quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Graça Morais, Pintora-Perdiz


“A Máscara e o Tempo” é a exposição de Graça Morais que a Galeria Ratton inaugura hoje. Miguel Matos teve direito a visita guiada na companhia da pintora.

Pelas três naves da galeria desfilam pinturas que aludem à vida e ao tempo próprio do quotidiano no campo. Desenhos recentes, feitos a carvão, representam batatas geradoras de vida, transformadas pela acção dos dias passados.

Imagens de aves que se fundem no rosto da pintora dialogam com desabafos do dia-a-dia. A exposição “A Máscara e o Tempo” é uma súmula dos muitos desenhos que Graça Morais traça diariamente, marcando na memória as emoções da vida, a morte e a passagem do tempo nas pessoas que nos são queridas.

A Graça Morais continua a preferir o desenho como sua expressão, mais do que a pintura?

Sim. Gosto imenso de desenhar a carvão e a pastel. Mais depressa atinjo os resultados que quero assim do que com a pintura. A pintura requer uma força mais física e exige muito tempo. Nos últimos dois anos, desde que comecei a ter de ir muito a Bragança [onde está o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais], comecei a ficar com o meu tempo dividido. Então, quando fico no meu ateliê muitos dias agarro-me às telas e pinto.

Nesta exposição podemos observar três núcleos de obras. Pode explicar cada um deles?

Na primeira sala temos o tempo longo dos campos e do ciclo das estações. Há uma pintura com uma cabra que está no campo... isto é um tempo que só o campo tem. Nós na cidade não o temos. É o tempo da contemplação. Quase que se sente o som da bicharada, dos insectos... eu tenho muita sorte pois vou muitas vezes para a montanha e ando por aqueles lugares a sentir os campos. Gosto imenso dos rebanhos de gado, que cada vez existem menos. A nossa primeira infância marca-nos a todos e eu fui muito marcada porque vivi até aos sete anos nesse lugar, que na altura não tinha electricidade, nem estradas nem telefones. O isolamento era tanto que tudo o que eu vivi foi muito intenso. E a relação com o meu pai, com a minha mãe e os meus irmãos, numa família numerosíssima e aquela gente toda na aldeia ficaram marcadas profundamente no meu pensamento e no meu coração. Sinto que hoje sou uma privilegiada porque tenho esse mundo dentro de mim.

Tem necessidade desse acto de contemplação que hoje parece relegado para segundo plano?

Sim, porque isto tem a ver com a minha identidade, com a minha cultura. Há uma pintura que retrata os jovens de Trás-os-Montes. São jovens que eu encontro lá mas que são quase uma raridade. Vestem-se como aqui, têm os mesmos hábitos pois o mundo é cada vez mais pequeno. Têm uma aparência muito citadina, na aparência, nos objectos, na aquisição das tecnologias, mas ao mesmo tempo vão para o campo e vêem as cabras, as ovelhas...

Desenhou batatas velhas e transfiguradas... A observação da transformação da natureza é para si uma metáfora para a passagem do tempo?

Sabemos que quando deixamos as batatas apanhar luz, elas grelam. Lá em casa eu não deixo ninguém deitar fora as batatas greladas. Elas são motivo de interesse porque estão vivas, estão a transformar-se. A metamorfose dos seres vegetais é uma coisa que me toca e que preciso de observar. Então, peguei nessas batatas greladas e levei-as para o ateliê. Fiz uma série de desenhos porque aquelas batatas são uma metáfora sobre a vida e o tempo. Só passado algum tempo é que as batatas ganham esses grelos, que são nova vida e ao mesmo tempo é a velhice entendida como algo de grande beleza e que continua a ser aproveitável. Há pessoas que envelhecem e não são trapos, continuam a ter um papel na sociedade. Mas neste momento, com as pessoas a viverem muito mais, a nossa sociedade tem de criar espaços para elas. O meu pai morreu com 63 anos e eu achava que ele era velho. Hoje eu tenho 61 e não me considero velha. Há muita gente com 80 anos que faz uma vida brilhante e é uma velhice que tem de ser estudada.

Aquelas mulheres com vegetais a crescerem a partir dos seus rostos, como veias ou órgãos, o que simbolizam?

As pessoas, quanto mais envelhecem, mais o tempo lhes parece veloz. E então ficam com medo de morrer. Um destes desenhos é a cabeça da minha mãe, que é uma pessoa que eu adoro (eu desenho muito a minha mãe). Fazer estes desenhos é uma forma de a agarrar, de a prender, de deixar um testemunho de uma pessoa que é natural que vá desaparecer daqui a uns tempos. A transformação daqueles rostos com tubérculos é o tempo que se nota nas marcas que deixa nas suas caras. Quando as pessoas envelhecem numa relação normal com o tempo, as caras das pessoas velhas já não são caras, são vegetais, estão cheias de experiência.

É um discurso sobre o tempo e a vida, mas também sobre o corpo.

