quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Raquel Feliciano - A luz revela-se às escuras

Miguel Matos entregou-se à contemplação do cosmos na exposição de Raquel Feliciano na Galeria Alecrim 50.

Arredondadas sombras negras revelam pontos de luz, como estrelas. Ao lado, fotografias escuras da superfície do mar remetem para a mesma ideia. É a junção de elementos opostos, o princípio que levou Raquel Feliciano a apresentar estes trabalhos. A artista desenha, de forma quase invisível, com uma solução de sais de prata sobre papel, que depois expõe à luz, luz essa que lhe revela a imagem final.

O desenho às cegas serve como metáfora para a criação, mito da génese cósmica evocada nas imagens de escuridão, salpicadas de pontos brancos. Possíveis constelações? Por estas imagens passa também o processo de fotograma. Raquel interpõe, entre a luz e o papel, uma película manchada a tinta-da-china que lhe marca os tais pontos brancos.

O bloquear da luz que nos devolve posteriormente a luz das estrelas. São técnicas inspiradas em processos fotográficos antigos e que, retrabalhados de forma experimental, dão a estas obras o seu carácter inovador, fresco, de surpresa e mistério. No século XIX, inglês William Henry Fox Talbot criava desenhos fotográficos com plantas sobre papel foto-sensível. É a partir destes primórdios da fotografia artística que Raquel Feliciano baralha os dados e apresenta estas imagens poéticas, que convidam à contemplação.

“Quando era mais nova, tinha um grande fascínio pela astronomia e pela cosmologia. O mistério da formação das estrelas e das galáxias sempre me interessou”, revela Raquel Feliciano. “Recentemente voltei a ler coisas no âmbito da física para fazer relações com o meu trabalho. Interessa-me explorar as relações entre o micro e o macro, as analogias entre o muito grande e o muito pequeno, entre o homem e aquilo que o transcende em escala.”

Este é um trabalho sobre a luz e a escuridão e de como elas se podem unir. A luz só existe em confronto com a escuridão e é nestas fotografias e desenhos-fotograma que ela se revela.

De forma mais abstracta numas obras, mais figurativa noutras. Nas fotografias que ladeiam os desenhos, o lado evocativo e metafórico da imagem destaca-se por ser mais evidente. São imagens de água pontilhadas por focos de luz que mais não são do que o reflexo do sol no mar ou no rio. Esses pontos originados pelo reflexo de luzes fazem mais uma vez lembrar corpos celestes. “São estrelas do mar”, comenta Raquel com um sorriso. “Às vezes fotografo de forma muito intuitiva, depois apercebo-me de que existe alguma coisa substancial e decido explorá-la. Aqui há o casamento do céu e da terra.”

Na última edição da exposição “7 Artistas ao 10 Mês”, na Fundação Calouste Gulbenkian, Raquel figurou entre os artistas seleccionados. Aí apresentou desenhos com montanhas e aves de rapina, que simbolizavam a junção de dois elementos essenciais: o ar e a terra. Nesta exposição, conseguiu juntar os outros dois: a água (do mar) e o fogo (das estrelas).

Alguns artistas começam, neste momento, a regressar a uma vertente da arte que privilegia de novo a contemplação, tão desprezada que tem estado nos últimos anos. Raquel Feliciano re-aproxima a arte desta introspecção, desta paragem para reflexão: “Acho que isso é um traço de carácter. Sou uma pessoa contemplativa e bastante sensível à beleza e à natureza, quer visualmente quer intelectualmente. Penso nas ligações entre a natureza e a filosofia, até mesmo no campo da teologia. Para mim é tudo a mesma coisa e a arte entra nessa interrogação sobre a relação do Homem com o Cosmos.”

Esta pertinência da reflexão junta-se a um lado técnico acentuado que reforça também o mistério intrigante das imagens. Na arte que Raquel Feliciano produz, tem de existir sempre algum encantamento. E isso pode surgir pela beleza, pelo assombramento. “Não acho que toda a arte tenha de ser necessariamente bela e harmoniosa, mas em geral procuro criar obras que transmitam silêncio e contemplação. No entanto, isso tem estado em desuso e como tal sentia-me fora do meu tempo. Lembro-me de quando eu estava a estudar, aquilo que eu queria fazer parecia desajustado. No fundo, acho que a beleza é um canal de comunicação com o espectador que faz pensar e permite tocar pessoas diferentes de maneiras diferentes”. As imagens de Raquel Feliciano não são buracos negros, mas têm o poder de sugar a nossa atenção por alguns instantes, ao ponto de nada mais existir do que o nosso cosmos interior. E é tudo um efeito de luz.

A exposição de Raquel Feliciano está patente na Galeria Alecrim 50 (Rua do Alecrim, 48/59) até 16 de Janeiro. Aberta de segunda a sexta das 11.00 às 19.00. Sábado das 11.00 às 13.30 e das 16.00 às 19.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 22 de Dezembro de 2009


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Lourdes Castro - Luz de Presença / Sombra de Ausência


por Miguel Matos


No mito da origem da arte pictórica descrito por Plínio, o Velho, os gregos começaram a guardar imagens dos seus entes queridos através do delineamento dos contornos das suas sombras. Uma jovem, cujo amado iria partir, “segurou” a sua memória ao delimitar na parede de uma gruta os traços do seu rosto. Tem início assim o desenho e a pintura e é neste espírito que podemos começar a entender a obra de Lourdes Castro (1930).


A sombra é entendida como realidade e ilusão. Comporta em si a verdade e a mentira. É registo de presença mas está presente de forma etérea. Está associada ao domínio da metafísica, do obscuro. É ao mesmo tempo imagem em si e representação de outra imagem. Embora seja inseparável da figura que a produz, ela é captada e tornada permanente por Lourdes Castro, como que querendo agarrar a passagem fugaz das coisas pelo mundo.


A sombra como testemunha de uma presença e reconstrutora dessa ausência... O fascínio de Lourdes Castro pela sombra aponta sempre no sentido de tornar presente aquilo que está ausente. Ao oferecer ao observador não mais do que a linha de contorno, a artista apresenta os dados essenciais para a apreensão do sujeito da obra. Acaba, assim, por convocar a imaginação e as informações prévias de quem observa, enriquecendo assim a obra com factores que dependem de outrém. «Assim, o desenho concretiza um princípio de economia ou de simplicidade que se encontra subjacente à atitude de Lourdes Castro perante a arte e a vida», analisa Miguel Wandschneider, no livro Lourdes Castro, À Sombra.


Em 1957, Lourdes Castro e René Bertholo deixam para trás um Portugal vazio de ideias e possibilidades criativas. Seguem em direcção a Munique, mas acabam por se estabelecerem em Paris no ano seguinte, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Juntos fundam a mítica revista artística KWY. Um projecto artesanal e modesto, de amigos e cumplicidades visuais sem orientações pré-definidas mas que acabou por servir de veículo de trabalho e projecção para os seus colaboradores regulares – Christo, Gonçalo Duarte, Escada, Costa Pinheiro, João Vieira e Jan Voss. Após um período abstraccionista que acompanha as exposições colectivas do grupo KWY, e partindo de algumas premissas do Nouveau Réalisme, a artista interessa-se pela sombra como relação memorial da representação da permanência do objecto e a sua relação com a luz, problematizada em diversos processos experimentais.


Entre o estar e o não estar, eis o território incerto em que se move Lourdes Castro. José-Augusto França dizia nos anos 60: «O desenho dos contornos da sombra recorda o objecto e diz que ele já não está: é sua memória e sua negação. Entre uma e outra, Lourdes Castro fala de ausência propondo uma ligação extremamente inquietante» (Cem Exposições, ed. INCM). A captação de traços e vestígios do quotidiano em Lourdes Castro começa com as assemblagens dentro de caixas – montagens e colagens de objectos banais, de uso no dia-a-dia, pintados de alumínio. As primeiras sombras projectadas começou a fazê-las em 1962, já em serigrafia, técnica que não mais abandonou e sempre aplicou aos mais diversos suportes. A KWY era ela própria uma revista inteiramente produzida em serigrafia.

São pequenos animais, talvez bonecos. Elefantes, burros, patos. São pequenos nadas como cabides, fivelas e coisas que nao reconhecemos pelo contorno, apenas adivinhamos. Este é o início de uma exploração sobre papel quase obsessiva mas tranquila. Um caminho que se derramou depois sobre telas, placas recortadas de plexiglas e películas de rodhoid (materiais inovadores para a época dos sessentas). Todos eles suportes que aludem ao conceito de telas. São projecções planas sobre ecrãs e evocam o assunto da memória e da duplicidade. Um caminho que a artista tem percorrido de forma solitária, sem se inserir claramente em correntes estéticas estabelecidas.


