Está neste momento patente uma exposição de António Palolo no Centro de Arte Manuel de Brito, mas é raro fazerem-se antologias e retrospectivas hoje em dia...
Pois e há outro pintor muito interessante que é o René Bertholo. Gostaria muito de ver. Outro muito importante e que está vivo, com uma pintura lindíssima e um raro sentido da cor é o Carlos Calvet. Deveria ser feita uma retrospectiva, mas ninguém se lembra disso. Há coisas esquisitas.


Em 1999 doa a sua colecção de arte à Fundação Cupertino de Miranda, com vista à constituição do Centro de Estudos do Surrealismo e do Museu do Surrealismo. Parte desta colecção podemos vê-la agora em exposição na Cordoaria Nacional. Como é que conseguiu reunir uma colecção tão grande e importante?

Olhe, eu sou um teso. Não tenho fortuna de família e fui funcionário público toda a vida. Após a guerra, tinha eu 20 anos quando trabalhava na Intendência-Geral dos Abastecimentos. Tratava do racionamento do pão, do açúcar, do feijão, etc. As donas de casa tinham umas senhas para levantar estes géneros alimentícios. Era uma coisa horrorosa. Mas confesso que era um péssimo funcionário, não fazia nada nos sítios onde estava.


Tem um grande espólio porque muitos destes artistas eram seus amigos não é?

Eu estava apaixonado por aquelas obras e muitos artistas acabavam por trocar obras uns com os outros. Algumas comprei. Ficava sem dinheiro nenhum, já pouco ficava para comer... Durante muitos anos aconteceu que eu tinha dado mais obras do que vendido. Eu gosto é de dar e de fazer exposições sem ser para vender.


Quando pensa numa peça não pode pensar no seu preço ou se vai vender ou não, porque isso aniquila logo qualquer trabalho artístico...
Ah, mas muitos artistas hoje quando põem uma tela no cavalete já estão a pensar no preço que vão pedir. No meu tempo as coisas não eram assim.


Mas a trabalhar assim como trabalha, o seu tempo ainda não passou...

Não... Eu já estou fora do tempo, homem. Não sabe como é impressionante uma pessoa chegar aos 88 anos e ver morrer toda a gente da sua geração. Não supunha que fosse assim tão difícil de suportar. Até com pessoas com quem não tinha grande relacionamento. É muito pior com aquelas pessoas que me eram queridas. Sente-se uma solidão muito grande.


Mas há que lutar contra o tempo como faz, criando...

Agora só crio galinhas...


Mas não vai expor galinhas pois não?

Não me importava nada.


Pronto, aqui está o surrealismo a penetrar na conversa... Esta corrente apareceu numa altura em que a realidade era cada vez mais insuportável, o escape, a quebra das regras, o regresso ao inexplicável, a exploração dos sonhos, dos instintos eram a única saída possível. E isto com um programa ideológico a acompanhar. Acha que temos de novo uma urgência de fuga para fazer a revolução, por pequena que seja?

Não conheço outra alternativa, outra ideia com igual força. O surrealismo foi e é para mim uma ideia muito forte, um mito com muitas possibilidades de nos aguentar neste mundo incrível.


Há quem diga que está esgotado...

Eu acho que não. Mas a maioria das pessoas ligadas à arte está a repetir muitas das coisas inventadas pelos surrealistas nos anos vinte, embora sem revelarem a proveniência da sua inspiração. Isso eu acho muito triste. No outro dia descobri uma série de objectos numa galeria de Lisboa. Eram objectos interessantes que poderíamos chamar de surrealistas mas a pessoa que os fez não tem consciência disso ou não quer ter.


É difícil um artista ver-se inserido nessa “máfia” do surrealismo. André Breton, o primeiro fundador do movimento, explusava artistas do grupo (como Dalí) como se fosse um partido político...
O surrealismo exige da pessoa que tenha uma revolta sincera contra o que está à sua volta. É a partir dessa revolta que o surrealismo pode crescer e afirmar-se. Quem pegar no surrealismo como uma estética está redondamente enganado. O Raúl Perez, no dia da inauguração da sua exposição dizia na rádio que não é um surrealista militante. Então as obras são surrealistas e ele não? É um exemplo entre outros. Eu estou em contacto com imensos surrealistas no mundo e vejo que as pessoas continuam a fazer coisas muito fracas e a chamarem-se surrealistas. Lá fora é assim, aqui é ao contrário: o Perez desculpa-se de ser surrealista. É como dar um pontapé numa pessoa e depois pedir desculpa por ter dado o pontapé. O surrealismo é um pontapé!

Os artistas que partilham da sua visão artística tendem a fazer retratos de amigos, trabalham em conjunto, fazem homenagens mútuas... Porque razão há esta ligação tão forte entre vocês?

Era forte nos tempos do Mário Cesariny e antes de eu ir para África onde estive 14 anos. Quando regressei, o mundo era outro, tudo se tinha modificado. O Cesariny e eu tinhamos uma paixão um pelo outro e isso foi muito bonito a partir dos nossos 17 anos quando nos conhecemos na Escola António Arroio. Depois, já éramos adultos e as coisas não corriam da mesma maneira. Tínhamos opiniões divergentes e estávamos diferentes. O Mário pintava muito, vendia muito e não parecia o mesmo. Eu acreditava mais na poesia. Erro meu, talvez. Mas realmente era a poesia que eu tinha visto nascer ao meu lado pelas ruas de Lisboa e isso separava-nos. Às tantas ele decidiu fazer de mim a grande figura internacional do surrealismo português e eu não tenho jeito nenhum para ser grande em coisa nenhuma. Nisso o Mário teve uma espécie de fracasso porque não tinha a força suficiente para se impôr lá fora.


O próprio André Breton não se interessou muito pelo movimento em Portugal...

Não. Foi tão desastrada a apresentação do nosso surrealismo ao Breton que ele acabou por não se interessar. Mas também isso tudo tem a ver com a pouca sorte deste país. Nunca ninguém vai dar por isto.


Vê o surrealismo de uma forma assumida nas novas gerações de artistas?

Lá fora sim. Aqui não vejo ninguém. Somos apenas três ou quatro gatos que não de procuram uns aos outros nem se entendem. Mas os iniciadores do surrealismo foram de tal forma grandes que hoje em dia é difícil alguém fazer uma coisa nova. Magritte, Ernst, Chirico... gente verdadeiramente genial, já não há nada disso.

Aos 88 anos como vê a arte?

A arte continua a ser o grande apoio, uma grande descoberta da humanidade. Mas em muitos essa parte está adormecida.
Sempre se deixou levar pelo mundo onírico e sobre ele trabalhou toda a vida. Ainda é possível sonhar? Eu acho que é a única salvação. O sonho acordado é das coisas mais bonitas que o homem tem. É tão belo como a vida sexual... São coisas das quais podemos põr e dispôr à nossa vontade. É a liberdade!

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