quarta-feira, 6 de julho de 2011

Rui Effe - Quase Nada



Existem lugares vazios onde se sentem vestígios de uma vivência. Por outro lado, existe também o seu contrário: lugares cheios de coisas onde não se sente vida. São como simulacros de algo que não chegou a acontecer, espaços a que pode dar-se o nome de “não-lugares”, pegando na referência do antropólogo francês Marc Augé. A ideia de “não-lugar” deriva de preocupações sociológicas e urbanísticas, e tem sido desde os anos 70 mote para reflexões que chegam à filosofia e à arte contemporânea. No fundo, é uma oposição à noção sociológica de lugar e à ideia de um espaço relacionado com o tempo e com a história. As cidades estão repletas de espaços assim e exemplos destes são os aeroportos, os terrenos após uma demolição, as obras embargadas, os supermercados e zonas de passagem.
De acordo com teorias recentes, os não-lugares não estão totalmente desprovidos de propósito ou memória. No fundo, o espaço transforma-se e assume a acumulação de outros significados sociais. Entre a perda do espírito inicial e a aquisição de novas funções económicas, sociais ou culturais, fica um espaço de leitura complexa, a que se junta a percepção alterada pelo tempo. É neste limbo que Rui Effe situa a sua exposição “Quase Nada”. Pode um museu ser um não-lugar? A Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio de casa pouco teve pois nunca chegou a ser habitada. Não foi cenário de tristezas nem alegrias. No entanto, está cheia até ao tecto com obras de arte, móveis, jóias e objectos de uso quotidiano pertencentes a alguém que nunca aí viveu. Em “Quase Nada”, Rui Effe planta interrogações ao visitante e impossibilita o acesso às respostas. As suas esculturas, vídeos e instalações são afirmações de uma presença, mas neste caso é a presença de uma impossibilidade. Como portais que levam a lado nenhum.
O discurso plástico de Rui Effe convoca a alienação do contexto de um lugar. Fala sobre o negativo da comunicação e a existência do nada. Explora o vazio que pode preencher um lugar e torna visível a forma muda de algo que desapareceu. Na instalação site-specific O Eco, com que Rui Effe intervencionou o lago do jardim, vemos a marca daquilo que já foi mas já não é: um tronco de uma árvore morta, cujo corte espelha as folhas das árvores vivas.
Nos espaços interiores e exteriores da Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio, pelas suas paredes e recantos, as obras de Rui Effe ora chocam ora dialogam com as obras de pintura naturalista de Aurélia de Souza e Sofia de Sousa. Evocam a suspensão do tempo em sacos negros e a noite escura dentro de uma candeia, frente a pinturas quase esquecidas. As esculturas são presságios, objectos velados de negro como O Segredo: uma santa de madeira e açúcar coberta com um véu de nylon preto. Alusão aos mistérios da fé e entidade de abstractas premonições. O acesso negado à verdade é ainda abordado em O Mistério, uma estrutura arquitectónica exposta numa das varandas e que lembra um confessionário. Numa parede paira a Viúva: uma pá de cavar coberta por um véu de luto. É como um percurso iniciático que pode fazer-se de dentro para fora ou de fora para dentro. Enquanto numa enorme vitrina se mostra uma cidade queimada com formas construtivistas, no jardim corta-se o acesso a caminhos de carvão e criam-se percursos que não levam a lado algum nesta viagem às cegas.



Miguel Matos

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Rui Chafes - “A matéria do meu trabalho é ferro e palavra”


No Museu Berardo, Rui Chafes e Orla Barry apresentam até 21 de Agosto a exposição a quatro mãos “Five Rings”. Num percurso pensado como uma sucessão de encenações dentro de uma galeria cavernícola, as peças em dueto encaminham o visitante na exploração da palavra dita, desenhada, esculpida… Um projecto que demorou dez anos para se ver concretizado e que culmina na última sala com a simbiose perfeita dos dois artistas numa instalação capaz de provocar um estado de transe. A Artes & Leilões entrou no mundo das ideias e do ferro de Chafes.


Um dos aspectos que atravessa o seu trabalho é a relação directa com um corpo. Mas é uma relação feita através de um vazio, de uma impossibilidade. Trata-se de um corpo impossível?

A escultura não é um corpo, mas é sobretudo um paradoxo em si porque é a demonstração de uma impossibilidade. Eu não acredito no objecto. Não acho que o objecto seja o fim em si mesmo. Nesse sentido, a escultura relaciona-se com a perda, com a ausência, com o lugar não habitado, mas sobretudo por eu não acreditar no objecto como insubstituível, irreparável, incontornável… No entanto ele é a única possibilidade que nós temos para demonstrar uma ideia.


É uma escultura orgânica?

Se calhar é mais óssea. Tem a ver com o lugar do corpo enquanto espaço efémero, espaço mutante em que já não existem distinções. É como uma carapaça ou um esqueleto que fica a substituir um corpo.


São esculturas como receptáculos “activos”, ou seja, estão à espera de serem usadas, activando uma relação com o espectador mesmo que este não as habite fisicamente?

O meu trabalho é a realização de um espaço utópico que nunca é preenchido. Existem excepções, como foi o caso da obra realizada em colaboração com a Vera Mantero. Nessa obra, o espaço utópico foi violado. Se correu bem ou mal não sei, mas para mim foi importante. Foi precisamente o momento em que publicamente, e de forma irreversível, eu ocupei esse espaço. Por outro lado, a Vera não tem corpo. O corpo dela é uma escultura, uma energia, uma sabedoria, uma consciência. A maior parte das pessoas que vêm o meu trabalho não se apercebe da sua relação com o corpo. Nesta exposição há a peça Three sisters listening to the sound of the earth moving through their bodies com as medidas exactas das bacias das irmãs da Orla Barry. É uma ficção que parte de coisas concretas como as medidas de um corpo.


Já realizou exposições com Fernando Calhau, Vera Mantero, Alberto Carneiro, Orla Barry… O que é que acontece quando trabalha em colaboração com outros artistas? O seu processo criador transforma-se?

É como ir a andar e passar ao pé de abismos. Georg Büchner dizia que cada ser humano é um abismo. Quando nos debruçamos sobre ele temos vertigens. Se eu vou trabalhar com um artista estou a aproximar-me muito desse abismo. Tento sair de lá sem cair.


E sai-se o mesmo após contemplar o abismo?

Nunca se sai o mesmo. Avanço para outras coisas, abro outras portas. Transformo-me, altero-me. Se fosse para ficar na mesma não valia a pena.


Há uma disrupção que permite ao público olhar para a obra de cada artista de uma outra forma…

A questão dos públicos é muito curiosa porque dois artistas têm dois tipos de público diferentes. Quanto mais afastadas forem as suas áreas, mais afastados são os públicos. As experiências que tenho feito dividem muito os públicos. Por exemplo, quando trabalhei com o Pedro Costa havia um público do cinema e outro das artes plásticas, que nunca se tocam. Com a Vera Mantero havia a divisão entre o meu público e o público da dança e da performance. Poucas pessoas conseguem ter a elasticidade para entender as ligações. Nesta exposição há de novo um teste a essa situação e na sala final já não dá para separar as partes, é uma obra única composta pelos vários elementos e em que as valências de cada artista estão condensadas num só resultado.


Os seus trabalhos têm títulos que acrescentam significados. Nas obras de Orla Barry a própria palavra é objectificada e mostrada. Isto torna mais visível aquilo que sempre esteve presente?

Penso que sim. Esta exposição é sobre palavras – escritas, faladas… as palavras dão nomes às pedras e aparecem nos desenhos, nos vídeos… Todas as peças têm títulos e aqui a palavra tem tanta importância como tudo o resto. A matéria do meu trabalho é ferro e palavra. O poder da palavra é muito superior ao da imagem. Uma palavra pode salvar ou pode matar.


Os dois artistas já tinham trabalhado anteriormente. Como é que começou esta exposição que agora vemos, de que ideia partiu e como se desenvolveu a nível conceptual.

Isto foi uma feitiçaria… Fizemos o primeiro trabalho há dez anos na altura em que nos conhecemos, aquando de uma exposição na Bélgica que juntava poesia e artes visuais. Ficámos interessados no trabalho e na personagem um do outro. Quando fizemos a primeira peça em conjunto, começámos imediatamente a pensar num segundo trabalho que é, no fundo, um projecto imparável.


Foi um trabalho sem objectivo definido, como uma relação à distância que no fim poderia ou não ter uma apresentação?

Sim. Durante esses dez anos trocámos cartas, e-mails, faxes, telefonemas, encontros… e desenvolvemos muitos projectos, mas o essencial está aqui. A questão do tempo é essencial, porque há uma diferença gigantesca entre fazer uma exposição num mês ou em dez anos. Nesse período, uma série de dúvidas e certezas vão amadurecendo. Quando há dois anos fomos convidados por Jean-François Chougnet para fazer uma exposição no Museu Berardo, pegámos em todo o material que tínhamos e começámos a adaptá-lo às salas. Escolhemos estas galerias porque são um espaço claustrofóbico, sem janelas nem luz natural, com um tecto baixo. Queríamos espaço fechado e intimista.