Sempre registando o que as sombras lhe sugeriam, Lourdes Castro cria quadros-objectos quase esculturas de parede que sobrepoem placas de plexiglas de diferentes cores, pintadas ou impressas em serigrafia. Estas placas, translúcidas e tão imateriais como as próprias sombras, ao serem montadas e acumuladas criam novas sombras e silhuetas que se interpenetram. Fundem-se com a parede onde se instalam e criam um jogo tridimensional que activa o dispositivo óptico. Acompanhando todas estas “novidades” técnicas, uma das àreas de trabalho mais simples de Lourdes Castro é também uma das mais interessantes: o desenho. «A linha, tal como ela existe no desenho de Lourdes Castro, não é um invólucro, ela não dá “corpo” a um saco, uma caixa, um volume que se trataria de encher de uma vez por todas», diz Sylvain Lecombe no livro À Sombra. São exemplos dessa concepção de desenho as malas, pastas ou outros contentores/recipientes e os desenhos dos seus conteúdos quotidianos, feitos com traços de sombras que se interpenetram. Limites que se transbordam e cruzam, aumentando a complexidade de algo em si muito simples. «O desenho de Lourdes Castro não descreve. Se parte da observação e mesmo da integração do real, não visa portanto à sua banal reprodução, é outra coisa que um duplicado do real, que um espelho onde ele se reflectiria», analisa Sylvain Lecombe. «Ele é para o real o que a sombra é para as pessoas e os objectos: essa parte da realidade impalpável, distorcida, elástica, imperceptivel, fantasmagórica e fugitiva, de que a linha e os espaços que ela desdobra em torno dela são, em matéria de desenho, o equivalente mais perfeito».

No final dos anos sessenta, o interesse pelo contorno da sombra deitou-se. Passou da vertical de uma parede para a horizontal de uma cama. São os lençóis bordados com sombras de pessoas deitadas. Bordados pela própria artista, foram feitos para dormir, mas com a possibilidade de se pendurarem na parede, transformando-se assim em outro objecto com outro uso. Mas, como diz Lourdes, estas sombras são de pessoas deitadas. «Deitadas na cama em cima de um lençol, claro. E lençóis naturamente são bordados». A evolução da trajectória passa nos anos setenta para um registo performático, com o Teatro de Sombras, em colaboração com Manuel Zimbro. Esta performance, apresentada até 1985 realçava o carácter imaterial e efémero das sombras que então se moviam na superfície do pano onde eram projectadas. A artista aparecia em cena, como num espectáculo de sombras chinesas. Executava os movimentos e gestos do quotidiano, as acções mais banais, imprimindo poesia nestes rituais que todos cumprem mas ninguém vê. A partir desta fase, o trabalho de Lourdes Castro torna-se cada vez mais depurado, concentrando-se no desenho. Depois dos lençóis bordados, passa a concentrar-se mais na linha da sombra do que no seu suporte. A sombra é assim reduzida ao essencial.


A presença antropomórfica vai desaparecendo gradualmente das peças de Lourdes Castro a partir dos anos setenta. Em Grande Herbário de Sombras (1972), cria um inventário de cem espécies vegetais presentes na ilha da Madeira, sua terra natal. Fá-lo registando as suas sombras sobre papel heliográfico exposto à luz do sol. Antes de passar quase exclusivamente ao desenho sobre papel, ainda faz experiências com azulejos e tapeçarias, sempre obedecendo ao seu leitmotiv. A obsessão tranquila de espírito zen desenvolve-se com Sombras à Volta de Um Centro: a magnífica série de desenhos que quase encerra a actividade de Lourdes Castro (depois desta, a artista raramente faz uma aparição pública, apesar de ter participado na Bienal de São Paulo em conjunto com Francisco Tropa, em 1998, com uma peça que esteve depois exposta no Museu do Chiado). Em Sombras à Volta de um Centro, Lourdes Castro regressa ao lado primordial do desenho de contorno. Ela recolhe flores que dispõe em recipientes, constituindo já este criar de um ramo na sua jarra, uma atitude de estudo prévio. Após isso, ela coloca a composição em cima de um papel, expõe o conjunto à luz e depois dedica-se a seguir as sombras ditadas pela luz e pelas flores. Tudo parte da base do recipiente, que quase sempre é redonda mas por vezes assume outras formas. A partir deste centro, como um Sol, disparam harmoniosamente as sombras das flores, como raios, como fractais que pelas técnicas utilizadas assumem características mais ou menos figurativas. «Aqui, o arranjo das flores nessa jarra – em todas as jarras – é feito, sobretudo, com a atenção que escuta o que as flores e a jarra lhe dizem, diz ela. Os gestos são feitos sem brusquidão, com vagar, com ponderado e cuidadoso afecto, dir-se-ia que manuseia o mundo», escreve Manuel Zimbro, no livro com o mesmo nome desta série, publicado pela Assírio&Alvim. Remata este autor: «A Lourdes “das sombras”, que antes banhava tudo de alumínio, objectos colados e compostos segundo essa mesma escuta, a partir de uma dada altura, diluindo-lhes a densidade, torna toda a representação definitivamente plana. E planificando-a, dando menos fazer ao fazer, simplifica-a».


Lourdes Castro abandonou o quase vão corre corre da arte contemporânea e vive na sua ilha, a da Madeira. Após um longo período de silêncio, podemos finalmente observar as suas obras desde os anos 50 aos 70, na exposição patente no Centro de Arte Manuel de Brito, até 17 de Janeiro. (Palácio Anjos, Alameda Hermano Patrone, Algés).


Lourdes Castro descreve os seus Lençóis de Sombras, em 1969


«São de facto lençóis bordados com contornos de sombras de pessoas deitadas.

Tive esta ideia há muito tempo, a de fazer sombras de pessoas deitadas. Deitadas, deitadas na cama em cima de um lençol, claro. E lençóis naturamente são bordados.

Fiz os primeiros dois na Madeira, durante o Verão de 68.

A surpresa do desenho de gente deitada, sombras projectadas na horizontal e não na vertical (como eu até aqui costumava quase sempre fazer) tornou-se cada vez mais importante, e agora só faço lençóis.

Faço-os eu própria porque realmente tenho prazer em bordá-los; é muito sossegado e tranquilizante; uma espécie de concentração e meditação. Às vezes ouço música e muitas vezes não penso em nada.

Porque é que se deve dependurar tudo nas paredes.

Os japoneses desenrolam os kakemonos só em ocasiões especiais.

Um livro tem que ser aberto.

Os meus lençóis, são para dormir em cima deles.

Se se põe um destes lençóis na parede, as sombras parece que voam, também não me desagrada.

Depois de ter retirado as sombras da sombra de lhes ter dado cor e transparência, uma vida independente, estendo-as.»

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Jóias a Quatro Mãos



Eduardo Nery desenhou as“Linhas Paralelas” que Alexandra Corte-Real transformou em jóias. Miguel Matos mostra-lhe o resultado.

Eduardo Nery, mestre da optical art portuguesa, tem pautado a sua carreira pelo recurso às mais diversas técnicas e suportes. Trabalha não só em desenho e pintura sobre tela, como em cerâmica, escultura, azulejaria e grandes projectos de arte pública. As suas linhas dinâmicas e coloridas, que assumem frequentemente dimensões quase monumentais (nos murais que tem feito, por exemplo), foram agora encolhidas milimetricamente à escala de um dedo, uma orelha, um pulso. Os desenhos de Eduardo Nery, transformados pela joalheira Alexandra Corte-Real são obras pensadas para uma função específica, articulando as linguagens dos dois artistas.

Para quem chega a este parágrafo com o sobrolho levantado, que o baixe pois para Nery, a joalharia é um assunto sério e que há muito lhe interessa, uma vez que se considera um artista e ao mesmo tempo um designer. Mas foi com a produção da taça para a Vista Alegre, no ano passado, que ganhou ânimo para acreditar que era capaz de fazer jóias também. “Em ambos os casos, estou a usar o dourado, cor que tenho usado desde os anos 70. Tenho um fascínio muito grande pelo ouro, pelo seu sentido metafísico e simbólico. A minha última exposição de guaches tinha imensas obras em que usava o ouro e estas jóias vêm no seguimento dessas duas experiências: os guaches e a taça da Vista Alegre.”

