quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Joana Vasconcelos - A rainha da sucata



Depois de Paula Rego, Cabrita Reis e Julião Sarmento, Joana Vasconcelos é dos poucos artistas portugueses a chegar ao leilão da londrina Christie's. Ela é para uns a heroína da arte contemporânea portuguesa, para outros uma criadora comercial perdida no pecado da celebridade. Esta bipolaridade estará à vista de quem quiser apreciar ou julgar na exposição “Sem Rede”, que reúne as principais obras do seu percurso.


Com 15 anos de carreira já és considerada a artista mais importante da tua geração e a primeira a ter uma exposição antológica num grande museu. Consideras-te um caso único?
A minha geração é a do Alexandre Estrela, do Rui Toscano ou do Noé Sendas. Mas é uma geração que não tem muitas pessoas. Há outras mais ricas, como a do João Pedro Vale, da Filipa César ou do Vasco Araújo, cinco anos mais novos. São grupos diferentes. Passando esse factor, há um outro importante: nas carreiras artísticas determinam-se alguns períodos. Costuma-se falar dos primeiros dez anos de existência. Se resistires a estes, já é uma vitória, mas a verdade é que a este período resiste muita gente porque a malta é nova e despreocupada, está cheia de pica e aguenta-se. Depois começam os primeiros encargos familiares ou laborais, apanham o primeiro embate do mercado. Com essas responsabilidades, metade deles desiste até aos 15 anos de trabalho. Daí para a frente já só ficam aqueles que na verdade têm alguma hipótese. Normalmente, a exposição que estou a montar só se faz aos vinte anos de carreira. É a consolidação. E só se faz uma exposição destas aos 20 anos porque só então é que tens quantidade de obra para o fazer e provaste que estás cá para ficar. Eu comecei a expor em 1994. Se contares até 2010, são 16 anos. No entanto, ao contrário de outros, eu tenho mais quantidade e qualidade de obra. Consegui fazer mais obra em menos tempo e por isso posso fazer aos 38 anos o que devia fazer aos 43. Mas isso não faz de mim melhor ou pior do que os outros artistas da minha geração.

A verdade é que em Portugal nunca se faz uma contextualização histórica da nossa arte. Parece que os novos artistas apareceram de repente... Onde estão os fundadores da arte contemporânea portuguesa?

Portugal não é bitola neste campo, porque em Portugal nunca se faz nada como deve ser, com princípio, meio e fim. Se te posicionares num ponto de vista internacional, o que eu estou a fazer é normal. Vamos andar para trás... Portugal tinha uma lacuna muito grande em termos de dar valor aos seus artistas e contextualizar o seu meio cultural num sistema internacional. Quando se percebeu que isto era uma grande bagunça, viu-se que não se tinha dado valor a uma grande geração que tinha sido omitida do panorama internacional, como o Noronha da Costa, o Júlio Pomar, etc... Como era uma geração de ditadura, apagou-se. A arte portuguesa só existia do Julião Sarmento para a frente. Quando se percebeu esse erro histórico, houve várias iniciativas em todos os museus para recuperar um passado perdido, uma malta muito boa que se tinha apagado. Elegeu-se então a Helena Almeida como um bom exemplo. Ela, que fora muito mal tratada e esquecida, foi recuperada. E isso aconteceu não porque toda a gente virou santinha. É que para te inscreveres no mercado internacional, tens que ter história. Foi assim que Helena Almeida se tornou a estrela principal desse grupo, tal como aconteceu com o Júlio Pomar. Toda a gente dizia mal dele, mas depois, quando se percebeu que havia um gajo com 80 e tal anos a produzir, de repente, antológicas do Júlio Pomar havia todos anos. A Lourdes Castro é o fado português: toda a gente achava que ela é que era a nossa grande artista e, depois ela pira-se para a Madeira, xau bye bye. Por causa destas coisas é que se fez a exposição “Anos 70” há pouco tempo na Gulbenkain, porque esta geração está a desaparecer e o vazio é notório. Mas aquilo é apenas para limpar a consciência, devia haver agora uma série de exposições à séria. A coisa é muito grave... nessa recontextualização, de repente percebe-se que não havia uma colecção de arte contemporânea, como agora há a colecção Berardo que tem um papel importantíssimo, dando à capital uma noção internacional. Aparece também o Centro de Arte Manuel de Brito, com a colecção da Galeria 111 para contextualizar essa geração.