Não é só isso. Alguns rostos são fusões entre o rosto da minha mãe e o meu. E quando eu faço uma fusão entre a sua cabeça e a minha é uma maneira de questionar a minha identidade. É uma reflexão sobre a existência. E isso agudiza-se à medida que eu, com 60 anos, me questiono sobre o mundo que me cerca. Aqui não se sente os conflitos terríveis que há no mundo porque este é um mundo de paz. Também tem dramas e tragédias, há o medo da morte, da doença e da transformação, mas é um mundo que tem a ver com a dimensão dos campos. No fundo estou a reflectir sobre Portugal, que é um país que foi agrícola durante muito tempo e continua com uma agricultura cheia de dificuldades. Mas quando se vai à minha região vê-se toda a gente a trabalhar nas oliveiras, nas videiras... Eu tenho a sorte de ter uma mãe que mesmo depois da vindima me guarda umas videiras com uvas para eu ver...

A relação entre filha e uma mãe é incontornável na sua obra e assume uma dimensão quase visceral.

É realmente uma relação de sangue, de mente e de corpo. E nos últimos anos tenho começado a ver o mundo através da cara da minha mãe. E através dela eu começo a entender melhor aquela cultura e a minha.

Que assunto quer abordar nas pinturas das perdizes que se transformam num rosto?

As perdizes aparecem no Inverno, na altura da caça. Tenho uma relação afectiva com a perdiz, é uma ave muito bonita. Eu só consigo pintar a perdiz que os meus irmãos caçadores me oferecem, não consigo desenhar uma perdiz comprada numa loja. A prenda mais bonita que eu me lembro de ter tido quando era menina, tinha eu seis anos, foi o meu pai vir da caça, com o cinturão cheio de perdizes e oferecer-me uma. E aquela perdiz estava lindíssima e morta. Nunca mais a esqueci. Essa perdiz simboliza também uma certa vitimização das mulheres, mas sobretudo uma enorme beleza e os laços afectivos... E no final desta série, já sou eu, fundindo-me com a cabeça da perdiz. É um auto-retrato, que também é um diário. A minha pintura é muito simbólica, está cheia de metáforas.

A Graça Morais continua a fazer aquilo que parece um tabu na arte portuguesa actual: falar sobre si e sobre a vida.

Depende da arte contemporânea. O que acontece com alguns artistas é a não aceitação de uma certa sinceridade com os outros. Para nos aceitarmos como somos e para sermos sinceros com os outros numa relação de uma certa verdade, temos de ter um certo grau de amadurecimento e por vezes confunde-se a arte de vanguarda com esse lado dos fingimentos.

“A Máscara e o Tempo” está patente na Galeria Ratton (Rua da Academia das Ciências, 2C) até 31 de Janeiro. Aberta de segunda a sexta das 10.00 às 13.00 e das 15.00 às 19.30. A entrada é gratuita.

Time Out, 10 de Novembro de 2009

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Ana Cardim - A Jóia como Dispositivo


por Miguel Matos

A jóia como charneira entre a esfera pública e a esfera privada é o conceito por detrás da investigação e produção artística de Ana Cardim. A jóia tem sido desde sempre associada ao seu portador. A um corpo, logo, a um lugar íntimo, mas que ao mesmo tempo se relaciona num universo social, público, aberto à comunicação. Mas a jóia pode permanecer íntima pelas suas características semânticas ou herméticas ou pode abrir-se à interacção com outros que não seus portadores ou pode até funcionar como mecanismo ou dispositivo.

Introduzindo o conceito de “jóia-dispositivo”, Ana Cardim (Lisboa, 1975) entende que uma jóia possa operar através de plataformas transversais que – sem perder o seu referente original – ultrapassem as fronteiras comuns do conceito de Joalharia Contemporânea, tocando dinâmicas vigentes no quadro teórico e nas prácticas da designada Arte Actual. Ana explica: «Uma “jóia-dispositivo” é uma jóia que, através do seu uso, gera discurso crítico na esfera pública. É sobretudo um veículo de intervenção social que visa captar subjectividades e propôr novas vias de construção de sentido face a uma contemporaneidade que se apresenta sob o domínio do urbano nas suas variadíssimas vertentes e consequências sociais». Assim sendo, são de referir no contexto das suas práticas artísticas as peças Urban Help, Clean Your Mind e Garbage Pin, este último sendo um projecto que esteve recentemente em exposição na Galeria Klimt02 em Barcelona, depois MCO Arte Contemporânea, no Porto, e Galeria Articula, em Lisboa, passando agora para uma itinerância internacional. «Esta potencialidade da jóia reconvertida em espaço de sociabilidade e/ou lugar de discussão – capaz de estabelecer diálogos dinâmicos, de criar e recriar opinião pública –, é a via prática que ilustra o que defendo a nível teórico e que se pode observar nos meus últimos trabalhos», diz a joalheira.