Entendo as suas esculturas como estando relacionadas com a linguagem e função da joalharia contemporânea, sendo que o que define esta é, acima de tudo, a relação com um corpo ou a alusão à existência desse corpo. Isto acarreta noções de escala e aplicabilidade ou não das peças, para além de características ritualísticas. O seu trabalho funciona também nestas dimensões. Concorda a associação?

Acho que as palavras têm sempre raízes e essas raízes têm a ver com a nossa História. A escultura também tem várias raízes, naturezas e finalidades. Existe a escultura monumental, que não tem forçosamente a ver com a escala, mas sim com o seu propósito. A ideia de monumento tem a ver com uma colocação estática e com a polis. É uma escultura pesada, mesmo que seja pequena. Não se move, é monolítica. Há vários outros tipos de escultura, entre eles a escultura bárbara, que é a que me interessa. A escultura bárbara é nómada. É a faca que se transporta, o colar, a jóia, o ornamento. As minhas esculturas estão mais próximas dessa flexibilidade. Mesmo as obras de maior dimensão obedecem a uma lógica nómada, de leveza, de instabilidade, de transporte. As minhas esculturas são, de facto, próximas da joalharia, não pela sua utilização mas pela família a que pertencem – a família do ornamento bárbaro. A joalharia também é nómada e se guarda e é preciosa ao nível simbólico e material. Mas a escala e a proporção são diferentes.


Disse já várias vezes que acredita que a obra de arte tem um poder transformador. Não será uma ideia amplamente partilhada pela maioria dos artistas contemporâneos. Em que sentido a obra de arte ainda pode ter esse poder na vida, no pensamento e na cultura?

Se não tiver esse poder transformador não é arte, é outra coisa qualquer… A arte tem de ser capaz de transformar o olhar ou a vida de quem a observa. Não há arte sem transformação, é a transformação de uma coisa em outra.


Por isso não há arte que seja natural…

Sim, não há arte natural. Essa transformação não é magia. É a disciplina que o artista conseguiu para, com a sua experiência e o seu conhecimento, colocar os objectos que faz num plano semântico, simbólico, metafórico e metafísico, que muda alguma coisa nas pessoas. O mundo está cheio de objectos, não é preciso haver mais. A arte que é só uma ideia gira baseada em brincadeiras e gadegts não interessa. Um exemplo de um artista que consegue inverter o mundo e transformá-lo com uma pequena escala e poucos recursos é o Francisco Tropa. Ele trabalha genialmente o mundo dos pequenos nadas. Não é magia. É uma consciência muito apurada.


Os seus trabalhos de escultura impõem uma presença como entes ou presságios. Os ingleses têm a palavra “Omen”, que acho muito adequada…

Eu sei que é muito difícil escrever sobre o meu trabalho porque não existe nada parecido com ele. Portanto, não há muitos referentes conhecidos para começar a construir um discurso. Os pressupostos do meu trabalho estão ancorados em muitas coisas diferentes com distâncias no tempo e no espaço. De facto, são entes ou presenças. É um trabalho que cria uma relação obscura e ambígua com as pessoas. Eu próprio às vezes não o compreendo. Há casos em que só passados anos é que compreendo porque é que fiz determinada peça.


Trata-se de uma obra que não se deixa conhecer por completo. Há um lado enigmático. através do qual se opera um impacto no espectador.

Concordo. É um trabalho que oferece muitas resistências porque é misterioso. É muito mais da esfera do irracional do que do lógico.


Pratica um radical afastamento do lado mais mundano da arte e considera essa distanciação essencial para a sua vida e para o seu trabalho. Porquê?

Faço uma separação muito grande entre o que é a arte enquanto trabalho de pesquisa, investigação e experiência, e a minha vida. Não misturo as coisas. Essa ideia de o artista estar retirado do mundo é, para mim, essencial. Não quero nem preciso de publicidade. Ao contrário de outros artistas, recuso falar para a televisão, recuso retratos, recuso todo esse tipo de promoção e sou muito criterioso nas entrevistas. Vivo uma vida reservada, longe das imagens públicas, e assim quero continuar. Para mim a única coisa que conta é a obra, a escultura, o seu poder evocativo nas pessoas. Tudo o resto, todo o esforço de espectáculo e imposição social, é efémero e prescindo dele. É uma questão de higiene mental e emocional.


Miguel Matos

sexta-feira, 24 de junho de 2011

João Leonardo - One hundred and six columns, four heads and one table


João Leonardo é um artista respigador do vício mortal do fumo, o seu e o dos outros. Tem como hábito passar o tempo a guardar beatas de cigarros: as que acaba de fumar e as que encontra no chão. Com isto consegue a matéria-prima para o seu trabalho e ainda faz o favor de contribuir para a eliminação destes resíduos nas ruas, resultando na sua reciclagem em obras de arte.

A exposição que tem patente na Galeria 111, “One hundred and six columns, four heads and one table”, é toda ela feita não de óleo ou acrílico sobre tela, não de pedra, de bronze ou ferro, nem de papel ou carvão, mas sim, de cinza, tabaco e beatas. Um ciclo de vício, prazer, morte e transformação opera-se nas mãos deste artista.

Há três maneiras de olhar para a exposição de João Leonardo. Uma delas é optar pela apreciação dos aspectos formais das obras. Outra é o aspecto do processo de criação, exposto no centro da sala como se fosse um laboratório. Outro ainda está ao nível das ideias que se criam em quem observa, ao deparar com o material de que são feitas estas peças.

Ao nível formal há a salientar um aspecto repetitivo e de criação de padrões em série, ou um depuramento de cores e blocos cromáticos. Isto relaciona-se com o minimalismo. Torna-se mais claro quando vemos duas caixas altas em acrílico, uma delas castanha e outra cinzenta. São, de facto, tabaco fumado e tabaco por fumar. De um lado, as folhas secas, de outro as folhas em cinza. Mas o aspecto inicial são dois blocos monocromáticos. Pode-se também falar de uma peça em que aparece milhares de vezes a frase “breathe in, breathe out”, escrita à mão e pintada por cima com nicotina em estado líquido. Ou de duas molduras onde estão composições monocromáticas feitas com beatas castanhas, brancas e até pretas que salpicam o bloco de cor aqui e além. João Leonardo vai ao ponto de pintar auto-retratos em beatas ou com extracto líquido de nicotina. Será uma identificação do autor como alguém que tanto é capaz do prazer como da morte? A busca da virtude pelo vício, como dizia o Marquês de Sade? Estes são exemplos de poesia feita em cinza e fumo. Mas a exposição não se resume a exercícios pictóricos, pois há também escultura. Leonardo cria cabeças construídas em beatas fumadas e coladas umas às outras. É o vício do fumo que cria retratos anónimos tridimensionais.

O sentimento geral desta exposição traz à memória a pintura de vanitas, uma tradição europeia muito praticada na Holanda nos séculos XVI e XVII. Salientava a fugacidade da vida e o carácter efémero dos prazeres mundanos. Geralmente representava objectos de luxo e prazer, flores, frutos e instrumentos musicais, fazendo par com caveiras. A mensagem geral era um apelo à valorização do nosso tempo de vida e um sublinhar das vaidades e futilidades como passageiras. No caso da obra de João Leonardo, ela mostra os testemunhos de um momento já acabado: as cinzas de uma inspiração e os restos de um vício. Com eles cria pequenos monumentos de homenagem a um prazer que já morreu e que pouco dura de cada vez que se acende.

Miguel Matos

“One hundred and six columns, four heads and one table” está patente na Galeria 111 (Rua João Soares, 5-B) até 30 de Julho.

sábado, 18 de junho de 2011

João Murillo - Promessa Cumprida a Mário Cesariny




João Murillo é um pintor que mexe na tinta com o pincel, as mãos e o coração todo. É de sentimentos que se fazem as suas telas. Agora prepara-se para mostrar algumas delas, feitas em conjunto com um amigo que estará presente na inauguração em todo o seu espírito: Mário Cesariny.


Esta exposição marca o final de um processo pessoal e artístico. Podes explicar porquê?


Estou a fazer 25 anos de pintura e há algumas inevitabilidades para quem sente a inquietação que o leva a ser artista visual. Essa inquietação é, por um lado, factor de isolamento, mas por outro lado, de agregamento em relação a outras pessoas que sentem a mesma motivação. No entanto, nunca houve um movimento de artistas em Portugal a não ser o surrealista. Ou seja, existe muito pouca partilha e interacção entre artistas. Eu tive o privilégio de me cruzar com pessoas que levavam essa interacção aos extremos. Foi o caso do Artur Bual, com quem trabalhei durante 15 anos, e do Mário Cesariny, com quem também trabalhei 15 anos, e para além disso vivíamos na mesma rua.