“Ocorreu-me a ideia e convidei o Eduardo”, diz Alexandra Corte-Real sobre como surgiu tudo isto. “Ele ficou a olhar para mim, pensou e depois aceitou. Para ele foi um desafio porque representou entrar numa área diferente. Para mim também foi desafiante porque tenho por hábito desenvolver o meu trabalho do princípio ao fim. Se ele aceitou que eu fosse intervir, eu tive de aceitar que a ideia-base seria dele.” O brilho dourado, que desde há décadas sublinha a obra de Nery, aparece agora sob a forma de jóia. A partir do convite de Alexandra, criou formas que bifurcam: dão lugar a objectos em prata e em prata dourada. “Estes materiais levaram-me a criar cores que fossem contrastantes com eles e ao mesmo tempo os integrem. As obras voltam à questão inicial das formas e do movimento na optical art. Ao desenhar, eu já pensava que esse desenho resultaria num pendente, em brincos ou botões de punho. No entanto, quem tomou essas decisões foi a Alexandra, pelo seu conhecimento da escala e do grau de dificuldade técnica”, explica o artista.

Não se trata aqui de um trabalho de colaboração, mas sim de co-autoria. “A Alexandra teve tanta autonomia no seu campo como eu tive a desenhar”, diz Eduardo Nery. No fundo, este projecto foi um grande desafio duplamente sentido. Para Nery, foi uma questão de dimensões, ao passar de uma escala de pintura para objectos tão pequenos. Por outro lado, para Alexandra Corte-Real, o desafio de transformar um desenho numa jóia, não fazendo apenas ajustes ou intervenções funcionais mas sim prolongando linhas e projectando as formas para que continuasse a haver o mesmo equilíbrio do trabalho original. “Este trabalho não é apenas uma adaptação”, explica a joalheira. “Não me limitei a acrescentar uma função, mas desenvolvi a peça.”

A jóia é, por definição, uma obra que se relaciona directamente com o corpo. Que preocupações teve Eduardo Nery ao desenhar para tal finalidade? “A única preocupação que tive foi a de não fazer peças agressivas. Ficou de lado uma ideia que tive para um colar. Nesse desenho eu não consegui encontrar as formas adequadas, uma vez que os seus ângulos se podiam espetar no pescoço. De resto, foi apenas uma questão de escala.”

Entre Nery e Corte-Real, “Linhas Paralelas” é uma exposição híbrida, de autoria mista. Joalharia de autor para quem não a considera como manifestação artística. Conhecendo o gosto da ASAE em apreender jóias de autor como fez em Serralves, reza-se para que a exposição chegue intacta ao seu último dia na Ermida de Belém.

“Linhas Paralelas” está patente na Ermida da Nossa Senhora da Conceição (Travessa do Marta Pinto, 21) de 5 a 20 de Dezembro. Aberta de terça a sexta das 11.00 às 17.00 (encerra para almoço das 13.00 às 14.00). Sábado e domingo das 14.00 às 18.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 1 de Dezembro de 2009

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Cruzeiro Seixas - Lá onde o Negro Sémen do Mundo se Gera no mais Profundo dos Vulcões


Por Miguel Matos

«Se as profundezas do nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo o interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controlo da nossa razão», dizia André Breton em 1924 no seu Manifesto do Surrealismo. Segundo o fundador da corrente, a exploração dos meandros do sonho e da realidade inconsciente era de importância extrema para a arte e para a vida, duas dimensões que mais nenhum programa artístico soube conjugar com tanta eficácia como o surrealismo.

O estado de vigília-a realidade. O estado inconsciente – o sonho! Breton acreditava na resolução destes dois estados contraditórios numa espécie de realidade absoluta a que chamou de surrealidade. Dizia ele: «(...) porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por vezes à realidade, seja este valor de certeza em si mesma, que, em seu tempo, não está exposta a meu desmentido? Porque não haveria eu de esperar do indício do sonho, ele também, resolução de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas as mesmas num caso como no outro, e no sonho elas já estão? O sonho terá menos peso de sanções que o resto? Envelheço, e mais que esta realidade à qual penso me adstringir, é talvez o sonho, a indiferença que lhe dedico, que me faz envelhecer».

Se começou por ler estas páginas pelo seu título, saiba que fez bem. Não só porque são as letras maiores da página, como porque resumem o espírito da obra de Cruzeiro Seixas. De entre o grupo de artistas que participaram na primeira Exposição dos Surrealistas em Lisboa no ano de 1949, Artur do Cruzeiro Seixas é o grande representante-sobrevivente, embora também ainda se encontre entre os viventes e activos o pintor Carlos Calvet. Seixas, aos 88 anos continua a defender que a arte «sempre se deixou levar pelo mundo onírico e sobre ele trabalhou toda a vida. Ainda é possível sonhar? Eu acho que é a única salvação. O sonho acordado é das coisas mais bonitas que o homem tem. É tão belo como a vida sexual... São coisas das quais podemos pôr e dispôr à nossa vontade. É a liberdade!»

Uma chávena impossível de ser pegada – é o Objecto do Quotidiano, peça icónica que Cruzeiro Seixas criou em 1954. Uma chávena com a asa por dentro como a que temos nós e que por si é toldada de acção. A Mão (1960) - Uma luva... Uma mão que arranha e que escreve como quem arranha. Uma luva que acaricia e que denuncia. Que pica e que encanta. Como descreveu Emília Ferreira (CAMJAP). «Um dos objectos escultóricos realizados na década de 60, esta peça perturbadora, com unhas feitas de aparos de caneta, instaura uma relação simbólica entre criação e destruição». Em outro objecto, O Mar Português, uma criatura nómada aprisionada numa gaiola de tradições e crenças. É a impossibilidade que compõe o discurso de Cruzeiro Seixas tanto nos objectos como nos seus desenhos oníricos. O dramatismo de uma alma lírica, de uma personalidade solitária. Não é o humor que compõe seja as esculturas seja os desenhos ou as pinturas de Cruzeiro Seixas. É de uma solidão interior, de histórias de encontros e desencontros. De acontecimentos reais com reverberações imaginárias. Do corpo que se liga e desliga com outros, de metamorfoses ejaculatórias ou dolorosas, mas sempre exacerbadas em traços e manchas precisas sobre papel. «Há uma confusão no que diz respeito à ideia que as pessoas fazem de mim», diz Artur. «Vivo metido no meu buraco e não sou muito sociável. As pessoas falam do humor do Cruzeiro Seixas. Isso é uma coisa que me faz sorrir pois eu não tenho humor nenhum. O que eu faço é profundamente dramático. Eu sou um tipo com um feitio dramático, o que não quer dizer que não goste de ir para a cama acompanhado, por exemplo. Mas realmente os desenhos que faço são dramáticos, é aí que eu abro a minha janela e deito aí as minhas coisas. Há grandes críticos que vêem humor nas minhas obras mas eu acho que isso é um grande desentendimento».



Contra tudo e todos, na actualidade o surrealismo existe, resiste e contamina todas as áreas visuais, desde o cinema (veja-se o caso de David Lynch), à publicidade (como nos anúncios da marca de jeans Diesel), na fotografia (pense-se em David LaChapelle) e nas artes plásticas, Ray Caesar e Mark Ryden poderiam ser associados ao que seria um neo-surrealismo. Em Portugal, e para referir um jovem nome, Cruzeiro Seixas salienta a originalidade dos objectos domésticos forrados a veludo de Eva Alves. No entanto, este género tardio de surrealismo não possui qualquer conteúdo ético, ao contrário do original pensado por Breton e continuado aqui por Seixas. O surrealismo, se é que ele existe hoje, não se assume como tal e constitui apenas uma estética, uma inclinação visual sem pretensões a um programa ideológico. Talvez uma apropriação de um imaginário, uma tradição onírica que nos veio por mãos de Dalí, Chirico ou Magritte, três exemplos máximos e divergentes dentro de uma mesma área abrangente e indefinida por natureza. «Hoje quem quiser seguir o surrealismo de acordo com todos os preceitos que André Breton defendia está lixado... Vê-se às aranhas e fará muitos disparates», diz Cruzeiro Seixas. «Se o Breton voltasse cá provavelmente seria o primeiro a mudar muitas coisas do seu programa inicial. Não faz sentido o surrealismo ortodoxo hoje em dia. O que é preciso é largar a ideia original, acho eu. Eu até nem seria capaz de ser ortodoxo em coisa nenhuma porque a minha luta consiste em romper as barreiras para levar as coisas mais adiante. Este surrealismo de hoje, que anda por aí, está muito mal. Eu correspondo-me com surrealistas de todo o mundo e acho que esta gente nova já não tem nada de surrealista. Estão a fazer exposições e a ganhar dinheiro como qualquer pintor de arte e servem-se do surrealismo como uma estética. Ora acontece que o surrealismo não é uma estética, é uma ética. Não conheço outra alternativa, outra ideia com igual força. O surrealismo foi e é para mim uma ideia muito forte, um mito com muitas possibilidades de nos aguentar neste mundo incrível. Há quem diga que está esgotado mas eu acho que não. No entanto, a maioria das pessoas ligadas à arte está a repetir muitas das coisas inventadas pelos surrealistas nos anos vinte, embora sem revelarem a proveniência da sua inspiração. Isso eu acho muito triste. No outro dia descobri uma série de objectos numa galeria de Lisboa. Eram objectos interessantes que poderíamos chamar de surrealistas mas a pessoa que os fez não tem consciência disso ou não quer ter».