Mas vontando ao presente... O facto é que nenhum outro artista português tem no seu atelier uma empresa, uma máquina montada como a tua. Até trazes as tuas próprias gruas para o museu... Não te limitas a produzir objectos, tens todos os departamentos sob a tua alçada.
Isso é porque o país está diferente, mais aberto, mais democrático. Tenho vindo a descobrir que há outros artistas com tanta energia como eu. E se a Paula Rego, a Graça Morais ou a Graça Costa Cabral tivessem tido as mesmas condições que eu tenho hoje, não tenho dúvidas que elas fariam as coisas como eu faço.

No entanto, nenhum artista da tua geração consegue ter um sistema tão forte...
Se viermos para o nosso tempo, esta geração sofre de um mal terrível. O Alexandre Estrela foi para Nova Iorque. Quando voltou, já não sabia onde estava, foi dar aulas. O Noé Sendas é o profissional das bolsas que já nem sabe de que país é. O Rui Toscano saiu da ESBAL, foi parar a uma grande galeria e agora está com o problema de atravessarmos uma crise que nos toca a todos. Depois tens-me a mim que não fiz nada dessas coisas. Fiz uma coisa mais maluca: não fui para fora nem me liguei aos lobbys, sou a independente.

Pois, porque te recusas a ficar ligada a uma galeria em exclusivo...
É preciso explicar que eu estive uns tempos na Galeria 111. Foi lá que me apercebi das gerações anteriores de artistas. Quando eu estudava no Ar.Co era-me dito que dali para a frente é que é bom. Na 111 diziam-me que dali para trás é que era bom. Foi muito engraçado: no Ar.co vi uma cena e quando entrei para a 111 é que vi o resto do filme... a minha cultura nacional ficou mais completa. Na 111 aprendi a respeitar a Graça Morais e no Ar.Co aprendi a respeitar a Ângela Ferreira. Todos constituem uma rede importante que é a nossa cultura.

E isso tem a ver com o teu envolvimento na salvação do Museu de Arte Popular...
Está tudo interligado. Eu aprendi a dar importância a uma coisa maior do que o artista. Quando eu percebi que a cultura portuguesa ia desde o Bordalo Pinheiro até à Susana Anágua, percebi que temos que respeitar todos, cada um no seu papel, nesta rede de croché que é a cultura. Como é que queres que as pessoas venham ao Museu Berardo e entendam a arte contemporânea se não podem passar primeiro pelo passado cultural português? Como é que vão entender isto, se não forem ver as rendas de bilros e as coisas todas do nosso artesanato? Por isso é que eu luto pelo Museu de Arte Popular. Para eu ter evidência no estrangeiro as pessoas têm que entender o meu país. Tudo tem importância para que a nossa cultura seja mais forte.

A tua obra é muito apelativa. Mas, para além do espectáculo visual, há uma componente de crítica à sociedade de consumo muito presente. Achas que as pessoas atinge essa camada de significado?
A criação já não está só nas artes plásticas. Está nas mãos dos designers, dos publicitários, da moda, da joalharia, do cinema, etc. Portanto, os artistas plásticos que estavam na sua redoma, passaram a ter que lidar com um mundo de criação muito mais aberto e vasto. A concorrência hoje em dia é feroz. Aprendi com o design e com a moda a valorizar o primeiro olhar. Isto tem a ver com a contemporaneidade. É a televisão e a publicidade que fazem isto. Tens que captar o olhar das pessoas em 30 segundos: é o chamado first glimpse. Não sou eu que fiz isso, é o mundo que está assim. E eu só olho para o mundo e digo: “Ai é para o first glimpse? Então espera aí que eu também sei fazer”. Porque eu, como artista plástica, tenho obrigação de captar as ideias contemporâneas e aplicá-las às artes. Quando olhas para as minhas peças, elas causam-te um impacto. Depois, a seguir, se tiveres pachorra, vais por-te a pensar. Mas a sociedade de consumo está estruturada de tal maneira que tu tens de consumir antes de pensar. Eu só apenas uma tradutora disso.

Queres dizer que é uma arte democrática e inclusiva? Serve para todos?
Sim, é democrática, mas particular. Se fores um curador podes até analisar o meu trabalho e escrever 50 catálogos à volta de uma peça, mas se fores a senhora da limpeza e quiseres curtir, também podes.

Isso porque o vocabulário usado no teu discurso é comum a todos nós. São coisas com as quais nos relacionamos...
Daí que toda a gente no meio artístico ache que eu sou muito comercial, porque nesse meio entende-se que tu não deves comunicar para as pessoas, e sim apenas para uma elite.

