terça-feira, 15 de junho de 2010

João Galrão - Epifanias de tinta


Wassily Kandinsky pintou em 1910 o primeiro quadro abstracto e com a sua pesquisa pictórica pretendeu uma elevação espiritual do povo. João Galrão, cem anos depois, não tem pretensões filosóficas do mesmo teor mas, talvez não intencionalmente, deixa passar uma aura de experiência mística, a começar pelo título desta exposição - “Little Revelations”.

João Galrão tem construido o seu percurso artístico entre um interesse modernista pela busca da verdade e a contemporaneidade de experimentar em técnicas e meios díspares sem programas ideológicos nem compromissos pré-definidos. Se explora a forma pura em esculturas orgânicas e monocromáticas, por outro lado procura a provocação em montagens e colagens eróticas. Esta é a primeira vez que Galrão mostra em público as suas experiências na pintura. Um caminho que para si é recente e que pisca o olho ao abstraccionismo geométrico e à arte pop. João Galrão não se preocupa tanto com a cor em si como pela pintura-como-objecto, algo que existe por direito próprio e que é inteiramente auto-referencial, numa aproximação ao espírito da obra do americano Frank Stella, cujas pinturas são não só objectos para pendurar na parede, mas também algo que activa toda a superfície dessa mesma parede1.

Se nas suas obras anteriores, nomeadamente nas suas esculturas monocromáticas, João alude à pintura, pelas estruturas planificadas e subsequente colocação em parede, agora ele assume uma primeira pintura feita de improvisos e experiências seminais. Com estas obras, afirma a sua liberdade no contexto de um percurso cada vez mais diversificado. Com “Little Revelations”, João Galrão aproxima-se do universo visual do pintor alemão Franz Ackermann. No entanto, as formas e linhas daquele completam-se numa abstracção mais radical. Embora seja possível intuir paisagens urbanas (tema privilegiado de Ackermann), elas não estão no quadro, mas sim na imaginação do espectador. As suas paisagens insinuam-se pelas linhas através da composição para depois serem alteradas pela exuberante força cromática, como numa viagem alucinogénica. É uma constelação imaginária de astros psicadélicos. Uma pintura festiva, pois como disse Eduardo Lourenço, «na imaginação nos damos a festa que o real não consente e por isso é ela imaginação»2.

O artista já comprovadamente multifacetado reinventa-se mais uma vez e dá-nos a ver as revelações que teve nesse processo. Através de diferentes profundidades e da tensão entre as formas geométricas, João Galrão consegue efeitos retinianos. São imagens que remetem para uma nova paisagem de elementos quase em movimento, como uma sensação visual de orgasmo. Uma experiência onírica percorre estas formas hard edge. Como um espectro que se abre visualmente em pequenas ondas e rebentações, uma revelação abstracta, uma epifania cromática.

Kandinsky via cores quando ouvia música e dizia: «a cor é o tom fundamental, os olhos são as harmonias e a alma é o piano com muitas cordas. O artista é a mão que toca, tocando numa ou noutra tecla para provocar vibrações na alma»3. Neste caso, João Galrão é o DJ e lança batidas de tintas que vibram em samples electrónicos e explosões ritmadas.


A exposição "Little Revelations" está patente na livraria Babel, Rua da Misericórdia, 68, Lisboa. Até 28 Junho.


1LUCIE-SMITH, Edward. Movements in Art Since 1945 (New edition). Thames & Hudson, London, 2001

2LOURENÇO, Eduardo. O Espelho Imaginário. INCM, Lisboa, 1996

3BECKETT, Wendy. História da Pintura. Selecções do Reader's Digest, Lisboa, 1995.

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