Na residência onde vive, no Estoril, rodeado de objectos de amigos e obras por si desenhadas, despontou-nos a conversa sem rumo nem destino com a companhia de um cadavre exquis seu e de Paula Rego na parede, múltiplas recordações da sua vida em África. Em frente, uma varanda povoada de esculturas suas e ao fundo o mar como companhia...

E como ética, o surrealismo faz sentido hoje em dia?
Há muitos campos em que poderia fazer sentido, mas já não seria uma questão de cumprir as rígidas regras morais de Breton. Por exemplo, ele estava rodeado de homossexuais, mas fingia que não dava por isso e não os aceitava.

Pegando nesse assunto... As diferenças entre a Lisboa de hoje e a de outros tempos são espantosas. Como era ser homossexual em Lisboa?
Para mim foi muito fácil e gostei muito, quando era novo. Ao mesmo tempo, tudo era proibido neste país, com a moralidade do Salazar. Mas havia grandes suspeitas de homossexualidade em relação a Salazar e ao Cardeal Patriarca, que era uma grande dama. Parecia uma senhora na voz e no seu encanto. Mas antigamente era muito mais fácil e mais giro. As pessoas olhavam uma para a outra e logo daí a pouco estavam na cama. Agora não, é preciso ir à noite, para os bares. É quase uma coisa profissional. Tudo evolui tanto em tão pouco tempo... e daí ser tão difícil fazer a História. Porque do alto dos meus 88 anos já vejo a cada momento a história do surrealismo, a história da história, a história do país. Tudo completamente deturpado e as pessoas acreditam. Nunca se sabe onde está a verdade...

Muitas vezes ela está à nossa frente e nós não a vemos...
Se calhar ela nasceu para não ser vista. Tem um véu, como as estátuas das mulheres...

Nas palavras de Rui-Mário Gonçalves, «Cruzeiro Seixas instaura um campo magnético de comunicabilidade intersubjectiva. Há nos seus desenhos celebrações de memórias e juramentos de amor. Há erotismo. Nunca há pornografia.» A sua obra tem o erotismo muito associado. Mas é um erotismo muito subtil. Parece omnipresente mas sempre velado. Não é muito óbvio...
Pois não, eu nunca tinha necessidade disso porque ia para a cama com muita gente... Pode-se falar de erotismo sem falar de surrealismo? Ninguém vai pedir referência válida sobre tal tema ao Neo-realismo, ou à Igreja Católica. O erotismo perdeu o seu encanto, em grande parte, por ser livre. Antigamente era a dificuldade que lhe acrescentava interesse. Era uma fuga às pressões políticas. Eu nunca tinha podido aguentar isso se não fosse esta fuga, como ir para a cama com um marinheiro lindíssimo. E realmente isso era uma coisa muito bonita, era o meu escape. A minha grande porta não foi a pintura, foi isto. E era uma Lisboa extraordinária, o teatro que era a baixa...

Então, mas a Brasileira continua a ser hoje em dia um dos locais de encontros e de “show off” mais activos...
Mas quais são as celebridades que lá estão? Aquilo antigamente estava sempre cheio de gente famosa. O Almada estava lá quase sempre ao final da tarde... e o Almada era um mundo, a maneira de ele falar, a sua gesticulação, nem imagina, era um espectáculo de borla! A respeito dele há uma história muito engraçada que envolvia Mário Cesariny. Ele tinha um grande encantamento por mim e acreditava que eu seria o maior pintor de Portugal. Tínhamos nós vinte anos... eu via dentro da cabeça dele estas coisas e achava que eram sonhos tontos de um amigo, mas deixava andar. Era-me agradável. Um dia fomos ao Café Chiado, as mesas estavam cheias e estava lá o Almada. O Mário era muito atrevido e pegou num caderno meu onde eu desenhava umas coisas. Volta-se para o Almada e diz: «olha, tenho aqui um amigo que faz estas coisas, veja!». O Almada pega no caderno, passa duas volhas e não ligou nenhuma. Eu fiquei encantado a pensar no fracasso do Mário. Para ele foi um fracasso enorme, uma coisa terrível. Eu acho tanta graça a esta história...

Apesar de a vista já fraquejar e a mão também, o Artur está a pensar em voltar a desenhar, não está?
Isso é uma perspectiva muito optimista, ou muito louca pelo menos. Estes últimos meses têm sido imparáveis, loucos. Não consigo fazer nada que preste e já estou farto daquilo que fazia. De maneira que dar-se-à um caso de interrupção e, se a vida sossegar, quero ver se volto a fazer alguma coisa. Mas não quero voltar a fazer o mesmo. No outro dia desafiaram-me a fazer um cadavre exquis. Eu gosto de fazer isso, dá-me mais liberdade, mas não é fácil... Dentro da cabeça não tenho nada, mas sei que precisava de fazer algo de novo. É uma questão de deixar a mão correr... sabe que foi sempre a minha mão que fez tudo e não a cabeça.

Mas continua a existir um público interessado na sua obra. É um nome incontornável da história da arte portuguesa...

As pessoas já estão um bocadinho cansadas do Cruzeiro Seixas. Até eu! Se eu vivesse mais dois ou três anos teria que reinventar um outro Cruzeiro Seixas. Já estou farto de fazer as mesmas coisas. Eu sei que tenho o meu público, mas sou um bicho do mato. O que eu faço interessa mais aos outros do que a mim. Não sou um apaixonado daquilo que faço. Mas enfim, cumpri a minha obrigação, sempre com paixão. Tudo o que fiz na vida foi sempre apaixonadamente e isso é necessário. Mas agora estou farto, é como uma receita de culinária, sempre a mesma. Há alguns anos que comecei a dar por isso.

E no que diz respeito ao interesse do público pelo surrealismo, isso é incontestável...
O surrealismo português é ignorado em todo o mundo. É na Fundação Cupertino de Miranda, onde está o meu espólio e o do Mário Cesariny. É lá que eu propus que se criasse um centro de estudos desta corrente artística. Propus também que eles publicassem um livro sobre a história do surrealismo português.

O que é que o Artur gostava de fazer neste momento?

Agora gostava muito de viajar com uma pessoa que tivesse um entendimento igual ao meu acerca das coisas. O Mário...

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Graça Morais, Pintora-Perdiz


“A Máscara e o Tempo” é a exposição de Graça Morais que a Galeria Ratton inaugura hoje. Miguel Matos teve direito a visita guiada na companhia da pintora.

Pelas três naves da galeria desfilam pinturas que aludem à vida e ao tempo próprio do quotidiano no campo. Desenhos recentes, feitos a carvão, representam batatas geradoras de vida, transformadas pela acção dos dias passados.

Imagens de aves que se fundem no rosto da pintora dialogam com desabafos do dia-a-dia. A exposição “A Máscara e o Tempo” é uma súmula dos muitos desenhos que Graça Morais traça diariamente, marcando na memória as emoções da vida, a morte e a passagem do tempo nas pessoas que nos são queridas.

A Graça Morais continua a preferir o desenho como sua expressão, mais do que a pintura?

Sim. Gosto imenso de desenhar a carvão e a pastel. Mais depressa atinjo os resultados que quero assim do que com a pintura. A pintura requer uma força mais física e exige muito tempo. Nos últimos dois anos, desde que comecei a ter de ir muito a Bragança [onde está o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais], comecei a ficar com o meu tempo dividido. Então, quando fico no meu ateliê muitos dias agarro-me às telas e pinto.

Nesta exposição podemos observar três núcleos de obras. Pode explicar cada um deles?

Na primeira sala temos o tempo longo dos campos e do ciclo das estações. Há uma pintura com uma cabra que está no campo... isto é um tempo que só o campo tem. Nós na cidade não o temos. É o tempo da contemplação. Quase que se sente o som da bicharada, dos insectos... eu tenho muita sorte pois vou muitas vezes para a montanha e ando por aqueles lugares a sentir os campos. Gosto imenso dos rebanhos de gado, que cada vez existem menos. A nossa primeira infância marca-nos a todos e eu fui muito marcada porque vivi até aos sete anos nesse lugar, que na altura não tinha electricidade, nem estradas nem telefones. O isolamento era tanto que tudo o que eu vivi foi muito intenso. E a relação com o meu pai, com a minha mãe e os meus irmãos, numa família numerosíssima e aquela gente toda na aldeia ficaram marcadas profundamente no meu pensamento e no meu coração. Sinto que hoje sou uma privilegiada porque tenho esse mundo dentro de mim.