É impossível neste momento não falar do resultado astronómico das tuas peças nos leilões da Christie's. O “Coração Independente” atingiu 192 mil euros e o sapato “Marilyn” ultrapassou os 573 mil euros... Podes explicar-nos como te viste inserida no circuito comercial internacional e como tem sido a tua experiência dentro do seu funcionamento?

O paradigma do mercado da arte contemporânea está a mudar. Enquanto que antes eram os galeristas que mandavam nas carreiras dos artistas, agora não. Quem manda são os coleccionadores e estes trabalham com curadores e no pensamento deles. É assim que começam a aparecer as grandes colecções. Passa a ter mais importância para o artista estar numa grande colecção do que numa grande galeria. Os curadores que escolhem as peças para os coleccionadores aconselham, escrevem textos, contextualizam a obra e ela é vendida. Assim, não temos que dar 50% da venda a uma galeria. Por outro lado, com a crise actual, a Christie's já não põe lá uns tarecos à venda só porque os galeristas querem. Tem um curador fantástico para a arte contemporânea que, quando organiza um leilão, monta uma grande exposição. Isto porque a Christie's quer ser um símbolo de qualidade conceptual e não de valor económico. Quando foi o leilão do “Coração Independente”, eu fui lá e nem queria acreditar naquilo. Os catálogos são lindos de morrer, há uma equipa que se dedica exclusivamente a escrever os textos sobre as obras. E isto é assim porque agora quando vão lá os coleccionadores e levam os seus curadores, ou a Christie's tem uma grande exposição, com uma curadoria perfeita, ou eles não compram.

E como é que se passa da participação do “Coração Independente” para a do sapato “Marilyn”?

O comprador do meu coração [existem três], através da sua curadora, decidiu emprestar a peça para expor em Moscovo. Quando eles põem o meu coração ao lado de peças do Jeff Koons e percebem que a minha obra tem tanta força como a dele, o curador da Christie's pôs-se a investigar sobre mim e sobre o meu trabalho. Vieram cá estudar-me, viram o atelier para saber se eu tinha estrutura para aguentar o embate comercial, fizeram-me uma entrevista e nem se falou em dinheiro. Com isso eles querem saber se tens qualidade, se tens obra e continuidade, se és verdadeiro ou não... não é uma avaliação monetária, mas sim de pensamento. E depois, como eu já tiha ido à Bienal de Veneza, tenho peças em grandes colecções internacionais como a Pinault e a Arnault, expus em Inglaterra, França, Japão... Tenho peças na colecção Berardo, que é muito importante... Já tenho o mínimo de requisitos para poder ir ao leilão. Então foram procurar as peças e havia um dos corações que era do Restaurante Eleven. Propuseram a venda e eles aceitaram. Quando foi a exposição, eu estava ao lado de artistas como o Gerhard Richter e o Damien Hirst, coisa que eu nunca tinha pensado. Depois, o sapato foi vendido no seguimento da primeira peça. Eles já tinham uma sala concebida para ele, com o conceito todo da exposição em que o sapato batia certo. Mas ainda há quem diga que eu sou só comercial, que sou o Tony Carreira da arte portuguesa. Eu nunca vi ninguém pimba na Christie's e não me lembro de ver outro português na colecção Pinault, mas pronto, deve ser eu que sou pimba. Não tenho culpa de ser a única artista de cá a ser vendida nesse leilão, nem fui eu que fui lá bater à porta. Como eu não me insiro nos circuitos habituais, sou mulher e nova, toda a gente pensa que se eu tenho sucesso, é porque sou filha de alguém rico. Nunca é porque eu trabalhei 16 anos no duro e a pagar as minhas coisas. É sempre por outra razão qualquer. Eu posso dizer que tenho tido sorte, mas junto a isso muito trabalho.


Achas que com isto conseguiste entrar na fase da internacionalização?
Isso nunca está conseguido. Com esta exposição mostro que estou a dar tudo por tudo. O facto de haver o leilão pelo meio demonstra que sou economicamente viável, mas eu não estou interessada nisso porque eu aqui já o sou. Não é meio milhão de euros que me interessa. O que me interessa é entrar no circuito artístico internacional e se a Christie's é uma forma de o fazer, porque não? Esta exposição é fundamental para isso. Quero mostrar aqui que tenho cabeça, que sei pensar, sei produzir, sou versátil e coerente e sei produzir uma exposição.