Cesariny era a figura máxima do surrealismo em Portugal, acompanhado de perto por Cruzeiro Seixas...


Muitas vezes o Artur Cruzeiro Seixas declarava não ter o génio do Cesariny. Em termos de artes visuais, provavelmente o Cruzeiro Seixas era mais genial do que o Mário Cesariny. O Cesariny era genial ele próprio. Há uma característica da sua obra pouco falada: não há distinção entre o artista e aquilo que ele escreveu ou pintou. Há uma fusão total. Outro aspecto importante é o facto de ele escrever sempre a sua poesia nos cafés ou na rua. Deixou de escrever quando deixaram de existir cafés.


É importante para ti a ideia de agregação e partilha entre artistas, mesmo que estes tenham trabalhos diferentes?


É fundamental. Aliás, acho que hoje a grande inibição no convívio entre artistas é o dinheiro. Todos vivem obcecados com a possibilidade de forrarem mais a carteira e de terem uma conta bancária mais confortável. Eu acho que essas questões têm de estar completamente separadas do processo criativo. Não tenho nada contra os artistas que têm uma estrutura de marketing para ganhar mais dinheiro, mas isso não faz com que a sua obra seja melhor ou mais coerente. Para a velha guarda de artistas, o dinheiro era apenas uma consequência do processo e nunca interferia nos preceitos conceptuais.


Nesta exposição fala-se de uma época no final da década de 1990. Como é que começaste a trabalhar com Mário Cesariny?


Quando eu conheci o Mário, ele já não pintava. Mas como ele estava sempre no meu ateliê, começou a sentir de novo a envolvência e recomeçou a pintar. Eu fui sempre visto como um par pelo Mário, não era visto como um miúdo. Partilhávamos conhecimentos e essa experiência foi muito enriquecedora para ambos.


São autores diferentes, sendo que o teu trabalho é claramente expressionista. No entanto, a verdade é que o expressionismo tem ligações ao surrealismo, pelo lado automático e por vezes lírico...


Sim, especialmente para um surrealista que tem necessidade de construir e desconstruir até chegar a algo que procura transmitir. Mas o meu expressionismo foi sempre gestual. Em termos de linguagem pictórica está mais próximo do trabalho do Bual e distante da linguagem do Cesariny, embora houvesse pontos de cruzamento. O que é curioso é que no meio deste relacionamento começámos a perceber que quando o Mário pegava no meu processo e trabalhava nele, sentia-se em casa porque tinha um primário sobre o qual ele podia criar.


Ao longo desses anos de proximidade, surgiu um projecto em comum entre a poesia e a pintura. É o resultado desta colaboração que se mostra agora?


Tudo começou quando eu fiz um retrato do Mário. Esse retrato estava alicerçado num poema dele que dizia: “É preciso dizer o dia em vez de dizer os anos”, no sentido de celebrarmos cada vez mais os momentos. O Mário, depois de eu ter pintado esse retrato, lançou-me o desafio de pintar os poemas dele. No meu ateliê, no verso de uma obra que tinhamos pintado os dois, estruturou um quadro que me ofereceu e dedicou, baseado no seu poema “Atelier”. Depois disso fez-me prometer que pintava os seus poemas, que seleccionámos juntos. Algumas peças fizemos em colaboração e estão assinadas pelos dois. Outras começámos os dois e eu terminei depois para cumprir a promessa que tinha feito, mas a minha intervenção afastou-as tanto do seu início que tive necessidade de esconder a assinatura dele. Seria uma incorrecção da minha parte manter a assinatura do Mário.


Mas não se trata apenas de um conjunto de ilustrações...


De todo. Aí entramos numa visão que era comum aos dois, pois achávamos que a pintura vai sempre muito mais longe do que a poesia.


Porque esperaste tanto tempo para expor estes quadros?


Muita gente me perguntou, aquando da morte do Mário, porque é que eu não expunha estas obras. Havia uma componente emocional: cada pessoa precisa de fazer o seu luto. E depois, sempre que alguém desaparece, existe uma série de aproveitamentos e associações que algumas pessoas pretendem fazer, principalmente quando falamos de um dos maiores vultos da cultura portuguesa do século XX. Eu não quero ser confundido com uma dessas pessoas, pois o meu maior património não é aquilo que eu vou mostrar nesta exposição. É algo que nunca vou poder mostrar a ninguém, algo pessoal e intransmissível, que são os milhares de horas de conversas e de convívio que tivemos. Não quero capitalizar a minha relação com o Mário. O que eu quero é cumprir a promessa que lhe fiz para encerrar um ciclo de memórias. Sinto que estou numa fase de mudança, tenho estado num período de balanço e introspecção em relação àquilo que quero fazer daqui para a a frente. Depois de tanto laboratório, o que eu sinto é que hoje tenho as ferramentas mais arrumadas e agora que fechei o ciclo e cumpri a promessa, está na hora de usá-las.


Miguel Matos


“É preciso dizer os dias em vez de dizer os anos” está patente na Galeria São Bento (Rua do Machadinho, 1) de 18 de Junho a 31 Julho. Aberta de terça a sexta das 10.30 às 13.00 e das 15.00 às 19.30. Sábados das 15.00 às 19.30. A entrada é gratuita.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O desenho bélico de Joana Rosa



“As ideias são como peixes. Se quisermos capturar peixes pequenos, podemos ficar pelas águas pouco profundas. Mas, se quisermos capturar os peixes grandes, temos de ir mais fundo.” - David Lynch1



Apanhar as linhas riscadas sem pensar e delas fazer desenhos pode ter efeitos perigosos e levar a descobertas inusitadas. Joana Rosa colecciona avidamente scribbles, o vulgo gatafunho que se faz de forma automática, sem se pensar no que se desenha. Colecciona os seus próprios e recolhe os que pode dos amigos e até de desconhecidos incautos. Com esses registos cria uma parte da sua obra que denota uma actividade classificatória, quase de bibliotecária, organizando estes documentos espontâneos e que aparecem sem aviso. Essa colecção gigantesca de scribbles serve de base para outro tipo de trabalhos da artista: os seus obscuros desenhos de grafite sobre papel vegetal. Os violentos, mortais e negros desenhos obsessivos repletos de armas, bailarinas, frases e rabiscos. É com eles que descemos às profundezas do inconsciente e à sujidade da grafite.


Joana Rosa declara o improviso como o tom geral do seu processo de trabalho. No entanto, a composição de cada desenho demonstra um planeamento espacial que, embora possa ser intuitivo, está bem presente. Joana Rosa possui um vocabulário criado por si e, com os elementos que o constituem, organiza no espaço ideias qe podem ser mais ou menos concretas. São obras realizadas em casa, frequentemente ao som de música. Aliás muitos trabalhos apresentam, escritas à mão, as letras das músicas ouvidas ou pensadas durante a sua execução. O próprio título da exposição, “My Own Army” poderá remeter para a música “Army of Me”, de Björk, em que a cantora sussurra e grita: “And if you complain once more / You'll meet an army of me”.






No papel translúcido, Joana Rosa acede às trevas. As suas e as do mundo que a rodeia. Faz isto acedendo à “porta mal fechada da escada que desce para as caves da torre, e que logo penetra numa escuridão onde se caminha às apalpadelas”2. É assim que René Huyghe definiu o inconsciente, o subconsciente, o subliminal, ou o que quisermos chamar ao estado em que deixamos o pensamento e o corpo fluirem sem exercer controlo sobre eles. A própria artista explica que “quando estou muito chateada desenho uma arma e ponho lá as minhas chatices, as minhas frustrações e, sobretudo o facto de haver crianças a morrer na guerra. Não posso ver crianças maltratadas. O meu exército tem a ver com isso. Estas são armas espontâneas, é a minha necessidade de combater e atacar todas as coisas terríveis e violentas que há no mundo”. Vemos nestes papéis agredidos objectos que reconhecemos como armas. No entanto, após uma observação atenta, verificamos que esses objectos não existem antes de Joana os desenhar. São bombas, armadilhas, correntes e metralhadoras imaginárias. Alguns destes mecanismos são até absurdos, mas apresentam elementos que sugerem uma função de arma. Aludem, no fundo, às imagens de conflitos e guerras que vemos diariamente na comunicação social.