Tem necessidade desse acto de contemplação que hoje parece relegado para segundo plano?

Sim, porque isto tem a ver com a minha identidade, com a minha cultura. Há uma pintura que retrata os jovens de Trás-os-Montes. São jovens que eu encontro lá mas que são quase uma raridade. Vestem-se como aqui, têm os mesmos hábitos pois o mundo é cada vez mais pequeno. Têm uma aparência muito citadina, na aparência, nos objectos, na aquisição das tecnologias, mas ao mesmo tempo vão para o campo e vêem as cabras, as ovelhas...

Desenhou batatas velhas e transfiguradas... A observação da transformação da natureza é para si uma metáfora para a passagem do tempo?

Sabemos que quando deixamos as batatas apanhar luz, elas grelam. Lá em casa eu não deixo ninguém deitar fora as batatas greladas. Elas são motivo de interesse porque estão vivas, estão a transformar-se. A metamorfose dos seres vegetais é uma coisa que me toca e que preciso de observar. Então, peguei nessas batatas greladas e levei-as para o ateliê. Fiz uma série de desenhos porque aquelas batatas são uma metáfora sobre a vida e o tempo. Só passado algum tempo é que as batatas ganham esses grelos, que são nova vida e ao mesmo tempo é a velhice entendida como algo de grande beleza e que continua a ser aproveitável. Há pessoas que envelhecem e não são trapos, continuam a ter um papel na sociedade. Mas neste momento, com as pessoas a viverem muito mais, a nossa sociedade tem de criar espaços para elas. O meu pai morreu com 63 anos e eu achava que ele era velho. Hoje eu tenho 61 e não me considero velha. Há muita gente com 80 anos que faz uma vida brilhante e é uma velhice que tem de ser estudada.

Aquelas mulheres com vegetais a crescerem a partir dos seus rostos, como veias ou órgãos, o que simbolizam?

As pessoas, quanto mais envelhecem, mais o tempo lhes parece veloz. E então ficam com medo de morrer. Um destes desenhos é a cabeça da minha mãe, que é uma pessoa que eu adoro (eu desenho muito a minha mãe). Fazer estes desenhos é uma forma de a agarrar, de a prender, de deixar um testemunho de uma pessoa que é natural que vá desaparecer daqui a uns tempos. A transformação daqueles rostos com tubérculos é o tempo que se nota nas marcas que deixa nas suas caras. Quando as pessoas envelhecem numa relação normal com o tempo, as caras das pessoas velhas já não são caras, são vegetais, estão cheias de experiência.

É um discurso sobre o tempo e a vida, mas também sobre o corpo.

Não é só isso. Alguns rostos são fusões entre o rosto da minha mãe e o meu. E quando eu faço uma fusão entre a sua cabeça e a minha é uma maneira de questionar a minha identidade. É uma reflexão sobre a existência. E isso agudiza-se à medida que eu, com 60 anos, me questiono sobre o mundo que me cerca. Aqui não se sente os conflitos terríveis que há no mundo porque este é um mundo de paz. Também tem dramas e tragédias, há o medo da morte, da doença e da transformação, mas é um mundo que tem a ver com a dimensão dos campos. No fundo estou a reflectir sobre Portugal, que é um país que foi agrícola durante muito tempo e continua com uma agricultura cheia de dificuldades. Mas quando se vai à minha região vê-se toda a gente a trabalhar nas oliveiras, nas videiras... Eu tenho a sorte de ter uma mãe que mesmo depois da vindima me guarda umas videiras com uvas para eu ver...

A relação entre filha e uma mãe é incontornável na sua obra e assume uma dimensão quase visceral.

É realmente uma relação de sangue, de mente e de corpo. E nos últimos anos tenho começado a ver o mundo através da cara da minha mãe. E através dela eu começo a entender melhor aquela cultura e a minha.

Que assunto quer abordar nas pinturas das perdizes que se transformam num rosto?

As perdizes aparecem no Inverno, na altura da caça. Tenho uma relação afectiva com a perdiz, é uma ave muito bonita. Eu só consigo pintar a perdiz que os meus irmãos caçadores me oferecem, não consigo desenhar uma perdiz comprada numa loja. A prenda mais bonita que eu me lembro de ter tido quando era menina, tinha eu seis anos, foi o meu pai vir da caça, com o cinturão cheio de perdizes e oferecer-me uma. E aquela perdiz estava lindíssima e morta. Nunca mais a esqueci. Essa perdiz simboliza também uma certa vitimização das mulheres, mas sobretudo uma enorme beleza e os laços afectivos... E no final desta série, já sou eu, fundindo-me com a cabeça da perdiz. É um auto-retrato, que também é um diário. A minha pintura é muito simbólica, está cheia de metáforas.

A Graça Morais continua a fazer aquilo que parece um tabu na arte portuguesa actual: falar sobre si e sobre a vida.

Depende da arte contemporânea. O que acontece com alguns artistas é a não aceitação de uma certa sinceridade com os outros. Para nos aceitarmos como somos e para sermos sinceros com os outros numa relação de uma certa verdade, temos de ter um certo grau de amadurecimento e por vezes confunde-se a arte de vanguarda com esse lado dos fingimentos.

“A Máscara e o Tempo” está patente na Galeria Ratton (Rua da Academia das Ciências, 2C) até 31 de Janeiro. Aberta de segunda a sexta das 10.00 às 13.00 e das 15.00 às 19.30. A entrada é gratuita.

Time Out, 10 de Novembro de 2009

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Ana Cardim - A Jóia como Dispositivo


por Miguel Matos

A jóia como charneira entre a esfera pública e a esfera privada é o conceito por detrás da investigação e produção artística de Ana Cardim. A jóia tem sido desde sempre associada ao seu portador. A um corpo, logo, a um lugar íntimo, mas que ao mesmo tempo se relaciona num universo social, público, aberto à comunicação. Mas a jóia pode permanecer íntima pelas suas características semânticas ou herméticas ou pode abrir-se à interacção com outros que não seus portadores ou pode até funcionar como mecanismo ou dispositivo.

Introduzindo o conceito de “jóia-dispositivo”, Ana Cardim (Lisboa, 1975) entende que uma jóia possa operar através de plataformas transversais que – sem perder o seu referente original – ultrapassem as fronteiras comuns do conceito de Joalharia Contemporânea, tocando dinâmicas vigentes no quadro teórico e nas prácticas da designada Arte Actual. Ana explica: «Uma “jóia-dispositivo” é uma jóia que, através do seu uso, gera discurso crítico na esfera pública. É sobretudo um veículo de intervenção social que visa captar subjectividades e propôr novas vias de construção de sentido face a uma contemporaneidade que se apresenta sob o domínio do urbano nas suas variadíssimas vertentes e consequências sociais». Assim sendo, são de referir no contexto das suas práticas artísticas as peças Urban Help, Clean Your Mind e Garbage Pin, este último sendo um projecto que esteve recentemente em exposição na Galeria Klimt02 em Barcelona, depois MCO Arte Contemporânea, no Porto, e Galeria Articula, em Lisboa, passando agora para uma itinerância internacional. «Esta potencialidade da jóia reconvertida em espaço de sociabilidade e/ou lugar de discussão – capaz de estabelecer diálogos dinâmicos, de criar e recriar opinião pública –, é a via prática que ilustra o que defendo a nível teórico e que se pode observar nos meus últimos trabalhos», diz a joalheira.

Para Ana, o facto de muitas vezes a joalharia ser considerada um “parente pobre” da arte, é uma causa de revolta. Responde com peças conceptuais, que não são apenas adornos (embora reconheça o adorno como uma das vertentes intrínsecas da jóia). «Realizam-se muitas “coisas” no âmbito da joalharia que não podemos de nenhum modo inserir num quadro teórico de filosofia de arte actual. Além disso, o preconceito existe de modo alicerçado: quando ouvimos a palavra” jóia” remete-nos em geral para uma ideia de algo de puro adorno, uma “arte menor” artesanal, uma mera decoração estética ou um objecto de afirmação de status social. Porém, há que ter em conta que nem sempre é assim. Há de entender que jóia de puro adorno estético vai existir sempre, da mesma forma que sempre existirão belas pinturas para condizer com o tecido de um sofá ou com os cortinados de uma sala, o que não põe em causa toda uma outra produção pictórica que se reconhece no âmbito das artes. O que gostaria de trazer à luz, numa tentativa de reconhecimento por parte de críticos e teóricos de arte contemporânea, é que há jóias e “jóias”, ou seja, que há belos adornos de estética corporal mas que há também uma enorme produção de peças que veiculam uma inequívoca profundidade estético-conceptual. Olhar para elas como produção artística contemporânea, enquadrá-las e promovê-las nesse sentido, é necessário e urgente».