Ou seja, estás a entrar na fase dos vinte anos em diante...
Exactamente!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Manuel Luís Cochofel - Quem quer casar com a Valentina?

Manuel Luís Cochofel fez o retrato de uma mulher solitária que Miguel Matos conheceu na Galeria Pente10.

Valentina está cansada da vida que tem e de carregar sozinha as compras do supermercado ladeira acima. A cama é fria à noite e ninguém apanha as canas do seu fogo de artifício. O monitor é o refúgio onde desabafa as suas fantasias e busca, busca... Um dia cria Valentina 170167, na esperança de que esse heterónimo virtual traga nova vida e um sentido à Valentina real. Fotografa-se e corresponde-se com outros homens e mulheres com números em vez de apelidos. Hoje recebe uma nova mensagem e à noite entrega-se a um desconhecido na esperança de casamento.

Esta história pode ser ficção. Mas Valentina 170167 é real. Não sabemos quem é, mas podemos contactá-la através do site onde ela busca um marido, um companheiro, o remédio para a solidão.

O fotógrafo Manuel Luís Cochofel trouxe Valentina 170167 para fora do monitor. Criou uma narrativa visual que extrapola para todos os utilizadores desse site que com ela se possam ter cruzado numa exploração de um universo que é público e privado. São retratos roubados. Imagens que descontextualizou ao fotografar o monitor de um computador. Cochofel recria a intimidade desta personagem através de um fio condutor que liga vários ambientes e introspecções.

“Criei o retrato interior de uma Valentina mas já nem sei qual delas era realmente a Valentina 170167. Há alguém que existe e que põe fotografias na internet à procura de marido. Espero recriar o estado de espírito de uma pessoa solitária, com dificuldades de relacionamento e que utiliza a net para encontrar a felicidade. Esse estado de espírito é criado através de imagens que são o repositório de memórias, de sonhos, de pessoas com quem ela se cruzou”, explica. Manuel Luís Cochofel fotografa sem compromissos desde 2000 e dessa liberdade misturada com uma curiosidade técnica resulta um corpo de trabalho curto e recente mas cheio de intensidade pictórica. Tem 43 anos, é músico e faz parte do Lisbon Underground Music Ensemble. Da música para a fotografia, tudo aconteceu também na internet. “Em 2000 registei-me num site de fotógrafos que foi a minha escola inicial. Comecei a fazer os meus primeiros bonecos e a pôr no site... Mas principalmente ia vendo outras fotografias e a internet resolvia as minhas dúvidas.” Desde 2005 que Manuel faz experiências de fotografar o monitor do computador lá de casa. Estes são retratos de criaturas que vivem submersas em píxeis. Uma camuflagem proporcionada pela trama do computador que traz voyeurismo, tridimensionalidade e um jogo de padrões difícil de conseguir ao nível técnico. E embora as imagens em si sejam desprovidas de emoção, elas criam um ambiente pesado e triste.

A exposição divide-se em duas partes. A primeira é constituída por imagens, retratos e corpos roubados do site matrimonial. A segunda é um retrato interior da personagem Valentina em que descemos à sua intimidade através de metáforas visuais de locais abandonados ou evocativos de experiências. No final há um desenlace que é feliz, mas só aparentemente. Um retrato de casal que denota uma tensão e deixa a narrativa em aberto. Será que Valentina encontrou o companheiro que desejava ou resolveu render-se ao que lhe apareceu à frente?

“The Inner World of Valentina 170167” está patente na galeria Pente10 (Travessa da Fábrica dos Pentes, 10) de 27 de Janeiro a 21 de Março. A entrada é gratuita.

Time Out, 20 de Janeiro de 2009

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Cristina Ataíde - Diário de Viagens Interiores


Miguel Matos viu Cristina Ataíde “Suspender o Ar” em montanhas, na Casa da Cerca, em Almada.

Num mundo cada vez menos ritualizado, falta-nos algo que marque a passagem dos estádios da vida. É esta dimensão simbólica, íntima e ao mesmo tempo social que atravessa a exposição de Cristina Ataíde na Casa da Cerca. Tudo começa e se desenvolve ao longo de viagens em montanhas, listas de pensamentos e desejos.

“As listas que faço sistematicamente são o mote desta exposição. As montanhas têm a ver com a natureza, com percorrer o mundo... Subir a montanha, com a sua componente interior, simboliza os nossos estados na vida.” Como o barco que ocupa a galeria do pátio e, suspenso no ar, atravessa o espaço, num movimento de passagem, de transição. Na capela, um amontoado de paus envolvidos em faixas vermelhas escritas com desejos dos seus amigos, apoia-se na parede. Fitas brancas esperam o visitante, para que possa pedir um desejo, juntando-se aos desejos de outros.