Segundo Freud, o impulso de destruição constitui, lado a lado com a líbido, o segundo impulso básico humano3. Nas mãos de quem mata estão máquinas às quais não temos acesso mas que reconhecemos. Um gatilho, um cano, uma mira... é todo um repertório bélico que Joana Rosa recria, com o qual faz brincadeiras perigosas e que utiliza como palavras de combate em discursos de guerra. “É um exército de papel, não faz mal a ninguém. Não sou bélica, sou até muito doce”, diz a artista. São obras feias, poder-se-á dizer, de uma fealdade tal que apenas um espírito permeável aos estímulos mais contundentes se pode deixar penetrar pelas imagens e, após possuído, senti-las como redentoras. Não está nas intenções de Joana Rosa provocar repulsa com as suas violentas representações de instrumentos de morte. No entanto, é inegável que alguns receptores da imagem a possam entender como grotesca. A categorização de grotesco, neste caso, como na maior parte das vezes, é um fenómeno experimentado na recepção. “Mas é perfeitamente concebível que seja recebido como grotesco algo que na organização da obra não se justifica absolutamente como tal”, diz Wolfgang Kayser4. Não se pede ao observador uma atitude de intervenção ou interacção perante estas obras mas sim uma passividade que abra o caminho à fruição do terrível numa espécie de arte como ritual que “promove uma descida ao inferno, uma viagem ao imaginário e ao horror, mas essa viagem reconduz de novo ao quotidiano, de tal maneira que o sujeito se encontra, através do seu percurso, transformado”5. Numa obra que joga com os limites da experiência estética entre o macabro, o ameaçador e o lúdico, o inocente, dá-se o acesso ao tal “abismo que sobe e transborda” de que fala Eugenio Trías.


Se Joana Rosa nos surpreende com obras tão díspares (ora mostra armas, ora expõe fadas de contos infantis) é porque o seu trabalho plástico é bipolar. Entre a cor e a escuridão, oscila uma dialética de opostos. Mesmo nos seus desenhos negros, a par das armas e das bombas aparecem frequentemente e em convivência imagens de fadas e bailarinas, como delicadas amazonas nesta batalha de contrários. A presença das bailarinas é um pormenor autobiográfico e deriva de sonhos desfeitos. Com efeito, a artista fez o curso de bailarina com a ideia de conseguir chegar a trabalhar como coreógrafa. No entanto, no final dos estudos, o médico proibiu-a de dançar. Foi então que Joana Rosa seguiu para Londres e estudou escultura experimental. As bailarinas são assim representações simbólicas do sonho destruído. Já as fadas, aludem a um universo infantil do qual a artista não se consegue separar. Há, de facto, uma grande e permanente dualidade entre bem/mal, masculino/feminino, caos/harmonia, pacífico/agressivo, maquinal/orgânico... sempre nesse registo em que tudo convive em tensão no meio de um aparente caos. Apesar dos elementos fálicos, há uma delicadeza feminina, um croché de armas, uma minúcia... Os elementos destes desenhos podem ser violentos, mas a maneira de trabalhá-los é delicada e frágil, provocando perplexidades no espectador.


Não estamos perante um mundo onírico: estas armas não são sonhos nem pesadelos; vêm da realidade e não são o reflexo do interior da artista. São antes, e pelo contrário, a sua reacção à violência que a rodeia, num processo psicológico de transferência, ligado ao inconsciente, no qual estes sentimentos transbordam para o papel. O lado obsessivo destes trabalhos tem a ver com o carácter automático dos scribbles. Esse lado revela-se na repetição de elementos, na escrita compulsiva... Joana Rosa deixa o desenho correr através das mãos nestes desenhos que são também diários. Diários porque reflectem as preocupações quotidianas da autora, diários porque são apontamentos. Diários até porque não escondem pormenores “práticos” do momento em que são realizados: números de telefone, lembretes de tarefas, rabiscos, rasuras, receitas de cozinha... Por outro lado há o aspecto pobre do suporte sobre o qual desenha: o papel vegetal, é usado pela sua transparência e pela possibilidade de sobrepor os desenhos. O papel é amachucado, maltratado, sujeito a todo o tipo de agressões. A artista deita-o para o chão, chega até a pisá-lo ou mesmo queimá-lo.


Joana Rosa nunca lutou numa guerra que não seja a que se passa dentro de si. No entanto, conseguiu manufacturar um vocabulário de armas imaginárias, um desenho bélico. Estes desenhos reflectem a repressão que a artista sente no mundo. É uma violência arrumada, organizada mas nem por isso domesticada. Finalmente há que reflectir sobre um aspecto a ter em conta quando se fala dos armamentos que se impõem nestes desenhos: a arma como objecto pertencente à lista de ícones da sociedade de consumo. Dá-se assim uma aproximação à arte de carácter mais pop: a arma como ícone de uma sociedade contemporânea baseada na força e na repressão.





1LYNCH, David, Em Busca do Grande Peixe – Meditação, Consciência e Criatividade, Estrela Polar, Cruz Quebrada, 2008


2HUYGUE, René, O Poder da Imagem, Edições 70, Lisboa, 1986
3DOUCET, Friedrich, A Psicanálise, Editores Associados, Lisboa, s/d
4KAYSER, Wolfgang, O Grotesco, Editora Perspectiva, São Paulo, 2003


5TRÍAS, Eugenio, O Belo e o Sinistro, Fim de Século, Lisboa, 2005

sexta-feira, 20 de maio de 2011

José Pedro Croft - “O nosso interior é uma caixa de Pandora”


José Pedro Croft pode parecer um artista metódico e racional se atentarmos apenas na sua produção plástica. No entanto, apesar de empregar materiais pobres ou industriais, e de o resultado poder ser frio e distante da manualidade, Croft salienta a importância da intuição ligada à disciplina.

As esculturas de José Pedro Croft são mecanismos que funcionam em interacção com o corpo… Apesar da referência à forma e função funerária da escultura, são obras que pedem a dinâmica de um organismo vivo, observante e em interacção dinâmica com a estrutura. É nessa dualidade constante, nesse fluxo bidireccional que se dá a troca de energias que permite à arte existir como tal. Na exposição que inaugura a 9 de Maio no Espaço Chiado 8 Fidelidade Mundial, José Pedro Croft explora noções de habitabilidade e de escala em linguagens diferentes que seguem um caminho único.

Desde os anos 80 que tem construído um percurso sólido e concentrado numa linguagem imediatamente reconhecível. Muitos artistas mais jovens optam pela diversificação de linguagens e temas de forma tal que muitas vezes não criam uma marca autoral. Acha que esse caminho dificulta a progressão de uma carreira no contexto do mercado da arte?

Não sei muito sobre carreiras nem confundo o trabalho com o mercado. Acho que andam paralelamente e por vezes nem sequer se tocam. Eu acho que um artista explorar novos caminhos e novas possibilidades não só é um desafio como é estimulante, refrescante e enriquecedor. Em relação ao meu trabalho, tento ir trabalhando diferentes materiais e escalas, pensando cada exposição de maneira diferente. Cada trabalho é pensado em função do lugar e de uma ideia. Surgem outros materiais e eu estou disponível para usá-los. O que acontece é que, no momento de usá-los, me meto tão dentro deles que é impossível isso não ter uma marca autoral, uma impressão digital. Mas isso não acontece com o objectivo de ter uma linguagem reconhecível.

É dos poucos artistas portugueses que conseguem realizar exposições individuais todos os anos em diversos países. Considera que a sua internacionalização é um facto consumado?

Não. Hoje em dia, para os artistas portugueses, e para qualquer artista europeu, é normal expor e circular fora do local de produção – coisa que não existia quando eu comecei. Apesar de fazer exposições no estrangeiro, não estou integrado nos grandes circuitos nem nos grandes museus internacionais. Não estou e não é uma coisa que me preocupe.

Uma faceta do seu trabalho que tem mais sucesso no estrangeiro do que em Portugal é a gravura. Em Portugal não se dá valor a esta técnica, no entanto, basta ir a Espanha para encontrar um interesse enraizado...

A Galería La Caja Negra, que me representa em Madrid, levou o meu trabalho de gravura para a Feira de Arte do México e para a Feira de Arte de São Paulo. As minhas gravuras têm feito alguma circulação em Espanha e nas feiras internacionais em que a Galería La Caja Negra participa. Em Portugal, é um trabalho que não está valorizado, tal como há 20 anos não se valorizava o trabalho sobre papel. É uma coisa que leva tempo e também não há uma grande tradição, apesar de nos anos 50 e 60 alguns artistas portugueses terem feito um importante trabalho de exploração da técnica, sempre com condições difíceis e rudimentares. Há um grande desconhecimento sobre a gravura e as pessoas associam-na muitas vezes ao poster. De qualquer forma, o que interessa é o processo que está por detrás, o conceito de múltiplo e a manualidade do trabalho. Muitas vezes, para mim é mais difícil fazer uma gravura do que dez desenhos.

A relação que estabelece entre o seu trabalho de gravura, desenho e escultura é de diversidade ou de complementaridade?

Eu acho que são complementares. Tal como dentro da escultura, cada uma é complementar da outra. O processo escultórico, só por si, não esgota todo o modus operandi e assim vou ter de buscar outras técnicas que podem ser o guache, o acrílico ou o carvão sobre papel para continuar o processo. No fundo estou sempre a falar da mesma coisa, mesmo num processo mais demorado como o da gravura.

