sábado, 26 de junho de 2010

Aurora - Eduardo Nery e Noronha da Costa na Galeria António Prates (até 31 Julho)



Luz Crepuscular

Em 1973, Eduardo Nery e Noronha da Costa expunham lado-a-lado no Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris. Apesar de amigos, pouco tinha em comum a pintura de um com a de outro. 37 anos depois, na Galeria António Prates, em Lisboa, os dois artistas reencontram-se. Lado-a-lado expõem pela segunda vez e, através de uma empatia desfasada no tempo, as suas obras aproximam-se...

“Toda a pintura distribui de graça uma certa qualidade de silêncio”, escreveu um dia Eduardo Lourenço . “Mas certa pintura inscreve esse silêncio em qualquer coisa a que convém o nome sempre suspeito de 'mistério'”1. Para as obras que se juntam nesta exposição será talvez adequado adicionar a palavra “espíritual”. É uma experiência metafísica aquela provocada pela contemplação das auras espectrais criadas por Eduardo Nery. A par com estas, o olhar prolonga-se em efeitos de infinitude espacial nas telas de Noronha da Costa. Muitos considerarão uma ligação pouco provável. Um rendez-vouz imprevisto entre dois pintores da mesma geração, mas paralelos em percursos. No entanto, após o confronto, a lógica aparece como evidente.
Ao longo da sua demanda no questionamento das condições de existência da imagem, tendo como trunfo uma manipulação exímia da luz, Eduardo Nery passou por diferentes fases, quer em técnicas quer em campos estéticos. Uma das suas fases mais interessantes e mais longas (de 1979 a 1992), mas nem por isso das mais conhecidas, é a da pintura a spray. Neste período - mostrado ao público pela primeira vez em 1980 aquando da exposição “Espaço-Luz”, na Galeria Quadrum, em Lisboa – Eduardo Nery cria paisagens cósmicas e de efeitos tridimensionais que encontram pontos de convergência na fase mais recente de Noronha da Costa, inaugurada muito mais tarde, em 2005, na exposição “Piero della Francesca após Lúcio Fontana” na Sociedade Nacional de Belas Artes. Apesar do longo historial de amizade e convivência, os dois autores tinham perdido o contacto pessoal e profissional por contingências da vida, tendo o desafio deste frente-a-frente constituído uma surpresa para ambos. As obras destes artistas, baseadas na vertigem da luz que as constitui como que numa obsessão, dirigem-se progressivamente “para as mais fundas interrogações sobre a natureza crepuscular de toda a imagem e, necessariamente, para a inquietação filosófica – e mesmo existencial – que acompanha, em matéria de reflexão e de pensamento, o percurso das suas imagens”2. Este excerto, escrito a respeito de Noronha da Costa por Bernardo Pinto de Almeida, por coincidência ou não, é também aplicável sem grandes desvios à fase de pintura a spray de temática cósmica de Eduardo Nery. As paisagens celestes destes pintores, imersas quase sempre num azul trémulo mas tranquilo, chamam o observador para a contemplação. São obras serenas e silenciosas, em direcção ao infinito, ao transcendente. Apelam à introspecção sem deixarem, no entanto, de assumir uma atitude de dúvida em relação à própria pintura. E aqui reside outro elemento central que une Eduardo Nery e Noronha da Costa desde sempre: o questionamento da própria pintura pela desintegração e desconstrução experimental da imagem.
Na audácia de agrupar artistas por aquilo que eles possam ter em comum, inevitavelmente alude-se a uma tendência ou um estilo, tenha ele nome ou não, seja ele previamente existente ou apenas fruto das circunstâncias. Cria-se assim um campo de intersecção delimitador de um espaço de diálogo. Para Arnold Hauser, “o conceito de estilo deriva do facto paradoxal de os esforços de vários artistas, trabalhando separadamente e muitas vezes independentemente, terem revelado uma direcção comum de as suas aspirações individuais estarem inconscientemente subordinadas a uma tendência impessoal, supra-individual e de – contradição aparentemente insolúvel da história de arte – um artista ao dar largas aos seus próprios impulsos, produzir algo que vai para além do que na verdade pretendeu”3. Neste caso, a diluição da imagem através da técnica do spray é a marca de estilo que une estes dois criadores. Mas além da forma e da técnica, há qualquer coisa mais que os une e que pertence ao “sentido secreto” da obra que produzem.