Para compreender a proposta de Ana Cardim importa descrever o funcionamento destes “mecanismos” como é o caso de Urban Help – Jóia Ansiolítica. Esta peça é um cinto que nos faz transportar um contentor. Dentro deste recipiente redondo e transparente, de aspecto clínico e funcional, encontramos um remédio contra crises de nervos. O potador do dispositivo apenas necessita de puxar para fora do contentor um disco daquele famoso plástico das bolhinhas e rebentá-lo até que a tensão se dissipe. Cada contentor contém sete discos recarregáveis. É um medicamento natural, sem contra-indicações e reciclável, pois o plástico, após a utilização, serve de enchimento para almofadas, também elas úteis para o relaxamento e, portanto, meio coadjuvante de tratamento.

Também dentro de uma lógica de funcionalidade social e psicológica encontra-se Clean Your Mind, jóia que consiste num grande pin que suporta um rolo de papel higiénico. A ideia é escrever nesse papel o problema que nos perturba o espírito e lançá-lo na sanita, como se fosse um ritual de purificação. A artista apresentou esta peça numa performance pelas ruas de Barcelona, por onde passeou uma retrete ambulante e pediu aos transeuntes que cumprissem este ritual de depuração mental. Estamos assim no âmbito de uma arte relacional, ligada à joalharia contemporânea / de autor e que expressa a ambivalência e transdisciplinaridade que esta área implica.

Mas o culminar desta concepção relacional da joalharia está em Garbage Pin Project. Tudo tem origem num pin criado por Ana Cardim. É um objecto minimal, um aro em metal que suporta um mini-saco de plástico, um pequeno saco transparente. Representa um caixote de lixo portátil, que carregamos connosco e que serve também de contentor visível para os outros. Vem com recargas de saquinhos, o que faz com que possamos depois fechar cada um deles e guardar ou deitar fora, consoante a nossa intenção. Serve, se quisermos, para comunicar através dos objectos que nele introduzimos. É um statement irónico sobre a nossa sociedade de desperdício, de consumismo e obsolescência. «A prata como material nobre e valioso, recurso natural e reciclável, é aqui confrontada com o plástico: material ordinário e barato, de origem sintética, responsável por uma grande parte da destruição do nosso eco-sistema», explica Cardim, salientando o carácter polissémico, paradoxal e de conflito na peça. O mesmo recipiente que para uns pode ser um estado intermédio de desperdício, para outros é um relicário, para outros ainda um veículo crítico.

Foi a pensar dos diversos usos e intenções que o Garbage Pin encerra que Ana Cardim pediu a 90 amigos e artistas que fizessem uso do Kit Garbage Pin. O dispositivo foi assim entregue a outros criadores e posto em funcionamento sem o controlo da artista. Cada utilizador encheu cinco saquinhos daquilo que considerou pertinente: lixo diário, despojos/dejectos do próprio corpo, items preciosos, recordações, etc num registo quase autobiográfico de cada um ou de afirmação social. Neste projecto entraram artistas de Portugal, Espanha, Itália, Reino Unido, Holanda, Suécia, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Áustria, entre outros países. Criou-se uma «plataforma de sentido partilhado». O resultado é exibido internacionalmente sob a forma de instalação e no catálogo que tem o inteligente subtítulo Worth VS. Waste. «Esta potencialidade da jóia reconvertida em espaço de sociabilidade e/ou lugar de discussão – capaz de estabelecer diálogos dinâmicos, de criar e recriar opinião pública – é a via prática que ilustra o que defendo a nível teórico e que se pode observar nos meus últimos trabalhos» - Ana Cardim em manifesto!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Nadir Afonso - "A matemática é a essência da obra de arte"


Miguel Matos teve uma aula de estética em casa de Nadir Afonso e ficou a perceber melhor a sua visão da arte.

Aos 89 anos, Nadir Afonso apresenta na galeria São Mamede uma nova exposição de pinturas a óleo sobre tela e guaches. “Renascimento” é um conjunto de imagens de cidades, o tema mais recorrente do artista. A Time Out aproveitou o pretexto e teve uma conversa que se transformou numa lição de estética e teoria da arte com o mestre do abstraccionismo geométrico.

A cidade é o tema que acompanha desde sempre o seu trabalho. Acha que a cidade é a grande realização humana, um símbolo da civilização?

Como arquitecto é claro que penso no funcionamento da cidade, mas como pintor o tema não tem importância nenhuma. O tema não é a arte. Quando o indivíduo começa a pintar, procura formas que o impressionem mas eu posso ser impressionado por leis que não são artísticas. Como arquitecto tenho de fazer obras perfeitas e a perfeição cria uma emoção, mas a perfeição não pertence à arte.

Antes de ser conhecido como pintor, chegou a trabalhar como arquitecto para Le Corbusier e Oscar Niemeyer. Acha que se não tivesse tido estas experiências a sua obra seria exactamente igual?

Não sei responder a essa pegunta. A arte é irracionalizável. Não sei até que ponto os meus conhecimentos arquitectónicos influenciaram a minha criação artística. É natural que sim, mas não tenho a certeza.

Não considera a arquitectura como arte?

Não, porque a arquitectura tem uma justificação que não é puramente dada pelas leis matemáticas. Está ligada à perfeição, que é uma coisa diferente.

E por ser uma actividade ligada a uma função específica, não é pura criação. Será por isso?

Exactamente. A função da arquitectura é habitada por leis da perfeição que não têm nada a ver com as leis da harmonia, como eu a entendo.

Ao longo da sua vida tem defendido esse princípio em diversos livros e estudos. Pode explicar essa sua concepção de arte e dos mecanismos que a rodeiam?

As leis que regem a obra de arte são leis concretas, matemáticas. Mas essa matemática não é apreendida pelo raciocínio e sim por uma intuição inata. Isto é um bocado complicado... Andei toda a vida a pensar e a escrever sobre isso. Ao mesmo tempo que fui pintor, procurei compreender esses meus impulsos intuitivos. O artista plástico tende a não racionalizar a sua actividade. O esteta, por outro lado, racionaliza mas não tem a intuição inicial. Tenho a impressão de que para se criar uma obra compreensível, capaz de se transmitir, o indivíduo tem de ter a intuição e a racionalização. E só então é que se pode construir uma crítica de arte. Na minha vida procurei ser um prático, ter impulsos intuitivos e depois compreender porque é que num quadro eu pus um quadrado e não um círculo. No fundo, quis compreender os mecanismos da criação...

Mas para além dessas regras, a sua criação procura a beleza?

A beleza tem limites. A obra de arte obedece a leis matemáticas e eu chamo-lhe beleza, mas outros chamam beleza à perfeição e à originalidade. O esteta confunde as coisas. Está a ver uma obra original e diz que é bela. Ela pode ser original mas não ser bela. Por outro lado, pode ser bela e não ser arte. A meu ver a beleza na arte é matemática.

Fala muito da importância da intuição, mas esse é um factor que está cada vez mais afastado da arte contemporânea, não é verdade?

Está, mas ela é essencial. É por isso que a minha concepção estética é oposta à concepção vigente. Pensam que a arte é a natureza vista através de um temperamento. Pensam que o que existe na arte é um factor psicológico do artista. Eu digo que não. O que intervém na arte é o regresso à natureza e a faculdade de o espírito sentir e empregar as suas leis. Eu digo que o espírito apreende a natureza mas não tem factores próprios que sirvam a arte.

Acredita que há sempre um raciocínio lógico por detrás da criação de cada obra de arte?

Sim. Cheguei a esta conclusão: as leis da matemática são incompreensíveis, mas há uma intuição que distingue o bom do mau. Eu não percebia porque fazia as coisas como fazia. Mas depois compreendi que não era uma coisa racional. O indivíduo sente mas não sabe compreender o mecanismo.

Mas pode-se criar uma obra de arte pelo processo inverso? Começar pelas regras e criar a partir delas?

Não. É preciso praticar e sentir primeiro essas leis. Acabei de escrever um estudo em que faço uma síntese de toda a minha démarche artística. Andei toda a vida a tentar compreender as coisas que sentia e acho que agora já consegui. Tenho a inpressão de ter conseguido finalmente fazer uma ligação entre a intuição inicial das formas e as conclusões que tirei depois de racionalizá-la.

E é através da matemática que podemos explicas os impulsos artísticos?

Sim, são fenómenos puramente matemáticos.

E isto funciona para a pintura, para a escultura... e para a arquitectura?