Para Ana, o facto de muitas vezes a joalharia ser considerada um “parente pobre” da arte, é uma causa de revolta. Responde com peças conceptuais, que não são apenas adornos (embora reconheça o adorno como uma das vertentes intrínsecas da jóia). «Realizam-se muitas “coisas” no âmbito da joalharia que não podemos de nenhum modo inserir num quadro teórico de filosofia de arte actual. Além disso, o preconceito existe de modo alicerçado: quando ouvimos a palavra” jóia” remete-nos em geral para uma ideia de algo de puro adorno, uma “arte menor” artesanal, uma mera decoração estética ou um objecto de afirmação de status social. Porém, há que ter em conta que nem sempre é assim. Há de entender que jóia de puro adorno estético vai existir sempre, da mesma forma que sempre existirão belas pinturas para condizer com o tecido de um sofá ou com os cortinados de uma sala, o que não põe em causa toda uma outra produção pictórica que se reconhece no âmbito das artes. O que gostaria de trazer à luz, numa tentativa de reconhecimento por parte de críticos e teóricos de arte contemporânea, é que há jóias e “jóias”, ou seja, que há belos adornos de estética corporal mas que há também uma enorme produção de peças que veiculam uma inequívoca profundidade estético-conceptual. Olhar para elas como produção artística contemporânea, enquadrá-las e promovê-las nesse sentido, é necessário e urgente».

Para compreender a proposta de Ana Cardim importa descrever o funcionamento destes “mecanismos” como é o caso de Urban Help – Jóia Ansiolítica. Esta peça é um cinto que nos faz transportar um contentor. Dentro deste recipiente redondo e transparente, de aspecto clínico e funcional, encontramos um remédio contra crises de nervos. O potador do dispositivo apenas necessita de puxar para fora do contentor um disco daquele famoso plástico das bolhinhas e rebentá-lo até que a tensão se dissipe. Cada contentor contém sete discos recarregáveis. É um medicamento natural, sem contra-indicações e reciclável, pois o plástico, após a utilização, serve de enchimento para almofadas, também elas úteis para o relaxamento e, portanto, meio coadjuvante de tratamento.

Também dentro de uma lógica de funcionalidade social e psicológica encontra-se Clean Your Mind, jóia que consiste num grande pin que suporta um rolo de papel higiénico. A ideia é escrever nesse papel o problema que nos perturba o espírito e lançá-lo na sanita, como se fosse um ritual de purificação. A artista apresentou esta peça numa performance pelas ruas de Barcelona, por onde passeou uma retrete ambulante e pediu aos transeuntes que cumprissem este ritual de depuração mental. Estamos assim no âmbito de uma arte relacional, ligada à joalharia contemporânea / de autor e que expressa a ambivalência e transdisciplinaridade que esta área implica.

Mas o culminar desta concepção relacional da joalharia está em Garbage Pin Project. Tudo tem origem num pin criado por Ana Cardim. É um objecto minimal, um aro em metal que suporta um mini-saco de plástico, um pequeno saco transparente. Representa um caixote de lixo portátil, que carregamos connosco e que serve também de contentor visível para os outros. Vem com recargas de saquinhos, o que faz com que possamos depois fechar cada um deles e guardar ou deitar fora, consoante a nossa intenção. Serve, se quisermos, para comunicar através dos objectos que nele introduzimos. É um statement irónico sobre a nossa sociedade de desperdício, de consumismo e obsolescência. «A prata como material nobre e valioso, recurso natural e reciclável, é aqui confrontada com o plástico: material ordinário e barato, de origem sintética, responsável por uma grande parte da destruição do nosso eco-sistema», explica Cardim, salientando o carácter polissémico, paradoxal e de conflito na peça. O mesmo recipiente que para uns pode ser um estado intermédio de desperdício, para outros é um relicário, para outros ainda um veículo crítico.

Foi a pensar dos diversos usos e intenções que o Garbage Pin encerra que Ana Cardim pediu a 90 amigos e artistas que fizessem uso do Kit Garbage Pin. O dispositivo foi assim entregue a outros criadores e posto em funcionamento sem o controlo da artista. Cada utilizador encheu cinco saquinhos daquilo que considerou pertinente: lixo diário, despojos/dejectos do próprio corpo, items preciosos, recordações, etc num registo quase autobiográfico de cada um ou de afirmação social. Neste projecto entraram artistas de Portugal, Espanha, Itália, Reino Unido, Holanda, Suécia, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Áustria, entre outros países. Criou-se uma «plataforma de sentido partilhado». O resultado é exibido internacionalmente sob a forma de instalação e no catálogo que tem o inteligente subtítulo Worth VS. Waste. «Esta potencialidade da jóia reconvertida em espaço de sociabilidade e/ou lugar de discussão – capaz de estabelecer diálogos dinâmicos, de criar e recriar opinião pública – é a via prática que ilustra o que defendo a nível teórico e que se pode observar nos meus últimos trabalhos» - Ana Cardim em manifesto!