Noronha da Costa e a Paisagem Desintegrada




Na pintura, a chamada “arte do espaço”, o movimento sem deslocação efectiva é estabelecido pela vibração ou irradiação. A própria técnica da pintura a spray resulta em degradés e dispersões cromáticas que servem esse propósito criando ilusões de volumes e sombras. Através da sobreposição de planos e pela vibração das cores em diáfanas camadas de tinta, a pintura de Noronha da Costa (tal como a de Eduardo Nery) tem aquela capacidade que Merleau-Ponty referia de “sugerir uma mudança de lugar, como o rasto de uma estrela cadente sobre a minha retina me sugere uma transcrição, um mover-se que ela não contém”4. O quadro terá de ser capaz de apresentar ao observador uma série de imagens que em conjunto sugiram o movimento que na realidade não está contido em si e que seria fornecido pelos movimentos reais. A representação desse movimento implícito, pelas problemáticas que levanta, e pelas ilusões que cria, abre-se ao universo das interpretações subjectivas e das sensações. É nesta perspectiva que Noronha da Costa se aproxima da op art, ainda que de forma subtil, ao fazer-nos crer na tridimensionalidade da sua pintura, na falsificação das perspectivas e no cinetismo das formas. São como “atitudes instáveis em suspenso entre um antes e um depois, numa palavra, os exteriores da mudança de lugar que o espectador leria no seu traçado”5.
Noronha da Costa sabota os mecanismos de representação na pintura e celebra assim a sua morte. Pratica o simulacro da imagem e destrói a referencialidade da ideia de pintura como um absoluto inquestionável. Neste caminho, as cores, as profundidades, transparências ou perspectivas são “baralhadas” de maneira aparentemente aleatória. Noronha da Costa não abdica destes elementos; apenas os subverte e, no caso destas mais recentes pinturas, até a figuração, presente em quase todas as suas fases anteriores, desaparece progressivamente. Não obstante as sucessivas desintegrações da imagem, existem ainda vestígios de elementos vindos da sua pintura anterior. Eles vivem agora como auto-citações do que constitui o leitmotiv mais associado ao artista: a paisagem marítima quase indecifrável, o céu crepuscular, a neblina, o “embaciamento” da tela. O sentido geral desta pintura é de um caminho em direcção à abstracção em cujos planos entram, aqui e ali, elementos geométricos. Mantém-se um certo paisagismo difuso, com elementos absurdos e alusões à anti-pintura. No fundo, estas obras fazem uma súmula de todas as anteriores experiências pictóricas do artista.
Compreendendo uma carreira com mais de 50 anos, verifica-se que Noronha da Costa decidiu muito cedo adoptar a técnica do spray como omnipresença na sua pintura, e com isso se tornou reconhecido, reconhecível e inconfundível entre os protagonistas da arte contemporânea portuguesa. Também é verdade que, ao longo do seu percurso, outros criadores, com maior ou menor proximidade, em alguma altura das suas carreiras (e porventura em outras técnicas ou conceitos) se aproximaram do seu universo plástico e/ou filosófico. É, por exemplo, o caso de Lourdes Castro quanto à representação da ausência e à captação fantasmática da figura através da da sombra. Cruz-Filipe também andou perto das questões que interessam Noronha da Costa, com referências a imagens românticas de mares e paisagens em planos sobrepostos. Mas um outro artista, e de forma acentuada, teve um momento especial e específico no seu percurso que, pela técnica e pelo espírito, serve de razão para o encontro com Noronha da Costa. Essa inegável afinidade estética dá-se com Eduardo Nery, nome incontornável na nossa cultura artística.