“Pele” é um conjunto de desenhos onde Cristina Ataíde capturou a textura da superfície de árvores, pedras, falésias ou até lava da Ilha do Pico, por exemplo. Sobre a folha, a pele dos locais por si visitados. Cada um destes desenhos tem marcado o nome do local, a hora e a data em que foram realizados, o que lhes dá um carácter pessoal. São diários de viagem: “apodero-me dos lugares, trago-os comigo, principalmente quando são especiais”, diz.

Na obra recente de Cristina Ataíde, há a omnipresença do pó e do pigmento vermelho. O pó pode ser visto como símbolo da morte e o vermelho, o símbolo da vida, da energia feminina e do sangue que oxigena o corpo. Esta junção representará o ciclo da vida, do qual a morte inevitavelmente faz parte? “Para mim há um percurso circular vida-morte-vida, um ciclo de renovação.” Como numa lista interminável em que diz “O pó do meu corpo – O meu corpo em pó”, há nesta exposição uma união de opostos: yin/yang, positivo/negativo em círculos infinitos. A espiritualidade aqui presente tem a ver com as suas viagens à Índia. “Foi aí que comecei a ligar-me ao pigmento vermelho e ao pó. Por exemplo, o sacerdote põe o pigmento kanku na testa para que os visitantes de um templo saibam que ele está santificado. Além disso, quando há visitas de personalidades, os indianos colocam no chão linhas de pigmento, como nós fazemos com tapetes de flores. É uma coisa tão presente que se torna impossível não captar.”

Um enorme desenho pendurado sobre o visitante representa as montanhas e simboliza a realização humana, mas traz um sentido de contemplação. Um sentimento de universalidade ecoa nas paredes com línguas e grafias de todo o mundo. No longo papel onde crescem estes cumes a preto e vermelho, uma lista de quase todas as montanhas que existem e, assinaladas, as que a artista percorreu. “Isto representa a minha pequenez e a enormidade do mundo. Para mim, as listas são uma maneira de reter as coisas. Quando se escreve, a coisa ganha uma dimensão mais concreta. Depois podemos esquecer. Isto é uma tentativa de esvaziar. O vazio é muito importante para mim, porque só se consegue encher depois de se esvaziar.”

De novo o ritual da viagem como metáfora, tal como acontece numa instalação vídeo com imagens de aeroportos. “Gosto muito de aeroportos, de não-lugares, porque são sempre diferentes e encontramos milhares de pessoas anónimas. Os aeroportos têm resquícios dos sítios onde estão, línguas e músicas diferentes”. A viagem termina no cume de uma montanha de papel, branca e vermelha. Frágíl como a vida...

“Suspender o Ar” está patente na Casa da Cerca (Rua da Cerca, Almada) até 16 de Maio. Aberta de terça a sexta das 10.00 às 18.00. Sábados e domingos das 13.00 às18.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 15 de Fevereiro de 2010

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Eduardo Nery - Imagens da desumanização

Miguel Matos usou o pretexto de uma nova exposição para conversar com Eduardo Nery sobre um zigue-zague de temas e controvérsias.

A luz é o elemento que penetra no olho para criar imagens no cérebro. Eduardo Nery tem baseado a sua investigação no modo como a retina absorve e descodifica aquilo que a estimula. Nas suas colagens, pinturas, tapeçarias, azulejos, vitrais e outras técnicas, é uma manipulação retiniana aquilo que o define. E a luz manipulada atinge o seu climax no medium que a ela mais directamente se liga: a fotografia. As fotografias de “Vida Dupla, Casa Arrumada” são fotografias de dupla exposição derivadas das colagens dos anos 70, “O Museu Imaginário na Sociedade de Consumo”, que incluiam títulos tão irónicos e divertidos como “A Batata Frita na Existência Humana”. Nessas obras misturava e punha em colisão obras da pintura antiga com imagens vindas da publicidade e da comunicação social. Naquela altura uma crítica à sociedade de consumo era a coisa mais natural, e hoje? A exposição que inaugura esta semana na Ermida de Nossa Senhora da Conceição é testemunha de um percurso diversificado, mas pouco reconhecido. Uma provocação poética e ideológica que permite debater os fantasmas da sociedade.

