terça-feira, 10 de novembro de 2009

Ana Cardim - A Jóia como Dispositivo


por Miguel Matos

A jóia como charneira entre a esfera pública e a esfera privada é o conceito por detrás da investigação e produção artística de Ana Cardim. A jóia tem sido desde sempre associada ao seu portador. A um corpo, logo, a um lugar íntimo, mas que ao mesmo tempo se relaciona num universo social, público, aberto à comunicação. Mas a jóia pode permanecer íntima pelas suas características semânticas ou herméticas ou pode abrir-se à interacção com outros que não seus portadores ou pode até funcionar como mecanismo ou dispositivo.

Introduzindo o conceito de “jóia-dispositivo”, Ana Cardim (Lisboa, 1975) entende que uma jóia possa operar através de plataformas transversais que – sem perder o seu referente original – ultrapassem as fronteiras comuns do conceito de Joalharia Contemporânea, tocando dinâmicas vigentes no quadro teórico e nas prácticas da designada Arte Actual. Ana explica: «Uma “jóia-dispositivo” é uma jóia que, através do seu uso, gera discurso crítico na esfera pública. É sobretudo um veículo de intervenção social que visa captar subjectividades e propôr novas vias de construção de sentido face a uma contemporaneidade que se apresenta sob o domínio do urbano nas suas variadíssimas vertentes e consequências sociais». Assim sendo, são de referir no contexto das suas práticas artísticas as peças Urban Help, Clean Your Mind e Garbage Pin, este último sendo um projecto que esteve recentemente em exposição na Galeria Klimt02 em Barcelona, depois MCO Arte Contemporânea, no Porto, e Galeria Articula, em Lisboa, passando agora para uma itinerância internacional. «Esta potencialidade da jóia reconvertida em espaço de sociabilidade e/ou lugar de discussão – capaz de estabelecer diálogos dinâmicos, de criar e recriar opinião pública –, é a via prática que ilustra o que defendo a nível teórico e que se pode observar nos meus últimos trabalhos», diz a joalheira.

Para Ana, o facto de muitas vezes a joalharia ser considerada um “parente pobre” da arte, é uma causa de revolta. Responde com peças conceptuais, que não são apenas adornos (embora reconheça o adorno como uma das vertentes intrínsecas da jóia). «Realizam-se muitas “coisas” no âmbito da joalharia que não podemos de nenhum modo inserir num quadro teórico de filosofia de arte actual. Além disso, o preconceito existe de modo alicerçado: quando ouvimos a palavra” jóia” remete-nos em geral para uma ideia de algo de puro adorno, uma “arte menor” artesanal, uma mera decoração estética ou um objecto de afirmação de status social. Porém, há que ter em conta que nem sempre é assim. Há de entender que jóia de puro adorno estético vai existir sempre, da mesma forma que sempre existirão belas pinturas para condizer com o tecido de um sofá ou com os cortinados de uma sala, o que não põe em causa toda uma outra produção pictórica que se reconhece no âmbito das artes. O que gostaria de trazer à luz, numa tentativa de reconhecimento por parte de críticos e teóricos de arte contemporânea, é que há jóias e “jóias”, ou seja, que há belos adornos de estética corporal mas que há também uma enorme produção de peças que veiculam uma inequívoca profundidade estético-conceptual. Olhar para elas como produção artística contemporânea, enquadrá-las e promovê-las nesse sentido, é necessário e urgente».

Para compreender a proposta de Ana Cardim importa descrever o funcionamento destes “mecanismos” como é o caso de Urban Help – Jóia Ansiolítica. Esta peça é um cinto que nos faz transportar um contentor. Dentro deste recipiente redondo e transparente, de aspecto clínico e funcional, encontramos um remédio contra crises de nervos. O potador do dispositivo apenas necessita de puxar para fora do contentor um disco daquele famoso plástico das bolhinhas e rebentá-lo até que a tensão se dissipe. Cada contentor contém sete discos recarregáveis. É um medicamento natural, sem contra-indicações e reciclável, pois o plástico, após a utilização, serve de enchimento para almofadas, também elas úteis para o relaxamento e, portanto, meio coadjuvante de tratamento.

Também dentro de uma lógica de funcionalidade social e psicológica encontra-se Clean Your Mind, jóia que consiste num grande pin que suporta um rolo de papel higiénico. A ideia é escrever nesse papel o problema que nos perturba o espírito e lançá-lo na sanita, como se fosse um ritual de purificação. A artista apresentou esta peça numa performance pelas ruas de Barcelona, por onde passeou uma retrete ambulante e pediu aos transeuntes que cumprissem este ritual de depuração mental. Estamos assim no âmbito de uma arte relacional, ligada à joalharia contemporânea / de autor e que expressa a ambivalência e transdisciplinaridade que esta área implica.

Mas o culminar desta concepção relacional da joalharia está em Garbage Pin Project. Tudo tem origem num pin criado por Ana Cardim. É um objecto minimal, um aro em metal que suporta um mini-saco de plástico, um pequeno saco transparente. Representa um caixote de lixo portátil, que carregamos connosco e que serve também de contentor visível para os outros. Vem com recargas de saquinhos, o que faz com que possamos depois fechar cada um deles e guardar ou deitar fora, consoante a nossa intenção. Serve, se quisermos, para comunicar através dos objectos que nele introduzimos. É um statement irónico sobre a nossa sociedade de desperdício, de consumismo e obsolescência. «A prata como material nobre e valioso, recurso natural e reciclável, é aqui confrontada com o plástico: material ordinário e barato, de origem sintética, responsável por uma grande parte da destruição do nosso eco-sistema», explica Cardim, salientando o carácter polissémico, paradoxal e de conflito na peça. O mesmo recipiente que para uns pode ser um estado intermédio de desperdício, para outros é um relicário, para outros ainda um veículo crítico.

Foi a pensar dos diversos usos e intenções que o Garbage Pin encerra que Ana Cardim pediu a 90 amigos e artistas que fizessem uso do Kit Garbage Pin. O dispositivo foi assim entregue a outros criadores e posto em funcionamento sem o controlo da artista. Cada utilizador encheu cinco saquinhos daquilo que considerou pertinente: lixo diário, despojos/dejectos do próprio corpo, items preciosos, recordações, etc num registo quase autobiográfico de cada um ou de afirmação social. Neste projecto entraram artistas de Portugal, Espanha, Itália, Reino Unido, Holanda, Suécia, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Áustria, entre outros países. Criou-se uma «plataforma de sentido partilhado». O resultado é exibido internacionalmente sob a forma de instalação e no catálogo que tem o inteligente subtítulo Worth VS. Waste. «Esta potencialidade da jóia reconvertida em espaço de sociabilidade e/ou lugar de discussão – capaz de estabelecer diálogos dinâmicos, de criar e recriar opinião pública – é a via prática que ilustra o que defendo a nível teórico e que se pode observar nos meus últimos trabalhos» - Ana Cardim em manifesto!

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