Na sua escultura há um movimento duplo, em fluxo permanente. Concentra num espaço delimitado a realidade circundante, captada e fragmentada por espelhos, mas por outro lado, esses espelhos projectam para fora ângulos e superfícies.

O que faço é dar impressões do espaço e deslocá-las, retirando-as do contexto e alterando inclusive a sua escala. São questões de percepção.

O seu trabalho remete para uma função de preservação, que se intui nas estruturas que lembram arcas ou vitrinas de exposição de objectos preciosos ou ritualísticos. As suas esculturas, ao contrário do que possa parecer, não estão vazias, pois não?

Temos duas maneiras de olhar para elas. Primeiro, porque qualquer estrutura, por muito vazia que esteja, está cheia do mesmo ar que está fora dela. Mas a diferença é que se pode falar de um “cá fora” e um “lá dentro”, por existir um espaço delimitado. Depois, estas esculturas não estão completas. Elas existem em potência mas só são completadas e activadas pelo espectador cada vez que as olha e lhes enche o interior.

Explora nas suas esculturas questões do corpo, da percepção e do espaço...

Há um assunto que eu estou a trabalhar que é a noção de território e de demarcação. Nesta exposição pego num espaço que é habitável e construo uma escultura que nos expele e nos empurra contra a parede, tornando-se a escultura num espaço de arquitectura inabitável.

Isso quer dizer que numa escultura pode descobrir um elemento que depois desenvolve noutro medium?

Sim, não há uma regra. Mas isso tanto pode ser na escultura como a passear na rua ou a ver um filme. De repente há qualquer coisa que mexe connosco. O nosso interior é uma caixa de Pandora da qual, se estivermos disponíveis, estão sempre a saltar cliques que nos permitem fazer pontes e ligar coisas.

O que é preciso é viver…

Exactamente! E estar disponível. Há uma parte de rigidez que é importante e sem a qual não se pode construir. É preciso ter a disciplina de ir ao atelier, uma obstinação de se conseguir fazer qualquer coisa. Mas também é preciso estar aberto a contaminações para que umas coisas dêem origem a outras e outras. São dinâmicas contraditórias que, no fundo, se complementam.

A exposição que está a preparar para o Chiado 8 divide-se em três partes. Pode contar-nos um pouco sobre elas?

Comecei a pensar esta exposição há três anos. São três peças: uma delas é uma escultura que ocupa a totalidade da sala maior. Depois há um desenho que trata do mesmo assunto e a terceira sala terá uma peça de parede. A escultura central, composta com vidros e espelhos, é enorme e faz com que fiquemos apenas com uma distância de metro e meio de circulação entre ela e a parede. Nunca será possível ter a noção da peça no seu todo, apenas visões parciais. Pela primeira vez vou também apresentar um trabalho de fotografia que não funciona como obra autónoma mas sim como estudo. É um registo dos olhares que eu vou tendo quando passeio ou quando viajo e que me ajudam a perceber qual é o assunto que ando a tratar na escultura e no desenho.

Miguel Matos

(Foto – Clara Azevedo)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Manuel Caeiro - 12 000 m2 dentro de um T0


Haverá espaço para habitar dentro ou para lá de uma parede? Há. 12 000 metros quadrados! A pintura de Manuel Caeiro (Évora, 1975) tem o dom de cruzar e fundir de forma original o concreto com o abstracto num resultado que convoca a presença física do espectador e a coloca em confronto com a tridimensionalidade que a tela sugere. A sua obra parte frequentemente de elementos visuais que reconhecemos do quotidiano urbano, como a sinalética de perigo ou aviso, os materiais de construção e estruturas que lembram andaimes ou construções de base arquitectónica. Elementos que o observador reconhece com rapidez mas que, durante o tempo de observação de cada quadro, e à medida que a retina dança e avança pela tela, se tornam progressivamente destituídos da sua função de representação. A imagem complexifica-se e transforma-se progressivamente num espaço de linhas, cores e manchas que activam o espaço à sua volta. Multiplicações das formas, rebatimentos, repetições, modulações e reverberações da cor compõem quadros de apelo cinético e raiz construtivista.

O mecanismo que anima habitualmente a obra de Manuel Caeiro está bem presente nesta exposição de trabalhos recentes em que a abstracção é assumida, num acentuar da geometria e do espaço arquitectónico. Há nestas pinturas, expostas na Galeria Carlos Carvalho, em Lisboa, um jogo de dinâmicas e paletas que explodem em linhas de tensão e ritmos que fazem com que o olho sinta dificuldade em se concentrar num único ponto. A aplicação destemida da cor, o desvendar da estrutura de composição, a sujidade da tinta e os enganos cometidos: tudo é assumido e integrado. São telas cerebrais na sua concepção, mas espontâneas no resultado que denota uma velocidade frenética. No entanto, o que poderia ser apenas um truque é afinal uma sinceridade artística que resulta em imagens deslumbrantes e que não perdem interesse após um primeiro relance. Em “12 000 m2 dentro de um T0” verifica-se uma depuração do caminho já percorrido e confirmável em exposições anteriores. Neste fluxo visual ainda se encontram os elementos de sinalética que constituem o leitmotiv do pintor, mas nota-se um gradual desprendimento dessa fórmula. Apesar disso, Manuel Caeiro ainda os retoma em alguns trabalhos mais discretos, de menor dimensão, em acrílico e fita sobre c-print.

Diz Jorge Emanuel Espinho na folha de sala da exposição: “Visitar esta mostra de pintura é uma experiência bipolar. Primeiro estática, de simples contemplação dos espaços profundos e largos de que estas obras tratam, visual apenas; e depois dinâmica na sua acção psicológica, pensada, de inserção e relação nesses próprios espaços.” É este o segredo de Manuel Caeiro que vem provar que a estafada teoria da morte da pintura não poderá ser confirmada tão cedo. Porque uma criação desvitalizada não pode puxar o corpo para dentro de uma tela, activando profundidades visuais que fazem esquecer que por detrás está apenas cimento ou pladur. É essa activação espacial que a pintura de Manuel Caeiro tão bem consegue.

Miguel Matos

terça-feira, 10 de maio de 2011

Em Belém, de olhos no presente - Entrevista com Pedro Lapa


A Artes & Leilões conversou com Pedro Lapa semanas depois de este ter assumido o cargo de director artístico do Museu Colecção Berardo. Lapa sucede assim a Jean-François Chougnet que, por razões pessoais, abandonou a posição que ocupava desde a inauguração do museu. Sendo demasiado cedo para concretizar um programa museológico, o antigo director do Museu do Chiado revela algumas das suas ideias sobre o sistema artístico português e sobre a sua linha de pensamento acerca do lugar e da função de uma instituição como esta. A promoção de novos artistas e a internacionalização do museu são os pontos centrais da sua visão.

Foi afastado da direcção do Museu do Chiado no final de 2009, tendo sido substituído por Helena Barranha. Como avalia a actividade do museu desde a sua saída até agora?

Tem sido uma actividade intensa e de qualidade. Devo louvar essencialmente a realização do projecto que tinha deixado desenhado na altura. Eu também vou cumprir a programação feita por Jean-François Chougnet até 2012 e é assim que tem de ser. Gostaria ainda de salientar um outro aspecto: foi muito gratificante entender que houve continuidade e aprofundamento de um conjunto de projectos, como, por exemplo, a publicação de três volumes do catálogo do Museu do Chiado, cuja edição eu coordenei. É muito importante que se perceba que antes das pessoas está a própria instituição. As transições têm de ser feitas tendo em conta todo o trabalho que foi realizado e as possibilidades que há para aprofundar e corrigir o mesmo.

Muitas vezes há a tentação de mudar tudo de acordo com a cabeça de quem chega à direcção, o que dá lugar a confusões e a rupturas constantes...

É verdade. Desde que trabalho nesta área assisti já à passagem de muitos ministros da Cultura e na maior parte das vezes vejo situações indignas em que não se dá importância às conquistas conseguidas que podem não dar frutos imediatamente, mas em que, com a sua continuidade, estes aparecem. A questão da tábua rasa é compulsiva na cultura portuguesa. Já o José-Augusto França, no final dos anos 50, escrevia um artigo importante sobre isso com o título “A lei do eterno recomeço”.

É agora director artístico do Museu Berardo, num local onde trabalhou há mais de 15 anos como conservador do Centro Cultural de Belém. Que diferenças encontra entre esses tempos e hoje?