O Eduardo tem uma dualidade constante na sua obra. Se por um lado há obras em que reflecte sobre a pintura, questionando-a e pondo em causa as noções de espaço, consegue também em outros trabalhos fazer um comentário social. Neste momento, recorrendo à técnica da dupla exposição, volta à crítica da sociedade de consumo... Para muitas pessoas, o objecto artístico não passa de um veículo de afirmação de status. Como comenta isto?

Primeiro, uma pintura é um objecto, não há volta a dar-lhe. Pode ser um objecto particularmente rico em conteúdos espirituais, mas em termos materiais é realmente um objecto. A maioria das pessoas vê a pintura como uma coisa em que se pode empatar dinheiro e que é rentável em termos de mercado. O conteúdo intelectual ou emocional não é para elas o mais importante. É apenas um investimento ou um bem sumptuário como os carros, as propriedades ou os barcos que compram.


O pior é quando as pessoas se transformam em objectos ou vivem para eles.

Esse é o ponto fundamental que procurei explorar. As pessoas estão de tal maneira envolvidas com os objectos que se transformam elas próprias em objectos. Como os modelos que posam para as fotografias de publicidade: já são objectos. Tornam-se dependentes destes e dos objectivos que estão por detrás da imagem. As mensagens económicas, o marketing, a sociedade de consumo e o poder económico são quem alimenta tudo isto. Portanto, as pessoas são esvaziadas da sua individualidade e personalidade, passando a funcionar sobretudo a um nível comportamental definido pela sociedade de consumo.


São seres humanos funcionais, portanto. Vivem para servir os objectos.

E são o prolongamento desses objectos. Este trabalho tem a ver com a antepenúltima exposição que fiz em Lisboa, na Galeria Arte Contempo e tratava da metamorfose do homem em animal. Todos nós temos um lado animal que rejeitamos por nos sentirmos acima desse nível, mas a verdade é que, quando menos se espera, esse animal vem ao de cima. Todas as séries de fotografias e colagens têm focado qualquer coisa que ainda não disse. Esta exposição é sobre o tema do humano a desumanizar-se.

Isso tem muito a ver com a ironia que utiliza sempre na sua obra... mas os portugueses não convivem muito bem com a ironia, ao contrário dos ingleses por exemplo...

Quando eu era mais novo, muita gente adorava contar anedotas. Hoje em dia não tenho à minha volta pessoas que o façam. Acho que as pessoas nunca tiveram sentido de humor ou estão a perdê-lo com os seus quotidianos. Estão ensimesmadas com as suas coisas. A ironia é uma provocação, mas é também um olhar novo de quem rejeita sentir-se esmagado pelo status quo. Posso dizer que a minha ironia começa em obras que nem passam pela cabeça das pessoas. Em 1970, muitas das obras do final da minha fase Optical Art eram irónicas: entrei para dentro da perspectiva depois de a estudar a fundo e a minha ironia era sabotar o próprio sistema, mas para isso era preciso conhecê-lo muito bem. Por exemplo, em muitos dos meus trabalhos da série “Sólidos no Espaço”, as perspectivas parecem ir contra nós, como parecem ir para trás, como um objecto que devia estar atrás e está à frente, numa perspectiva invertida. Viro tudo ao contrário. Não é a ironia que as pessoas sentem imediatamente nas minhas colagens ou fotografias ao brincar com temas que dizem respeito aos seus quotidianos. São formas de pôr em causa os sistemas de representação na arte, a perspectiva e o claro-escuro. Esse olhar irónico é quase niilista na sua negação, mas também tem a ver com o facto de ter entendido muito bem o dadaísmo e incluir o fantástico.

E por falar em dadaísmo e fantástico, a sua obra tem muito de surrealismo e de metafísica, não é verdade?

Mas diga isso em público a ver se alguém percebe. É que não há meio de finalmente se entender isso. O paradigma do que diz é o quadro que está na Brasileira do Chiado: é um bom exemplo daquilo que fiz nesse período e está cheio de ironia e de situações metafísicas. Eu ando completamente perto dos surrealistas, mas nunca fui associado a eles porque as pessoas adoram formatar. O Eduardo Nery é o pai da Op Art ou o mestre da arte pública e não existe mais nada.

Mas de facto, o fantástico, o humor e a ironia são as traves mestras do surrealismo...