Eduardo Nery e o Cósmico Sublime

A exposição dos dois artistas em Paris aconteceu durante a época em que Eduardo Nery se encontrava dedicado a uma pintura de elementos insólitos e de espaços absurdos, chamada de “metafísica”. Posteriormente - e até hoje - entrou num outro período em que aprofundou as suas experimentações e sobreposições em fotografia. Depois de uma pintura de complexidade e espectacularidade, o artista provoca-nos com um profícuo conjunto de trabalhos de uma assumida anti-pintura (o que adiciona mais um ponto em comum com Noronha da Costa). Eduardo Nery desafia o suporte, revalida a moldura, questiona e violenta a superfície da tela em agressões que retomará mais tarde. Como consequência destes avanços e retrocessos na tentativa de reposicionamento de um impossível ideal pictórico, Nery faz um corte no caminho, despojando-se da figuração e de demais artifícios. Em 1979, vindo de uma multiplicidade de técnicas e resultados, a sua obra mostrou-se mais limpa, mais etérea. Volta à pintura, desta vez utilizando o spray e investindo numa temática cósmica que coloca em jogo o espaço e a luz. Aliás, Eduardo Nery nunca se distanciou muito da temática cósmica, o que se pode observar nas obras gestuais dos anos 50 e 60 (e depois já em anos 2000). A própria pintura op de Nery tem a ver com um sentido cósmico, ao sugerir uma expansão da visão, criando espaços sem limites nem referências de composição que possam guiar o olhar do observador a pontos preponderantes. Este mesmo princípio é retomado nas obras a spray, embora redefinindo o seu uso habitual da geometria e adoptando uma estrutura mais fluida, menos sistematizada. O uso de redes em algumas destas pinturas permite ao pintor exercer ainda o seu fascínio por texturas e motivos repetitivos – vestígio ainda da modulação característica da op art. Outro elemento remanescente é a presença de cubos e pirâmides à volta dos quais se formam feixes de luz que imitam o rasto de uma trajectória ascendente. Nunca desistindo de interrogar o estatuto da pintura e do desenho, Eduardo Nery não só sobrepõe finas e dispersas camadas de tinta, mas também provoca rasgões, como feridas no papel. O improviso volta a tomar conta da obra. Com a técnica de rasgar e colar em sucessivas camadas, o autor desprende-se do controlo de resultados. O papel segue a sua própria direcção na dilaceração que o pintor inflinge e isto cria um novo gestualismo. O acto de desenhar rasgando representa um lado espontâneo e aleatório, tal como o spray, cujo resultado é também impossível de controlar e antever.
O que caracteriza estas imagens de natureza espectral é um sentido de espaço ilimitado. Paradoxalmente, embora encerrado dentro de uma superfície plana e rodeado por uma moldura, esse espaço expande-se potencialmente em todas as direcções. Eduardo Nery trabalha o plano, mas fá-lo vibrar em profundidade, para além da gradação luminosa. A impermanência, a desintegração da imagem, a sua montagem e desmontagem são palavras de ordem para este artista, dentro da tendência para o transcendente e para o espiritual. “Por isso, o que se reconhece como aura e respiração e aragem dos astros se ouve, mas como emanação da matéria só alguns vêem. Etéreo é o princípio irradiante do visível, porém o seu outro lado subtil, existente, só como aura é visível. É o outro lado do visível que, na pintura estranha e bela de Eduardo Nery, se anuncia e finalmente se vê”, escreveu Fernando de Azevedo no catálogo da exposição “O Outro Lado do Visível”, na Galeria YGrego, em Lisboa6. Os conceitos de indeterminação espacial e temporal são cruciais para entender o que Nery queria exprimir - mais do que representar: a energia cósmica ou astral. Eis o mote para a maior parte do seu trabalho, que se torna visível na pintura metafísica, na pintura a spray e contemporaneamente na fotografia.
Eduardo Nery propõe nestas imagens uma temática ligada à ciência e à teoria quântica, numa aproximação aparentemente contraditória (mas só aparentemente) à ideia de Deus. Esse interesse é constatável em títulos como “Exalação Cósmica”, “Criação Contínua” ou “Universo em Expansão II”. Uma ideia-chave no trabalho de Eduardo Nery é a constante procura da energia e nisso se compreende as imagens de auras que não são senão energia irradiada a partir de corpos com vida. O que fascina nestes trabalhos é que Eduardo Nery consegue associar a ciência à espiritualidade, uma ligação tantas vezes tentada como falhada. Nos seus eixos verticais evoca o axis mundi, o eixo que liga o céu à terra e representa uma viagem que pode ser ascendente ou descendente, material ou espiritual. Nas linhas horizontais, ele traz-nos uma sensação de paisagem sob a luz de um qualquer crepúsculo. A luz como metáfora de transmutação. Eduardo Nery reitera a sua “necessidade individual de tornar verdadeiras a memória e a própria ilusão do mundo”7. Esta exposição insinua que Eduardo Nery e Noronha da Costa são, em silêncio, cúmplices dos mesmos mistérios.