A obra de arte é puramente pictural e escultórica. A arquitectura já funciona de outra maneira.

Defende que a arte pode ser misturada com a política?

Jamais!

Mas muitos artistas defendem conceitos ideológicos através da arte...

As leis da arte não são sociais nem políticas. Na arte pura, o indivíduo deve pôr de parte todas essas manifestações.

A arte pura de que falou agora tem a ver com uma busca do absoluto. A que se refere o Nadir quando diz que procura esse absoluto?

É o ser total. É o ser em que a lei matemática é essencial.

Julga ter atingido já esse absoluto em algumas obras? Como sabe que o atingiu?

Sei disso quando olho para uma obra e não sinto necessidade de alterá-la. Quando sinto que posso ainda alterar uma obra é porque não cheguei a atingir o absoluto. Agora, pode haver uma evolução na sensibilidade. Eu posso fisicamente estar inferiorizado, mas, e talvez isto seja uma imodéstia, sinto que do ponto de vista mental e psicológico, eu evoluí. Não tenho as faculdades que tinha aos 30 anos mas tenho uma sensibilidade mais aguda e por isso posso retocar os meus quadros porque agora sinto mais a matemática da obra. Acho que a minha sensibilidade está mais refinada, mais requintada.

“Renascimento” está patente na galeria São Mamede (Rua da Escola Politécnica, 167) até 10 de Novembro. De segunda a sexta das 10.30 às 20.00 e sábados das 11.00 às 19.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 27 de Outubro de 2009

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Bela Silva - Dentadinhas e Arranhões


Miguel Matos andou à caça do veado com Bela Silva em plena galeria de arte.

O cenário: uma caçada com direito a luta violenta entre espécies. Auge da cena: “Ah, apanhei-te veadinho. Vou dar-te uma dentada”, diz o cão. “Morde mas com jeitinho”, diz o veado. “Vais ver que te como num ápice, nem vai doer”, diz o cão. “Lá estás tu com promessas. Vá, come-me lá de uma vez”, responde o veado.

O que se acaba de relatar é uma cena de “Stag Night”, exposição de Bela Silva na galeria Alecrim 50. São pinturas e esculturas de cerâmica inspiradas nas imagens de caça do século XVIII.

“Estava a olhar para tapetes persas e achei piada àquelas lutas em que às tantas já não se sabe a que animal pertence esta cauda ou aquele focinho. Numa visita ao Altes Museum, em Munique, fiquei parada a olhar para aquelas telas enormes, para o aglomerado de cães furiosos de olhos esbugalhados que mostram todos os seus dentes. A aparente vítima também mostra tudo o que a natureza lhe deu para se defender, numa luta de quem tem mais dentes. Noutras pinturas aparecem cães a olhar para os faisões de boca fechada muito perto a cheirar o seu jantar, ou a admirar a cor das belas penas, opto por esta segunda hipótese mais tranquila.”

Os cães de Bela Silva não são bem cães de caça. Mais parecem animais domésticos que nas suas aventuras chegam mesmo a ser patetas. Há um cão que se diverte debaixo de um javali.

Há outro que olha para nós, como que a perguntar “então, estou bem assim?” Uma matilha está a atacar um veado, mas parece que o veado gosta disso... “Nós às vezes gostamos de ser caçados”, comenta Bela por entre gargalhadas. A verdade é que se estamos a ser caçados isso é porque há alguém que nos quer comer... Serão estas imagens metáforas para possíveis orgias? “Com a chuva até apetece estar na cama, não é?”, responde.

Conotações e derivações de tema à parte, a verdade é que Bela chamou a esta série “Stag Night”, que em inglês significa despedida de solteiro. “Isto é a noite dos veados e é engraçado que despedida de solteiro em inglês diz-se noite do veado.” Uma noite estranha que nos aproxima das obras dos mestres do século XVIII com cenas contorcionistas de luta entre animais.

Para além das telas a óleo, estes animais povoam também peças em cerâmica, num registo mais abstracto. “Deixei de fazer cerâmicas durante dez anos, enquanto estive em Nova Iorque. Agora, até Maio estou concentrada nas cerâmicas e a produzi-las na fábrica Bordalo Pinheiro.” Em “Stag Night” Bela Silva mostra pela primeira vez os seus desenhos, que muita gente não conhece. São desenhos preparatórios para os seus trabalhos de cerâmica, feitos a caneta.

Bela é conhecida pelas suas pinturas coloridas em que representa meninas com traços inspirados no barroco. Mas esse período acabou. “Quero livrar-me daquilo que já fiz e começar novos trabalhos. Cheguei a uma altura em que o meu trabalho entrou em overdose”, confessa a artista. “As pessoas ainda querem que eu pinte meninas mas têm de perceber que há uma evolução... Um dia até posso voltar a isso, mas agora tenho necessidade de experimentar outras coisas. Fiz este tema só para a exposição, mas agora já estou farta de veados. É uma série isolada, uma brincadeira única.” Bela está a entrar numa fase de mudança, de desenvolvimento. Para já, decidiu que a próxima série vai entrar por influências japonesas.

“Stag Night” mostra cenas de caça, estranhas, cruéis, divertidas e até metafóricas. Mas não traz consigo grandes conceitos ou ideias filosóficas. São o que são. “As teorias são para os críticos inventarem, eu sou uma mulher do fazer”, diz Bela Silva.

“Stag Night” está patente na galeria Alecrim 50 (R. do Alecrim, 48/50) até 31 de Outubro. Aberta de segunda a sexta das 11.00 às 19.00. Sábado das 11.00 às 13.30 e das 16.00 às 19.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 13 de Outubro de 2009

domingo, 27 de setembro de 2009

A Arte Pós-Darwin


Miguel Matos foi conhecer uma exposição de Arte e Ciência mas não ficou transgénico


Um preto de carapinha loira ou um branco de carapinha não é natural. Ter uma orelha num braço também não é natural, mas ao contrário dos casos anteriores, não é falta de restaurador Olex. É Inside, o cruzamento entre arte e ciência que se mostra na Cordoaria.


Aproximar a arte da vida, desviando o conhecimento da ciência para a produção artística. É este o objectivo da Arte e Ciência um conceito artístico emergente e muito recente. Engloba um conjunto de práticas artísticas que romperam com aquilo a que tradicionalmente se chama Arte Contemporânea. Estas práticas são tão variadas e dão resultados tão diferentes que até agora ainda não se conseguiu encontrar um único nome para designar todo este conjunto. Até agora apareceram vários nomes para as propostas que misturam campos aparentemente antagónicos como estes. Bioarte é a terminologia mais conhecida, mas também lhe chamam sci-art, arte e tecnologia, arte e ciência... No fundo ainda ninguém definiu o que é isto.


“Inside” já está a ser preparada há dois anos e é uma exposição ambiciosa ao reunir os maiores especialistas nestas investigações artísticas. “Esta exposição é um manifesto que tenta apresentar em Portugal uma nova arte cujo conhecimento é muito diminuto”, diz Leonel Moura, Comissário do evento. É assim que no campo das biotecnologias vários artistas usam metodologias aplicadas na medicina ou na manipulação genética para gerarem esculturas, novas formas de vida ou reconfigurações dos corpos, do próprio artista ou de outros seres vivos. É também assim que no campo da inteligência artificial se propõe a possibilidade de gerar uma criatividade artificial, usando algoritmos e robôs.


“Pela primeira vez os artistas não estão a ilustrar a vida, mas a criá-la, seja de formas biológicas ou artificiais, Isto levanta questões que têm a ver com a vida.”, defende Leonel Moura. Através da biotecnologia é possível utilizar a capacidade de manipulação genética para a criação de uma flor com genes de artista ou processos de medicina que permitem implantar uma orelha num braço. No caso da robótica e da inteligência artificial, há robôs que reagem a estímulos exteriores e têm comportamentos autónomos. A importância deste tipo de arte é dar a ver uma realidade que já existe mas que não está à vista da maior parte das pessoas. Trata-se de descontextualizar estas técnicas para atraír a atenção e criar uma nova visão do mundo. “Esta exposição vai parecer muito futurista, mas não é”, diz Leonel Moura. “Tudo o que nós fazemos só é futurista para quem ainda não se apercebeu de que estas coisa já existem realmente. As operações estéticas, os transplantes, a manipulação genética, a robótica, a inteligência artificial... tudo isto já existe”.


