terça-feira, 29 de março de 2011

Gil Maia e as construções do Imaginário


É do cruzamento de elementos aparentemente díspares que se faz nascer novos universos pictóricos. Se tomarmos esta afirmação como válida, Gil Maia (Maia, 1974) é um dos nomes recentes da arte portuguesa que a personifica. Pode parecer paradoxal, mas a junção de elementos do minimalismo com o abstraccionismo e o construtivismo em cenários góticos ou barrocos é a chave do mistério encerrado nas telas deste artista. Cada pintura de Gil Maia é uma encenação de espaços que servem de habitáculos para estruturas geométricas insólitas e aparentemente sem sentido.

Na exposição que realizou na Galeria Sete, Childhood Spaces, Gil Maia encetou um estilo mais depurado da sua pintura. Até então praticava uma pintura de miscigenação de formas, evocativa de alguma tradição da escola francesa, aludindo, ainda que subtilmente, ao universo expressionista de Júlio Pomar. Um lirismo onírico permeava as suas imagens até que em 2008, as suas formas agudizaram-se e ganharam contornos mais geométricos. A alusão à colagem e à sobreposição de formas afirmou-se de maneira diversa e a pintura tornou-se mais contundente, no sentido de ganhar dinamismo e projecção a partir da tela para o observador

De um período mais relacionado com o expressionismo abstracto, com alusões mais ou menos explícitas ao universo de Francis Bacon, Gil Maia derivou as suas imagens para uma maior depuração e limpeza de elementos. Dentro das suas telas foram crescendo estruturas arquitectónicas e os espaços onde estas habitam contribuem para uma maior tridimensionalidade. A noção de espaço como palco, como cubículo encenado, conserva a influência de Bacon, mas aqui o que está no centro não é nunca a figura humana e sim construções abstractas, elementos de constituição de objectos que não reconhecemos. Se a estes elementos juntarmos as capacidades de multiplicação geométrica, de duplicação de formas e desbobramento de superfícies (que fazem lembrar algumas obras de José Pedro Croft), temos uma mistura aparentemente paradoxal de elementos e influências que fazem desta uma série de trabalhos muito peculiar e bem conseguida.

Na exposição Constructiones in Palatio, na Galeria Pedro Serrenho, Gil Maia dá-nos conta de que a sua obra está em constante evolução e mutação. O perfeccionismo do pintor leva-o a exibir uma técnica irrepreensível. A superfície da tinta acrílica, depois de finalizada a obra, parece intocada por mão humana, o que parece paradoxal, levando em conta todas as camadas de elementos e geometrias. Seria de esperar que estas “saltassem” da tela, ou que, de alguma forma, parecessem emergir fisicamente. Mas tal não é o caso, quase deixando o observador a indagar se o que tem à sua frente não será um desenho digital, uma obra de design gráfico. Cedo se apercebe de que é mesmo pintura, sobre tela ou sobre papel, em maiores ou menores dimensões. Aliás, “borrando” as superfícies geométricas e os fundos, a fisicalidade da tinta é testemunhada por manchas esborratadas que adicionam complexidade à imagem. O efeito de enigma mantém-se sempre, como se as pinturas de Gil Maia segredassem qualquer coisa em tom tão baixo que nunca conseguiremos entender na totalidade. Enquanto tentamos entender o que se esconde por entre as formas, estas parecem viver. Aparentam girar lentamente, flutuar, pairar, respirar. Quase se sente o bater de um coração. Gil Maia trata as estruturas centrais destas telas como se fossem personagens. É como se os fundos fossem habitáculos com referências estranhamente familiares, com motivos talvez pertencentes a azulejos que podemos facilmente encontrar em casas portuguesas antigas. Desde o estilo barroco a decorações de azulejos arabizantes, há uma constante tentativa de prender o abstracto a algo que ligue o espectador por laços de memória. São paisagens interiores em tensão, frames de um movimento instável.

O momento de transformação interior que deu origem a esta nova série de trabalhos de Gil Maia deu-se aquando de uma visita do artista ao Mosteiro de Alcobaça. Aí, Gil observou a arquitectura gótica, o silêncio sepulcral do espaço e a luz que entrava em feixes de vida. Na cozinha observou as decorações em azulejos. «Este encontro com a história tornou-se especial», conta o pintor. «Especial porque o meu trabalho artístico, ou seja a pintura, passou a absorver, desde então, determinados elementos característicos do nosso património cultural, com especial relevo para a azulejaria portuguesa que ornamenta, se entrelaça e joga brilhantemente com a rudeza pétrea das arquitecturas dos nossos mosteiros, conventos, palácios... O espaço-palco de cariz mais doméstico e intimista que vinha explorando até então deu lugar a espaços-palco mais abrangentes, ou seja, os espaços que outrora foram palco da nossa história e que hoje são espaços de todos nós, ou pelo menos de todos aqueles que os procuram e visitam». As pinturas de Constructiones in Palatio são uma tentativa, também, de valorização da memória cultural e do património artístico português através de estruturas de pedra e elementos decorativos reconhecíveis que ganham novas perspectivas nestas telas e servem de panos de fundo para a cena que se passa ao centro, tendo como actor a figura abstracta, geométrica e absurdamente arquitectónica. Com isto, Gil Maia passou de uma pintura íntima, expressivamente complexa e por vezes onírica para um registo de encenação poética mais limpa, clara e despojada. Gil Maia afirma: «nos espaços que crio (espaços-palco) confluem os estilhaços da memória dos espaços reais que outrora visitei, mais os estilhaços ainda quentes do meu presente, os quais permitem imaginar a ossatura de possíveis objectos, mobiliários, resquícios de objectos domésticos ou mesmo não objectos integrados num ambiente palaciano. Os espaços dos palácios que visitamos são de todos nós. Estes, criados a partir daqueles são meus… mas devolvo-os ao público».

Miguel Matos

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