Miguel Matos


1. LOURENÇO, Eduardo. O Espelho Imaginário. INCM, Lisboa, 1996.

2. ALMEIDA, Bernardo Pinto. Noronha da Costa ou a Consciência do Tempo. Ed. Caminho, Lisboa, 2006.

3. HAUSER, Arnold. Teorias da Arte. Editorial Presença, Lisboa, 1988

4. PONTY, Merleau. O Olho e o Espírito. Vega, Lisboa, 2006

5. idem

6. AZEVEDO, Fernando. O Outro Lado do Visível. Galeria YGrego, Lisboa, 1990

7. SOUSA, Rocha. Indagação sem Heterónimos Entre a Geometria e o Sonho, in Colóquio Artes, nº69. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Junho de 1986




terça-feira, 15 de junho de 2010

João Galrão - Epifanias de tinta


Wassily Kandinsky pintou em 1910 o primeiro quadro abstracto e com a sua pesquisa pictórica pretendeu uma elevação espiritual do povo. João Galrão, cem anos depois, não tem pretensões filosóficas do mesmo teor mas, talvez não intencionalmente, deixa passar uma aura de experiência mística, a começar pelo título desta exposição - “Little Revelations”.

João Galrão tem construido o seu percurso artístico entre um interesse modernista pela busca da verdade e a contemporaneidade de experimentar em técnicas e meios díspares sem programas ideológicos nem compromissos pré-definidos. Se explora a forma pura em esculturas orgânicas e monocromáticas, por outro lado procura a provocação em montagens e colagens eróticas. Esta é a primeira vez que Galrão mostra em público as suas experiências na pintura. Um caminho que para si é recente e que pisca o olho ao abstraccionismo geométrico e à arte pop. João Galrão não se preocupa tanto com a cor em si como pela pintura-como-objecto, algo que existe por direito próprio e que é inteiramente auto-referencial, numa aproximação ao espírito da obra do americano Frank Stella, cujas pinturas são não só objectos para pendurar na parede, mas também algo que activa toda a superfície dessa mesma parede1.

Se nas suas obras anteriores, nomeadamente nas suas esculturas monocromáticas, João alude à pintura, pelas estruturas planificadas e subsequente colocação em parede, agora ele assume uma primeira pintura feita de improvisos e experiências seminais. Com estas obras, afirma a sua liberdade no contexto de um percurso cada vez mais diversificado. Com “Little Revelations”, João Galrão aproxima-se do universo visual do pintor alemão Franz Ackermann. No entanto, as formas e linhas daquele completam-se numa abstracção mais radical. Embora seja possível intuir paisagens urbanas (tema privilegiado de Ackermann), elas não estão no quadro, mas sim na imaginação do espectador. As suas paisagens insinuam-se pelas linhas através da composição para depois serem alteradas pela exuberante força cromática, como numa viagem alucinogénica. É uma constelação imaginária de astros psicadélicos. Uma pintura festiva, pois como disse Eduardo Lourenço, «na imaginação nos damos a festa que o real não consente e por isso é ela imaginação»2.

O artista já comprovadamente multifacetado reinventa-se mais uma vez e dá-nos a ver as revelações que teve nesse processo. Através de diferentes profundidades e da tensão entre as formas geométricas, João Galrão consegue efeitos retinianos. São imagens que remetem para uma nova paisagem de elementos quase em movimento, como uma sensação visual de orgasmo. Uma experiência onírica percorre estas formas hard edge. Como um espectro que se abre visualmente em pequenas ondas e rebentações, uma revelação abstracta, uma epifania cromática.

Kandinsky via cores quando ouvia música e dizia: «a cor é o tom fundamental, os olhos são as harmonias e a alma é o piano com muitas cordas. O artista é a mão que toca, tocando numa ou noutra tecla para provocar vibrações na alma»3. Neste caso, João Galrão é o DJ e lança batidas de tintas que vibram em samples electrónicos e explosões ritmadas.


A exposição "Little Revelations" está patente na livraria Babel, Rua da Misericórdia, 68, Lisboa. Até 28 Junho.


