quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Nadir Afonso - "A matemática é a essência da obra de arte"


Miguel Matos teve uma aula de estética em casa de Nadir Afonso e ficou a perceber melhor a sua visão da arte.

Aos 89 anos, Nadir Afonso apresenta na galeria São Mamede uma nova exposição de pinturas a óleo sobre tela e guaches. “Renascimento” é um conjunto de imagens de cidades, o tema mais recorrente do artista. A Time Out aproveitou o pretexto e teve uma conversa que se transformou numa lição de estética e teoria da arte com o mestre do abstraccionismo geométrico.

A cidade é o tema que acompanha desde sempre o seu trabalho. Acha que a cidade é a grande realização humana, um símbolo da civilização?

Como arquitecto é claro que penso no funcionamento da cidade, mas como pintor o tema não tem importância nenhuma. O tema não é a arte. Quando o indivíduo começa a pintar, procura formas que o impressionem mas eu posso ser impressionado por leis que não são artísticas. Como arquitecto tenho de fazer obras perfeitas e a perfeição cria uma emoção, mas a perfeição não pertence à arte.

Antes de ser conhecido como pintor, chegou a trabalhar como arquitecto para Le Corbusier e Oscar Niemeyer. Acha que se não tivesse tido estas experiências a sua obra seria exactamente igual?

Não sei responder a essa pegunta. A arte é irracionalizável. Não sei até que ponto os meus conhecimentos arquitectónicos influenciaram a minha criação artística. É natural que sim, mas não tenho a certeza.

Não considera a arquitectura como arte?

Não, porque a arquitectura tem uma justificação que não é puramente dada pelas leis matemáticas. Está ligada à perfeição, que é uma coisa diferente.

E por ser uma actividade ligada a uma função específica, não é pura criação. Será por isso?

Exactamente. A função da arquitectura é habitada por leis da perfeição que não têm nada a ver com as leis da harmonia, como eu a entendo.

Ao longo da sua vida tem defendido esse princípio em diversos livros e estudos. Pode explicar essa sua concepção de arte e dos mecanismos que a rodeiam?

As leis que regem a obra de arte são leis concretas, matemáticas. Mas essa matemática não é apreendida pelo raciocínio e sim por uma intuição inata. Isto é um bocado complicado... Andei toda a vida a pensar e a escrever sobre isso. Ao mesmo tempo que fui pintor, procurei compreender esses meus impulsos intuitivos. O artista plástico tende a não racionalizar a sua actividade. O esteta, por outro lado, racionaliza mas não tem a intuição inicial. Tenho a impressão de que para se criar uma obra compreensível, capaz de se transmitir, o indivíduo tem de ter a intuição e a racionalização. E só então é que se pode construir uma crítica de arte. Na minha vida procurei ser um prático, ter impulsos intuitivos e depois compreender porque é que num quadro eu pus um quadrado e não um círculo. No fundo, quis compreender os mecanismos da criação...

Mas para além dessas regras, a sua criação procura a beleza?

A beleza tem limites. A obra de arte obedece a leis matemáticas e eu chamo-lhe beleza, mas outros chamam beleza à perfeição e à originalidade. O esteta confunde as coisas. Está a ver uma obra original e diz que é bela. Ela pode ser original mas não ser bela. Por outro lado, pode ser bela e não ser arte. A meu ver a beleza na arte é matemática.

Fala muito da importância da intuição, mas esse é um factor que está cada vez mais afastado da arte contemporânea, não é verdade?

Está, mas ela é essencial. É por isso que a minha concepção estética é oposta à concepção vigente. Pensam que a arte é a natureza vista através de um temperamento. Pensam que o que existe na arte é um factor psicológico do artista. Eu digo que não. O que intervém na arte é o regresso à natureza e a faculdade de o espírito sentir e empregar as suas leis. Eu digo que o espírito apreende a natureza mas não tem factores próprios que sirvam a arte.

Acredita que há sempre um raciocínio lógico por detrás da criação de cada obra de arte?

Sim. Cheguei a esta conclusão: as leis da matemática são incompreensíveis, mas há uma intuição que distingue o bom do mau. Eu não percebia porque fazia as coisas como fazia. Mas depois compreendi que não era uma coisa racional. O indivíduo sente mas não sabe compreender o mecanismo.

Mas pode-se criar uma obra de arte pelo processo inverso? Começar pelas regras e criar a partir delas?