Aquilo a que se chama Arte e Ciência começou a surgir nos anos 70 de uma forma muito incipiente mas só neste século é que isto tem ganhado forma. São agora realizadas exposições deste tipo de arte em vários países, apesar da resistência oferecida pelos agentes culturais mais conservadores. O público interessa-se pelo tema e os museus começam a perceber e a reconhecer a sua importância. Na opinião de Leonel Moura, “é muito visível a crise da arte contemporânea na dificuldade que tem em apresentar coisas novas. Defendo que não estamos perante mais uma tendência da arte contemporânea, mas sim uma nova arte, que provoca uma ruptura. Altera o próprio conceito de arte, assim como os seus processos de produção. É claro que estamos a mexer num domínio muito sensível e ainda vamos ver coisas horríveis a serem feitas neste âmbito. Mas também muitas coisas boas. O ser humano precisa de um empurrão para evoluir como organismo. Vamos conseguir superar a evolução natural e começar uma evolução artificial”. Será este o início do período pós-Darwin?


Time Out, Setembro 2009

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Paula Rego - Nossa Senhora das Histórias



Paula Rego viveu desde os sete anos no Estoril e foi lá que o seu imaginário começou a florescer. Agora é em Cascais que encontra a sua segunda casa: a Casa das Histórias Paula Rego. O museu de torres altas da cor do tijolo, desenhado pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura, abre as suas portas na sexta-feira. Miguel Matos foi recebido pela artista.

“Interessa-me aprender a desenhar melhor. É o que eu gostava, mas demora tempo e é preciso muito trabalho”, confessou Paula Rego à Time Out, como se tivesse ainda muito caminho por fazer. Na Casa das Histórias Paula Rego conta-se a história de evolução da artista e o processo de como ela chega à linguagem que tem hoje.

A Casa das Histórias Paula Rego é caso raro entre os museus portugueses. Setecentos e cinquenta metros quadrados pensados e concebidos desde o primeiro tijolo para instalar uma colecção própria. Ou seja, um projecto integrado que tem em conta a escala do país e da zona em que está inserido, nunca esquecendo a dimensão internacional da artista.
A colecção da Casa das Histórias foi toda ela doada por Paula Rego, que manifestou desde o início total disponibilidade e empenho no projecto. Ofereceu ao museu toda a sua obra gravada (ao todo são 257 gravuras, serigrafias e litografias), assim como centenas de desenhos e aguarelas que vão desde pequenos esquiços, esboços e estudos onde busca espontaneamente a forma e as composições. Para além disto, ainda emprestou por dez anos (renováveis por período idêntico) toda a sua colecção de pintura e desenho, com exemplares icónicos, anteriormente presentes nas retrospectivas de Serralves e Museu Reina Sofia de Madrid. “A colecção de Paula Rego permite mostrar todo o seu percurso criativo”, diz Dalila Rodrigues, directora do museu. “Por isso organizámos o percurso expositivo a partir de critérios cronológicos, cruzando temáticas e técnicas em salas sequenciais.”

Que história se conta nesta casa de altas chaminés? Tudo começa logo nos primeiros anos da pintora, com as suas primeiras colagens e uma abordagem quase abstractizante onde critica o Portugal salazarista dos anos 50 e 60. Passa depois para os anos 80 com as temáticas relacionadas com a sexualidade e uma agressividade muito perturbadora, narrativas interpretadas maioritariamente por animais como o leão, o coelho, o urso... São contos centrados em questões de dominação e poder no seio da família. “Em vez de se apropriar de imagens, mutilá-las e cortá-las como nas primeiras obras, ela regressa ao desenho, executado directamente sobre o suporte”, explica Dalila Rodrigues. “No seu percurso, ela vai passando gradualmente de um registo abstracto para o figurativismo realista. No final dos anos 80, na série de pinturas e gravuras Meninas e Cães, Paula Rego conquista a linguagem figurativa, a profundidade espacial e a mobilização de dispositivos que servem a sua principal finalidade: contar histórias.”

Já durante o período de formação na Slade School, em Londres, a jovem artista é muito clara na sua preferência pela linguagem figurativa. No entanto, devido à tirania do estilo, ser figurativo nos anos 60/70 era quase uma impossibilidade. Até ao final dos anos 80, Paula Rego faz uma progressiva libertação dessa tirania e embrenha-se na tarefa de ser contadora de histórias. A artista não se compromete com o questionamento da arte e suas linguagens, como os seus contemporâneos. “Paula Rego questiona a vida através das possibilidades conceptuais e formais da arte e não o inverso. E, com o intuito de contar histórias, reinventa a tradição figurativa e narrativa da pintura”, conclui Dalila Rodrigues.
Os sucessivos discursos, séries e técnicas que vai experimentando têm que ver com essa finalidade essencial. Ela vai adoptando técnicas que lhe permitem uma aproximação à história.
“É na história que eu coloco toda a minha vitalidade”, disse a artista durante a montagem da exposição.
O museu assume uma grande presença da sua obra gráfica, muitas vezes relegada para segundo plano pelo público em geral. A colecção é maior do que aquilo que está à vista e por isso serão organizadas exposições fora da casa com as peças da colecção. Para além da exposição permanente, sujeita à rotatividade de algumas peças, como convém a um museu dinâmico, há lugar para exposições temporárias que mudam a cada seis meses. Para a inauguração, a mostra temporária será também ela dedicada a Paula Rego, com algumas das suas obras das mais importantes, peças de grande formato emprestadas pela Galeria Marlborough, que representa a artista em Londres. Depois disso, será a vez de apreciar a pintura do seu falecido marido, Victor Willing.
As linhas de orientação para a programação de exposições temporárias decorrem das questões artísticas que a obra de Paula Rego coloca. “Como Paula Rego é uma pintora narrativa,
e como toda a tradição da pintura ocidental
é marcadamente narrativa, teremos sempre exposições de grandes mestres antigos internacionais. É esta a vocação do museu”, revela Dalila Rodrigues.
Um espaço descontraído, informal mas cosmopolita. Vinda de fora, uma luz rosada penetra dentro do branco imaculado do interior enquanto as janelas abrem para o jardim. É o que nos espera nesta casa com auditório para 800 pessoas onde acontecerão regularmente ciclos de conferências internacionais que abordam as ligações entre as artes visuais, a literatura e o cinema. Haverá cursos e workshops intensivos em horário pós-laboral, com grandes especialistas internacionais. Há também uma cafetaria arejada e aberta para o frondoso jardim, a loja com merchandising e objectos inspirados na obra da senhora que dá o nome à casa, assim como peças que evocam as formas do trabalho de Souto de Moura. Nas estantes e vitrinas espreitam livros da livraria Galileu, objectos d’A Vida Portuguesa e jóias de Paula Crespo e Paula Paour. E para testemunhar a vida e obra do museu, serão lançados livros próprios: um catálogo da exposição temporária, um outro contendo a totalidade da colecção com reprodução de todas as obras e ainda um livro sobre o edifício. E isto é apenas o início da história...


Os quadros preferidos
de Paula Rego, por si explicados

Pillowman, 2004

“Esta é uma obra inspirada na peça de teatro com o mesmo nome que eu vi em Londres e que me deixou muito emocionada. Gostei muito, mesmo. Então, transformei
o cenário e transpu-lo para o Estoril. À esquerda vemos a menina que queria ser Jesus Cristo, por isso carrega a cruz feita com um escadote e uma trave de madeira. No escadote está pendurada uma borracha daquelas que as crianças mordem quando lhes estão a nascer os dentes. Tem a cadeira forrada com o mesmo tecido da cadeira do meu pai. É uma coisa muito pessoal, a mistura entre o pillowman e o meu pai. No centro, o que se vê ao fundo é a praia do Estoril. Tem presente o pequeno príncipe e o Saint-
-Exupéry que viveu no Estoril durante
a guerra e que jogava muito no casino.
À direita, a menina fez uns bonecos com maçãs. Os braços são lâminas de barbear. As maçãs são para o pai comer, pois ela não gostava do pai. Ao meio deste quadro está a minha neta que serviu de modelo e o pillowman em baixo. O pillowman é um boneco que construí para servir de modelo, com collants, e tem um edredon por dentro.”

O Anjo, 1998

“É um anjo da guarda vingador, redentor e ameaçador. É o quadro de que eu mais gosto e que levo comigo quando morrer.
É da série O Crime do Padre Amaro. Traz consigo os símbolos da paixão: a espada
e a esponja. Nasceu, ganhou forma e sabe-
-se lá para onde seguirá. É cruel para as pessoas que são más e nos tratam mal mas é bom para as pessoas que nos protegem.”

Entre as Mulheres, 1997

“Gosto muito deste quadro, da série
O Crime do Padre Amaro. Aqui, a personagem masculina está a fingir que tem nove anos porque aos nove anos vestiam-no
de menina e davam-lhe muitas festinhas. Ele ficava todo contente. É o padre Amaro em pequenino, mas aqui vê-se um homem adulto porque o meu modelo era um homem.”

Time Out, Setembro 2009