Para além de o edifício ser o mesmo, uma parte da equipa é a mesma, mas mais completa em recursos humanos. Éramos poucos, num espaço gigantesco e com a urgência de programar a totalidade desse espaço com grande brevidade e sem uma colecção. Houve meios financeiros e tivemos um trabalho descomunal. Era um tempo diferente no contexto artístico nacional. Em meados da década de 90, havia todo um tipo de grandes alterações a decorrer nas práticas artísticas internacionais, depois de um período mais convencionalista que dominou uma parte significativa da década de 80. Havia essa emergência de dar a conhecer o que se estava a fazer e o que procuravam os novos artistas. Esses anos foram muito importantes na museologia portuguesa. Foram criadas várias instituições mais viradas para o domínio contemporâneo como a Culturgest e Serralves, reconstruiu-se o Museu do Chiado... As principais instituições emergiram nessa altura, com excepção da Fundação Calouste Gulbenkian, que já existia. Era preciso dar a conhecer o que se fazia lá fora, que ainda era um mundo distante.

Mas esse paradigma mudou bastante...

Há uma significativa diferença na circulação da informação. Hoje, as viagens e a Internet são coisas diferentes daquilo que eram há 17 anos. As coisas alteraram-se. Houve muitas exposições que criaram públicos novos, mas esse trabalho ainda está no seu começo. Quando nos comparamos a outros países europeus, se olharmos para o tecido institucional que esses países têm e há quantos anos o público visita exposições de arte moderna e contemporânea, falamos de um século. Nós não temos isso. O que se construiu nestes anos foi uma regularização das instituições, das práticas artísticas, dos públicos e da crítica, que entraram num sistema mais complexo, característico dos países europeus...

Fala da crítica, mas ela foi desaparecendo e definhando cada vez mais na comunicação social até chegar aos dias de hoje com um espaço reduzidíssimo, com revistas da especialidade a fechar e com fortes casos de censura até nas publicações generalistas que ainda possuem secções de arte. Ao mesmo tempo que as instituições se consolidam e os públicos se solidificam, o sistema falha quando se chega à crítica e à divulgação da arte contemporânea...

Nos anos 80, a crítica de arte no Expresso chegava a ocupar cinco páginas. A mesma exposição chegava a ser criticada por três pessoas diferentes. Nessa década, que teve também o seu boom na arte contemporânea, verificou-se a importância do trabalho das galerias – visto haver falta de instituições – e também do papel de alguns críticos. O curioso é que se criou um hábito em Portugal, que passou para os anos 90, em que toda a crítica de arte era feita em jornais generalistas. Além do Expresso, eram importantes os textos de António Cerveira Pinto n’O Independente. Quando este boom institucional de 1995 começou a funcionar, apareceram revistas especializadas como a Artes & Leilões. Por outro lado, fez-se um erro colossal que foi acabar com a Colóquio Artes. Isso foi terrível porque era uma revista menos submetida à emergência das situações e tinha um domínio reflexivo, com um manancial histórico e de qualidade. Apesar de tudo, as revistas de arte não conseguiram subsistir. A Artes & Leilões ficou parada e apareceu a Arte Ibérica que também não sobreviveu...

E recentemente o fim da L+Arte… As próprias instituições que lidam com a arte contemporânea não valorizam as publicações que lhes dão apoio editorial... Não existe a consciência de que a revista de arte ajuda à consolidação do mercado.

Obviamente. Isso é uma situação inquietante e estranha que me incomoda seriamente.

São complicadas as relações entre os museus, as galerias, as revistas e os próprios artistas... Todo o sistema da arte em Portugal é desconexo...

Muito desconexo... porque é muito parcelar. Muitas vezes não há a capacidade de articular diferenças. Está tudo muito territorializado de forma medieval. De qualquer modo, é extremamente inquietante que isto aconteça, mesmo no momento de maior boom artístico português, no princípio da década de 2000, quando os agentes especializados internacionais começaram a olhar para Portugal. É preciso ver também que muitos artistas começaram a ter catálogos com um texto de apresentação da sua obra, mais até do que aquilo que era habitual noutros países. Até 2005, quase todos os artistas portugueses tinham catálogos editados. No entanto, a crítica não acompanhou de forma satisfatória este movimento. A crítica, de forma geral, envelheceu muito e ficou presa a modelos de outros tempos, mas ao mesmo tempo dominando os lugares principais. Os jornais mudaram completamente a sua configuração e iniciaram um processo de dieta do trabalho da crítica. Há outra chave da equação com que estou preocupado e à qual me tenho dedicado: o ensino da arte contemporânea ao nível universitário é extremamente deficiente. Não existem especializações em arte contemporânea a partir do pós-guerra. Na Universidade de Letras, onde sou professor, estamos a construir o curso de História de Arte em que todo o século XX é pensado em termos nacionais e internacionais até à actualidade. Mas isto é muito tardio. Não tem havido no ensino superior a capacidade de perceber essa profunda ausência de conhecimentos. No entanto, é este contexto que dá conhecimento, valor e capacidade de argumentação aos críticos de arte. Muito do que aparece hoje é feito de uma forma autodidacta ou através do ensino exterior ao país. Depois, subsiste o problema da falta de público. Porque é que o público não compra revistas de arte contemporânea? É profundamente estranho.

Parece-me que a censura operada nas secções de arte, em nome do desinteresse do público, soa a desculpa para um bloqueio ideológico ao pensamento crítico...

Concordo e não creio que as coisas tenham de ser assim. A ideia comum de que uma arte difícil traz menos público tem-se revelado nefasta para o que deveria ser uma visão estratégica do país. Portugal não tem valor significativo em termos culturais no contexto europeu no que diz respeito ao século XX. A possibilidade de Portugal se afirmar internacionalmente não está em recorrer ao passado e mostrar ao mundo que este está esquecido dos feitos dos portugueses. Penso que substituir isso ao nível do entretenimento mais rasca continua a ser uma péssima opção. É fundamental perceber que o país tem de se impor estrategicamente no mundo. E para fazê-lo só tem possibilidade através dos valores emergentes. O mundo está sempre desperto para o presente e não a dormir no passado, ao contrário do que tem acontecido com Portugal. É aí que há lugar para a afirmação da cultura portuguesa e por isso há que investir fortemente nas franjas emergentes para ganhar uma posição internacional. É natural que estas propostas não sejam as mais fáceis para um público menos familiarizado. Mas se continuamos a responder a isso, contribuímos para o atraso. A ausência estratégica de investimento nos novos valores é inquietante. Estar sempre a rememorar o passado, apesar de também ser importante, não pode ocupar completamente as actividades. As instituições têm de ter um sentido proposicional e criar laços de relação, de troca, com outros congéneres que actuem como plataformas de lançamento, reconhecimento, circulação, crítica e debate sobre a prática artística actual.

O apoio à criação emergente é assim uma questão central nas suas ideias para o futuro do Museu Colecção Berardo...

O Museu Berardo tem uma grande colecção, o que foi central neste processo de transformação da arte portuguesa e do coleccionismo. É a maior colecção de arte moderna e contemporânea internacional que o país tem disponível e serviu até de exemplo para outras que vieram a aparecer posteriormente. É um bem precioso e único que tem de ser estimado, trabalhado e reflectido, o que representa um grande eixo da programação desta casa. Há muito da colecção por ver, rever, organizar. Por outro lado, não podemos alhear-nos do presente e do papel proposicional que uma instituição destas pode ter. Isso está consignado nos próprios estatutos: o apoio à internacionalização dos artistas portugueses. A minha ideia é criar um espaço próprio, dentro do museu, que funcione como uma zona para práticas emergentes e exposições organizadas com outras instituições e curadores internacionais. Depois, haverá um outro tipo de exposições temporárias, de carácter retrospectivo e complementar da colecção que podem trazer grandes nomes do passado ou do presente numa perspectiva mais monográfica.

O mercado que rodeia e manipula os artistas emergentes e a sua criação é muito pequeno e está muito sujeito a divisões. A atenção dos principais curadores e directores artísticos não se concentra nos artistas, mas sim nas galerias mais poderosas. Concorda?

Bem, eu nunca poderia concordar com uma situação dessas, mas é verdade que as tenho observado. O problema que aqui subjaz é a forma como os modelos mercantis da modernidade tomaram conta de todos os actos de significação da vida quotidiana. Mas isso é um problema profundo que só pode implicar uma reflexão crítica bastante radical.

A respeito da projecção internacional da Colecção Berardo, como pretende concretizá-la?

A colecção é objecto de vários pedidos de empréstimo e é referenciada como um museu com obras significativas e importantes para exposições internacionais. Para além disso, tem um papel importante para o país. Se não for aqui, não há outro local para ver um Magritte, um Max Ernst ou um Andy Warhol. A apresentação da colecção noutros lugares é importante, mas acho fundamental que ela sirva Portugal. A internacionalização tem mais que ver com a tipologia das exposições temporárias que podem colocar o museu num contexto internacional de reconhecimento e isso consegue-se com uma programação de qualidade, com boas ligações a outras instituições e com a capacidade de construir um diálogo com essas redes.

Até 2012 vai cumprir o programa já estabelecido pela direcção anterior, mas pode já adiantar algum projecto seu para o futuro?