1LUCIE-SMITH, Edward. Movements in Art Since 1945 (New edition). Thames & Hudson, London, 2001

2LOURENÇO, Eduardo. O Espelho Imaginário. INCM, Lisboa, 1996

3BECKETT, Wendy. História da Pintura. Selecções do Reader's Digest, Lisboa, 1995.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Carlos Mélo - Corpo Amplificado


Despertar o pensamento através dos sentidos e registar esses momentos: é assim que Carlos Mélo trabalha e é isso que vem mostrar em Lisboa, na Galeria 3+1. A performance é um eixo central para este artista, eleito como um dos representantes da geração brasileira da viragem do milénio e galardoado em 2006 com o II Prémio CNI SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas.

É da performance e dos seus registos que vive a exposição “Entre-Campos”. Para além disso, na prática artística de Carlos Mélo há sempre um outro conceito crucial: o “subjeto”. A palavra resulta do cruzamento entre sujeito e objecto. Ou seja, é uma coisa e uma personagem ao mesmo tempo. É presença inanimada e catalisador da acção. Este contexto explica a presença, nas fotografias agora apresentadas, de um estranho boné como “subjeto”.

Carlos Mélo explica: “este trabalho vem de uma forte influência do candomblé. No boné há uma franja que é igual à usada pelos orixás para cobrir o rosto. Aqui há a apropriação desse elemento com outro objectivo. Como é um trabalho muito ligado a questões da experiência sensível e do lugar, eu não queria associar a temas da religião. De qualquer forma, a referência traz algo de uma experiência mística.” O artista usou este “subjeto” em Sintra (já de si um local místico) e interagiu com o meio da forma que lhe pareceu mais intuitiva. Daí nasceram imagens fotográficas que testemunham o artista na paisagem como canal entre o subjecto e o espaço.

As fotografias e desenhos com que Carlos Mélo ocupa a galeria são testemunhas de um acto. Constituem uma performance sem audiência. Tudo parte de uma acção desenvolvida num local específico, neste caso. O desdobramento performático dá-se com o registo fotográfico dessa acção e com a sua aparição multiplicada através de objectos relacionados, que se tornam ícones e símbolos como flores, microfones e cabelos. “O cabelo começou como uma mancha negra e semi-disforme em desenhos de grafite. Com o tempo essa mancha ganhou filamentos e transformou-se em cabelo que depois foi transposto para outros suportes artísticos”, explica Carlos.

O microfone é o sinal de um acto, de uma interacção ou comunicação, como nas performances em que o artista e um actor contracenam com palavras e movimentos. As flores são o elemento vivo entre objectos inanimados. “Na verdade, eu acho que o meu trabalho tem uma vertente autofágica. Ele vai-se consumindo, as coisas vão aparecendo, passam com o tempo e depois voltam. Nesse sentido é uma grande aventura, pois eu mesmo me surpreendo”, confessa.

As obras que Carlos Mélo mostra são imagens em espelho de si próprio. Quem aparece fisicamente nestes retratos é o próprio artista, mas de forma a nunca vermos o seu rosto. São “auto-retratos em fuga de si mesmos”, como lhes chamou a psicoterapeuta e crítica cultural Suely Rolnik. De facto, e de forma mais explícita nos desenhos, o rosto do artista dissolve-se, ao representar não já o “eu” dele próprio, mas sim os seus vários “eus”. Como no caso da artista portuguesa Helena Almeida, já não é o seu corpo que figura nas imagens, mas sim um corpo comunitário, um corpo seu e ao mesmo tempo reflexo do corpo do espectador. Os objectos – ou subjectos – que aparecem nos vários trabalhos (microfones, câmaras, cadeiras, flores) cumprem a função de amplificadores da experiência sensível ou marcas da sua presença no espaço. Desdobrando-se em técnicas e meios diversos como a fotografia, o desenho, o vídeo, a performance e a instalação, “Entre-Campos” pretende fazer o ponto da situação acerca do lugar onde se encontra Carlos Mélo na arte, na vida e nos sentidos que utiliza para apreendê-la.

“Entre-Campos” está patente na Galeria 3+1 (Rua António Maria Cardoso, 31) até 10 de Julho. Aberta de terça a sábado das 14.00 às 20.00. A entrada é gratuita.