E depois pode ir até ao absurdo, como se pode ver em muitos títulos meus. Algumas imagens são intencionalmente incongruentes, assim como as fotografias que estou a fazer agora. Sei bem que estou a sabotar várias coisas. Esse lado irrequieto que há em mim vem desde criança e há-de acompanhar-me até ao fim da minha carreira. É a única maneira de me sentir vivo numa sociedade cada vez mais deprimida e esmagada pelos problemas do quotidiano. Vejo isso como um factor positivo capaz de rejuvenescer até a própria arte.


Parece que o Eduardo tem a obsessão de desconstruir, desfazer, partir a imagem, não é?

Sim, para depois recolher os fragmentos. A primeira vez que desconstruí e recombinei uma obra foi com os azulejos com imagens do século XVIII. São as “Figuras de Convite” que estão na estação do Campo Grande, que eu não teria feito se não tivesse feito antes disso o trabalho das colagens dos anos 70. Quando eu destruo, depois reconstruo os fragmentos.


A fragmentação atravessa a sua obra, mas numa multiplicidade de técnicas e linguagens diferentes...

Num artigo sobre mim na revista Colóquio Artes, Rocha de Sousa fala da existência de heterónimos na minha obra. Eu também acho que tenho vários heterónimos, mas, ao contrário de Fernando Pessoa, não lhes dei outros nomes. Talvez o devesse ter feito porque assim as pessoas hoje percebiam como é que um homem pode ser fotógrafo e pintor ao mesmo tempo.


Mas hoje há a designação do “artista visual”, que abarca todas as áreas. É mais abstracta e mais correcta...

Eu qualquer dia ponho isso nos meus cartões de visita. É que não sou só pintor. Também sou designer, como se viu na recente exposição de jóias na Ermida. Mas há dois heterónimos essenciais, que são extremos mas combinam-se a torto e a direito: são os lados racional e intuitivo. Por um lado, o jogo com a rapidez e a espontaneidade. Foi por aí que comecei, em obras gestuais que retomei mais tarde. Essa espontaneidade e automatismo são o lado oposto do design rigoroso que é o heterónimo oposto. Se eu estiver muito tempo a fazer uma das duas coisas tenho que voltar para a outra senão entro em desequilíbrio.

Trabalhou a antipintura na mesma altura em que Helena Almeida e Noronha da Costa estavam a trabalhar essa problemática. Desde os anos 70 que se discute a morte da pintura, com sucessivos funerais e reencarnações. Isso ainda faz sentido para si?

A pintura existirá sempre. Já lhe deram certidões de óbito vezes sem conta e ela continua aí.


São frequentes as comparações entre o seu trabalho e o de Vasarely, considerado o decano da Op Art. O que tem a dizer em sua defesa?

O meu trabalho no campo da optical art é completamente original e só espero que um dia alguém ponha as datas e as obras lado a lado para ver quem é que fez primeiro. Sou criticado de ter copiado o Vasarely, mas as obras dele que são parecidas com as minhas são posteriores. A minha op art centrava-se no campo da investigação da percepção, da cor e da luz e nos degradés que comecei a fazer em 1965, dois anos antes de Vasarely. Apreendi a disciplina dos degradés (que se encontram em muitas das minhas pinturas, no azulejo, na arquitectura e na serigrafia) não com Vasarely, mas sim com as minhas experiências em tapeçaria. Em 1960 fui para França trabalhar com Jean Lurçat, renovador da tapeçaria francesa do século XX. Aprendi com ele ao estudar as suas tapeçarias. Nas pausas de almoço ou nos fins de semana eu dedicava-me a estudá-las e ver como ele conseguia dar efeitos de relevo ou de vibração de luz.

E nesse tempo chegou a ter contacto com a obra de Vasarely?

Eu sempre tratei a cor agarrada à luz e joguei com os degradés em todas as cores ao contrário de Vasarely que inicialmente usava cores soltas. Fiz os degradés Op Art em 1965 e eles só aparecem em Vasarely dois anos depois. Em 1966, o José Augusto França levou slides do meu trabalho para a Galeria Denise René [a galeria que centralizava o movimento Op na Europa]. Portanto eu sei que a Denise René e os seus artistas viram os meus slides, embora eu não tenha estado lá para testemunhar. Mas posso ter contribuído para que o Vasarely tenha olhado para mim. Não posso afirmar mas posso pôr a hipótese de ter sido tudo ao contrário. Eu só peço que as pessoas sejam honestas comigo e reconheçam a minha originalidade. Tive o azar de ter nascido em Portugal, porque se tivesse nascido num país que não estivesse bloqueado no tempo de Salazar, entrava logo nos circuitos internacionais, coisa que não consegui. Toda minha obra a partir de 1967 não tem nada a ver com Vasarely pois entrei em diferentes áreas. Se o meu trabalho no campo da arte concreta é completamente original, então porque é que eu iria copiar o Vasarely numas coisas e não em outras? Vou ser sempre associado a ele até ao fim da vida enquanto as instituições não decidirem fazer a justiça de mostrar todo o meu trajecto até agora.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

João Vilhena - Sexo para além da morte


João Vilhena fundou o clube “Splendor in the Grass”. Miguel Matos ainda não se inscreveu, mas explica o que é.