Ainda é muito cedo para falar nisso. Tenho muitas ideias e projectos que gostaria de realizar e que penso terem cabimento aqui, mas não tenho nada estabelecido de uma forma estruturada e aprovada pelo conselho de administração.

Miguel Matos

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Nádia Duvall - A odisseia científica de uma artista



Nádia Duvall (Alicante, 1985) é luso-argelina e, tal como a origem geográfica da artista é uma mescla, também a arte que produz é uma fusão de diferentes disciplinas. Influenciada pelo gestualismo, os happenings, a body art e as máscaras africanas, Nádia cruza a arte e a ciência, no resgate da memória e na busca da sua própria identidade. A artista é reconhecida pela sua abordagem única, o que lhe valeu uma bolsa do programa Ciência Viva e da Direcção-Geral das Artes para desenvolver o projecto “SKIN”. Fui ao seu atelier conhecer a técnica insólita que desenvolve com o seu próprio corpo dentro de uma piscina a que chama de útero e onde nascem peles de tinta como se fossem placentas.


No domínio da arte portuguesa tu és uma artista diferente de todos pela técnica que desenvolves. Começaste por explorar a aplicação de membranas de tinta sobre telas brancas, como chegaste a mostrar numa exposição na Rock Gallery, mas neste momento estás longe desse processo...
Eu trabalho a ideia de pele. E esta pele nasce naquele útero (aponta para a piscina que ocupa parte do seu atelier). Eu entro lá para dentro, ela habita-me e sendo assim mais valia ser eu mesma a ser exposta. As pessoas que observam o meu trabalho numa tela vêm uma mancha. E o que eu quero que elas vejam é uma pele. A tela dá-lhe um esqueleto bidimensional que não me interessa mais explorar. O projecto “SKIN”, apoiado pela Direcção-Geral das Artes e pelo programa Ciência Viva é um estudo da parte química destas membranas, realizado em parte no ITQB (Instituto de Tecnologia Química e Biológica).




Voltando atrás, como é que começaste a trabalhar com estas peles?
Eu fazia muitas experiências quando ainda estudava na ESAD, nas Caldas da Rainha. Andava à procura de qualquer coisa e sempre tive um lado de cientista. Não sabia exactamente o que é que procurava, mas desde sempre que trabalhei muito as questões da identidade. Mesmo em pequena, os meus desenhos eram sobre mim. Há uns tempos, num dia de Verão, eu tinha feito uma experiência dentro de frasquinhos. Ao final do dia eu tinha mais de 50 frascos com tintas diferentes dentro de um balde. Não me apeteceu lavá-los e então cobri-os com água. No dia seguinte, quando reparei, havia uma membrana à superfície. Então quis saber o que se tinha passado ali e foram precisas umas 200 experiências até chegar lá. Apliquei as membranas em telas porque nunca me occoreu que aquele material pudesse sair desse suporte. Quando passei a fazer telas grandes, comecei a manipular as peles de tinta com objectos e apercebi-me que utilizando a água conseguia pôr as mãos por baixo delas.




Hoje trabalhas em performance dentro de água interagindo com o teu corpo na tinta...
Foi uma coisa natural. Como aquelas peles se adaptavam à minha própria pele era como se eu fosse uma espécie de camaleão. Abandonei então as telas, depois de aprofundar o meu conhecimento da forma e da cor. Mas não teria chegado onde estou se não tivesse percorrido esse caminho.




Essas membranas que parecem pele, são compostas de quê?
São só tinta. Tento fazer com que seja uma matéria o mais pura possível, feita a partir de pigmento em pó e um outro componente que eu quero retirar e é para isso que estou a investigar. Não descanso até conseguir descobrir a forma perfeita de fazê-las. Porque este material é muito frágil e eu quero fazer com que elas sejam duráveis e transportáveis.




O que te levou à candidatura para uma bolsa de carácter científico? Podes explicar as suas premissas iniciais e os resultados?
Fui trabalhar no laboratório de polímeros, colóides e surfactantes do ITQB em Oeiras. Qualquer tinta no mercado é feita à base de polímeros e a ideia era descobrir a composição química das misturas de tintas que eu tinha feito. É claro que nenhum fabricante de tintas revela a totalidade da composição das suas tintas. Por isso, foram nove meses a investigar e não conseguimos terminar. Foi complicado pois cheguei até a sujar um corredor inteiro do ITQB com pegadas minhas azuis. Por isso, como eu não sou uma cientista, achámos melhor montar um laboratório no meu atelier. Mas há muitos entraves técnicos e não basta fabricar uma tinta qualquer, porque eu trabalho dentro de água. Tem de ser uma tinta que não se dissolva nem se decomponha na água. Tem de formar uma membrana durável no tempo, elástica mas ao mesmo tempo rígida. Tem de ser adaptável ao meu corpo, mas que se consiga arrancar. E tem que ser feita a partir de pigmento. Com a tecnologia que existe hoje, é provável que não consiga tudo isto, mas vou tentar. Por isso vou voltar a pedir apoios para retomar a investigação.

terça-feira, 29 de março de 2011

Gil Maia e as construções do Imaginário


É do cruzamento de elementos aparentemente díspares que se faz nascer novos universos pictóricos. Se tomarmos esta afirmação como válida, Gil Maia (Maia, 1974) é um dos nomes recentes da arte portuguesa que a personifica. Pode parecer paradoxal, mas a junção de elementos do minimalismo com o abstraccionismo e o construtivismo em cenários góticos ou barrocos é a chave do mistério encerrado nas telas deste artista. Cada pintura de Gil Maia é uma encenação de espaços que servem de habitáculos para estruturas geométricas insólitas e aparentemente sem sentido.

Na exposição que realizou na Galeria Sete, Childhood Spaces, Gil Maia encetou um estilo mais depurado da sua pintura. Até então praticava uma pintura de miscigenação de formas, evocativa de alguma tradição da escola francesa, aludindo, ainda que subtilmente, ao universo expressionista de Júlio Pomar. Um lirismo onírico permeava as suas imagens até que em 2008, as suas formas agudizaram-se e ganharam contornos mais geométricos. A alusão à colagem e à sobreposição de formas afirmou-se de maneira diversa e a pintura tornou-se mais contundente, no sentido de ganhar dinamismo e projecção a partir da tela para o observador

De um período mais relacionado com o expressionismo abstracto, com alusões mais ou menos explícitas ao universo de Francis Bacon, Gil Maia derivou as suas imagens para uma maior depuração e limpeza de elementos. Dentro das suas telas foram crescendo estruturas arquitectónicas e os espaços onde estas habitam contribuem para uma maior tridimensionalidade. A noção de espaço como palco, como cubículo encenado, conserva a influência de Bacon, mas aqui o que está no centro não é nunca a figura humana e sim construções abstractas, elementos de constituição de objectos que não reconhecemos. Se a estes elementos juntarmos as capacidades de multiplicação geométrica, de duplicação de formas e desbobramento de superfícies (que fazem lembrar algumas obras de José Pedro Croft), temos uma mistura aparentemente paradoxal de elementos e influências que fazem desta uma série de trabalhos muito peculiar e bem conseguida.

Na exposição Constructiones in Palatio, na Galeria Pedro Serrenho, Gil Maia dá-nos conta de que a sua obra está em constante evolução e mutação. O perfeccionismo do pintor leva-o a exibir uma técnica irrepreensível. A superfície da tinta acrílica, depois de finalizada a obra, parece intocada por mão humana, o que parece paradoxal, levando em conta todas as camadas de elementos e geometrias. Seria de esperar que estas “saltassem” da tela, ou que, de alguma forma, parecessem emergir fisicamente. Mas tal não é o caso, quase deixando o observador a indagar se o que tem à sua frente não será um desenho digital, uma obra de design gráfico. Cedo se apercebe de que é mesmo pintura, sobre tela ou sobre papel, em maiores ou menores dimensões. Aliás, “borrando” as superfícies geométricas e os fundos, a fisicalidade da tinta é testemunhada por manchas esborratadas que adicionam complexidade à imagem. O efeito de enigma mantém-se sempre, como se as pinturas de Gil Maia segredassem qualquer coisa em tom tão baixo que nunca conseguiremos entender na totalidade. Enquanto tentamos entender o que se esconde por entre as formas, estas parecem viver. Aparentam girar lentamente, flutuar, pairar, respirar. Quase se sente o bater de um coração. Gil Maia trata as estruturas centrais destas telas como se fossem personagens. É como se os fundos fossem habitáculos com referências estranhamente familiares, com motivos talvez pertencentes a azulejos que podemos facilmente encontrar em casas portuguesas antigas. Desde o estilo barroco a decorações de azulejos arabizantes, há uma constante tentativa de prender o abstracto a algo que ligue o espectador por laços de memória. São paisagens interiores em tensão, frames de um movimento instável.

O momento de transformação interior que deu origem a esta nova série de trabalhos de Gil Maia deu-se aquando de uma visita do artista ao Mosteiro de Alcobaça. Aí, Gil observou a arquitectura gótica, o silêncio sepulcral do espaço e a luz que entrava em feixes de vida. Na cozinha observou as decorações em azulejos. «Este encontro com a história tornou-se especial», conta o pintor. «Especial porque o meu trabalho artístico, ou seja a pintura, passou a absorver, desde então, determinados elementos característicos do nosso património cultural, com especial relevo para a azulejaria portuguesa que ornamenta, se entrelaça e joga brilhantemente com a rudeza pétrea das arquitecturas dos nossos mosteiros, conventos, palácios... O espaço-palco de cariz mais doméstico e intimista que vinha explorando até então deu lugar a espaços-palco mais abrangentes, ou seja, os espaços que outrora foram palco da nossa história e que hoje são espaços de todos nós, ou pelo menos de todos aqueles que os procuram e visitam». As pinturas de Constructiones in Palatio são uma tentativa, também, de valorização da memória cultural e do património artístico português através de estruturas de pedra e elementos decorativos reconhecíveis que ganham novas perspectivas nestas telas e servem de panos de fundo para a cena que se passa ao centro, tendo como actor a figura abstracta, geométrica e absurdamente arquitectónica. Com isto, Gil Maia passou de uma pintura íntima, expressivamente complexa e por vezes onírica para um registo de encenação poética mais limpa, clara e despojada. Gil Maia afirma: «nos espaços que crio (espaços-palco) confluem os estilhaços da memória dos espaços reais que outrora visitei, mais os estilhaços ainda quentes do meu presente, os quais permitem imaginar a ossatura de possíveis objectos, mobiliários, resquícios de objectos domésticos ou mesmo não objectos integrados num ambiente palaciano. Os espaços dos palácios que visitamos são de todos nós. Estes, criados a partir daqueles são meus… mas devolvo-os ao público».

Miguel Matos

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Ruído - Galeria São Bento. 19 Fev-14 Mar





A profusão de símbolos visuais e elementos industriais com os quais somos bombardeados no quotidiano urbano dá origem a um cenário de ruído comunicacional. Cada um desses signos e símbolos pretende passar uma mensagem, seja ela a venda de um produto, a reivindicação de um direito, a simples assinatura de um transeunte ou uma advertência de perigo. Entre todos estes produtos da civilização, avançamos e movemo-nos com maior ou menor facilidade. Se os artistas futuristas do início do século XX proclamavam a velocidade como forma de vida e arte, hoje em dia ela não precisa de incentivos. Os artistas associados ao Nouveau Realisme fizeram do mundo uma tela e criaram imagens a partir dos seus fragmentos industriais. Após as guerras, voltou a prosperidade económica e vender tornou-se fonte de um estilo de vida baseado em comprar. A publicidade desde então reina nas ruas e nas casas, tendo a Arte Pop aproveitado esta linguagem, vampirizando-a e transformando-se na crítica a este estilo de vida: a cultura de consumo. Hoje, a profusão exacerbada do graffiti torna-o por vezes invisível no espaço urbano e perde o carácter interventivo. Originariamente linguagem artística de rua, acaba por contaminar as galerias.

A panóplia de estímulos dá lugar à entropia comunicacional. Paradoxalmente, por mais gritantes que sejam os elementos visuais à nossa volta, quanto mais os vemos menos os apreendemos, pela embriaguez visual em que entramos. Assim, poder-se-ia dizer que igual seria se as paredes que nos rodeiam fossem todas brancas e as máquinas silenciosas. Mas tal não é verdade. O nosso silêncio não é feito da ausência de som e o branco tem todas as formas e cores lá dentro. Simplesmente deixamos de olhar e escutar. Mesmo que o mapa que se nos apresenta à frente seja um plano terrorista, apenas já só vemos linhas e ruas. Da confusão, o que fica? A arte contemporânea assume ainda a influência pop. No entanto, ela deixou de usar os ícones pop com o entusiasmo optimista que caracterizava muita da arte dos anos 60, mesmo quando ela estava no seu auge transgressor. Em vez disso, a arte hoje aborda o imaginário da sociedade urbana com azedume e frivolidade melancólica1.
Esta exposição é uma selecção feita a partir do acervo Artelection e não pretende efectuar ligações entre os artistas, de origens, percursos e opções estéticas heterogéneas, senão mesmo opostas em alguns casos. Em comum, a referência à actividade incessante, à produção industrial, à comunicação de massas, à sinalética de orientação ou à decomposição destes elementos pelo uso desenfreado ou pela mera passagem do tempo. No final, talvez fique uma confusão visual, talvez se retenha um elemento particular, ou talvez mesmo nada fique.






Curadoria Miguel Matos




Artistas: Albuquerque Mendes, Esther Pizarro, Ivan Messac, Leonel Moura, Mendes de Almeida, Peter Klasen, Raymond Hains, Rui Effe, Sara Franco, Telmo Alcobia.







A Galeria São Bento fica na Rua do Machadinho, 1, Lisboa






1. LUCIE-SMITH, Edward, Movements in Art Since 1945, Thames & Hudson, Londres, 2000, p.259

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Man Ray, Jorge Martins e Julião Sarmento - Retratos de Mulheres


Entre dadaísmos, surrealismos e experimentalismos uma coisa sempre se manteve ao longo da carreira e da vida de Man Ray: o seu fascínio pelas mulheres. Mais do que isso, o fascínio pelo corpo das mulheres que teve como suas. Mas enquanto muitos artistas guardam para si a intimidade, Man Ray partilhou com o público a imagem da nudez das mulheres com que se relacionou amorosamente. Tal foi o que se passou com a célebre Kiki de Montparnasse em fotografias que ainda hoje são consideradas pornográficas. Mas a mulher que mais duradouramente foi fotografada por Man Ray foi Juliet Browner. O artista conheceu Juliet aquando do seu regresso à America em 1940, na viagem de fuga ao regime Nazi, durante a qual fez uma paragem em Lisboa. Ele tinha 50 anos, ela 28. Durante o resto da sua vida fotografou Juliet. De entre essas imagens, seleccionou o conjunto que seria denominado “The Fifty Faces of Juliet”. É este conjunto de fotografias tiradas entre 1941 e 1955, pertencentes actualmente à colecção Fondazione Marconi, que se mostra esta semana na Fundação Arpad Szènes Vieira da Vilva.
O projecto do livro The Fifty Faces of Juliet foi concebido por Man Ray no início dos anos 50 do século XX em homenagem a Juliet, e consiste numa selecção de fotografias tiradas em Los Angeles, onde Man Ray aplicou várias técnicas e estilos, intervencionadas, coloridas e de dimensões variadas. Man Ray transformava o corpo das suas mulheres em objectos de veneração, nas suas particularidades e nas propriedades mágicas por ele descobertas e que seriam as causas do seu enfeitiçamento. Nesta lógica, a Juliet nua que vemos nestas imagens não será nunca a Juliet que Man Ray observava. Como dizia John Berger no livro Modos de Ver (Ed. Gustavo Gili) “Ser-se nu é ser-se visto nu por outros e, no entanto, não se ser reconhecido por aquilo que se é. O corpo nu, para se tornar um nu, tem de ser visto por alguém enquanto objecto. (A visão dele enquanto objecto estimula o seu uso como objecto.) A nudez revela-se a si própria. O nu é posto à mostra.” Mas o nu não é o único modo de apresentação de Juliet perante a câmara fotográfica. Como reconhecido fotógrafo de moda que foi, Man Ray, evidenciava um gosto pelo glamour hollywoodesco e pelas poses belas e clássicas.
Mas a exposição “Retratos de Mulheres” não conta só com Man Ray. É um triângulo em que os outros lados são contrapontos com um centro em comum: o fascínio pelo ser feminino. Jorge Martins e Julião Sarmento são aqui convocados através do seu olhar sobre a mulher. Jorge Martins apresenta trabalhos feitos entre 1964 e 1973, em Paris, a que chamou Eros cromático. Algumas fotografias foram realizadas no atelier de Vieira da Silva, que a pintora cedia aos artistas que lhe eram próximos. No caso de Jorge Martins, a mulher é fotografada e transformada em imagem pictórica pela intervenção pintada. Um corpo passa a ser uma estrutura de formas e volumes que insinuam um chamamento pela cor, pelo desenho. É nessa manipulação que Jorge martins se aproxima de Man Ray, ao passo que Julião Sarmento já se situa noutro ambiente de fascínio. Nas suas fotografias, que tira desde a década de 60, Julião revela uma admiração pela beleza feminina e pelas idiossincrasias de cada uma das portadoras desse corpo de desejo. Talvez mais fetichista, menos pictórico, mais voyeur, menos sensual, Sarmento apresenta uma abordagem crua e espontânea, apesar de parecer encenar aquilo que se assemelha a frames de um filme.