Há algum tempo que não se vê a figura singular de João Vilhena pelos eventos artíst
ico-sociais. Desde a sua morte que uma aura de expectativa se criou em torno do artista desaparecido em misteriosas circunstâncias. Isto até agora. Vilhena, como conceito e não como corpo físico, criou em Lisboa uma nova organização cultural: a sociedade Splendor in the Grass. Não se sinta confuso o leitor que acha que a morte impede um artista de criar. A sociedade tem vindo a ser fundada há cinco anos, desde o falecimento de João Vilhena, devidamente registado numa biografia póstuma e não autorizada, em que se especula sobre a sucessão de acontecimentos que levaram ao desfecho fatal. Mas como é possível existir vida depois da morte se Vilhena não é exactamente Jesus Cristo? Ele responde: “Estou agora não como corpo mas como entidade, na defesa de uma filosofia. Talvez me tenha tornado mais humano desde que morri.”

Após a morte de João Vilhena, punha-se a questão de como ele poderia continuar a existir como artista. Resolveu-se o dilema transformando-se na Splendor in the Grass Society. E o que é isto? Trata-se de um clube privado que tem como interesse central o tema da liberdade sexual, a defesa não de identidade de género, mas sim de pansexualidade. Na Splendor in the Grass Society é muito clara a defesa da ideia de existência de sexualidade nas pessoas e não propriamente de orientações sexuais restritivas. O título “Splendor in the Grass” alude ao universo cinematográfico, uma constante no percurso artístico do fundador João Vilhena.

Desta feita, ele recorre aos filmes Esplendor na Relva e Bonnie e Clyde, ambos norte-americanos, da década de 60 e emblemáticos de Hollywood. “Esta exposição faz uma reunião dos eventos que foram acontecendo depois da minha morte e reposiciona-os no momento actual. A partir daqui, a ideia é sempre trabalhar ideias de revolta, revelação e descoberta da sexualidade, não numa perspectiva adolescente, mas sim como uma nostalgia de um tempo que não chegou a ser vivido.”

Esplendor na Relva e Bonnie e Clyde aparecem como catalisadores desta experiência libertadora por terem sido filmes que romperam com a ideia tradicional de género e de sexualidade nos Estados Unidos. Segundo João Vilhena, “tentamos reforçar a ideia de que a sexualidade é uma coisa natural no ser humano e que não faz sentido pensar em normas de género hoje em dia. Se formos entrevistar adolescentes, verificamos que possuem uma abertura muito grande, sendo que muitos deles se afirmam como bissexuais. É por isso que queremos ter essa vertente educativa e dinamizadora, como sociedade.”

A primeira actividade deste clube privado começa agora. É uma mostra de trabalhos de som, fotografia e escultura sob a forma de instalação pluridisciplinar patente na Galeria das Salgadeiras, no Bairro Alto. O que Vilhena faz é uma apropriação total do espaço para criar todo um ambiente que envolve o visitante. O local faz todo o sentido, visto a Rua das Salgadeiras ter sido, na década de 1970, a rua dedicada à prostituição no Bairro. Para além disso, o local onde está hoje instalada a galeria era mesmo um bordel nesses tempos. “Temos também nesta exposição uma recolha de fundos para o Haiti. Consideramos introduzir uma responsabilidade social por parte dos artistas portugueses”, remata. Entre as questões sexuais, as intenções humanitárias e a vida depois da morte, o certo é que “Splendor in the Grass Society” será um evento de transformações mentais, psíquicas e corporais. Quem se atreve?

“Splendor in the Grass Society” está patente na Galeria das Salgadeiras (R. das Saldadeiras, 24) de 6 de Fevereiro a 20 de Março. Aberta de quarta a sexta das 17.00 às 22.00 e sábados das 16.00 às 22.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 2 de Fevereiro de 2010