Não. É preciso praticar e sentir primeiro essas leis. Acabei de escrever um estudo em que faço uma síntese de toda a minha démarche artística. Andei toda a vida a tentar compreender as coisas que sentia e acho que agora já consegui. Tenho a inpressão de ter conseguido finalmente fazer uma ligação entre a intuição inicial das formas e as conclusões que tirei depois de racionalizá-la.

E é através da matemática que podemos explicas os impulsos artísticos?

Sim, são fenómenos puramente matemáticos.

E isto funciona para a pintura, para a escultura... e para a arquitectura?

A obra de arte é puramente pictural e escultórica. A arquitectura já funciona de outra maneira.

Defende que a arte pode ser misturada com a política?

Jamais!

Mas muitos artistas defendem conceitos ideológicos através da arte...

As leis da arte não são sociais nem políticas. Na arte pura, o indivíduo deve pôr de parte todas essas manifestações.

A arte pura de que falou agora tem a ver com uma busca do absoluto. A que se refere o Nadir quando diz que procura esse absoluto?

É o ser total. É o ser em que a lei matemática é essencial.

Julga ter atingido já esse absoluto em algumas obras? Como sabe que o atingiu?

Sei disso quando olho para uma obra e não sinto necessidade de alterá-la. Quando sinto que posso ainda alterar uma obra é porque não cheguei a atingir o absoluto. Agora, pode haver uma evolução na sensibilidade. Eu posso fisicamente estar inferiorizado, mas, e talvez isto seja uma imodéstia, sinto que do ponto de vista mental e psicológico, eu evoluí. Não tenho as faculdades que tinha aos 30 anos mas tenho uma sensibilidade mais aguda e por isso posso retocar os meus quadros porque agora sinto mais a matemática da obra. Acho que a minha sensibilidade está mais refinada, mais requintada.

“Renascimento” está patente na galeria São Mamede (Rua da Escola Politécnica, 167) até 10 de Novembro. De segunda a sexta das 10.30 às 20.00 e sábados das 11.00 às 19.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 27 de Outubro de 2009

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Bela Silva - Dentadinhas e Arranhões


Miguel Matos andou à caça do veado com Bela Silva em plena galeria de arte.

O cenário: uma caçada com direito a luta violenta entre espécies. Auge da cena: “Ah, apanhei-te veadinho. Vou dar-te uma dentada”, diz o cão. “Morde mas com jeitinho”, diz o veado. “Vais ver que te como num ápice, nem vai doer”, diz o cão. “Lá estás tu com promessas. Vá, come-me lá de uma vez”, responde o veado.

O que se acaba de relatar é uma cena de “Stag Night”, exposição de Bela Silva na galeria Alecrim 50. São pinturas e esculturas de cerâmica inspiradas nas imagens de caça do século XVIII.

“Estava a olhar para tapetes persas e achei piada àquelas lutas em que às tantas já não se sabe a que animal pertence esta cauda ou aquele focinho. Numa visita ao Altes Museum, em Munique, fiquei parada a olhar para aquelas telas enormes, para o aglomerado de cães furiosos de olhos esbugalhados que mostram todos os seus dentes. A aparente vítima também mostra tudo o que a natureza lhe deu para se defender, numa luta de quem tem mais dentes. Noutras pinturas aparecem cães a olhar para os faisões de boca fechada muito perto a cheirar o seu jantar, ou a admirar a cor das belas penas, opto por esta segunda hipótese mais tranquila.”

Os cães de Bela Silva não são bem cães de caça. Mais parecem animais domésticos que nas suas aventuras chegam mesmo a ser patetas. Há um cão que se diverte debaixo de um javali.

Há outro que olha para nós, como que a perguntar “então, estou bem assim?” Uma matilha está a atacar um veado, mas parece que o veado gosta disso... “Nós às vezes gostamos de ser caçados”, comenta Bela por entre gargalhadas. A verdade é que se estamos a ser caçados isso é porque há alguém que nos quer comer... Serão estas imagens metáforas para possíveis orgias? “Com a chuva até apetece estar na cama, não é?”, responde.

Conotações e derivações de tema à parte, a verdade é que Bela chamou a esta série “Stag Night”, que em inglês significa despedida de solteiro. “Isto é a noite dos veados e é engraçado que despedida de solteiro em inglês diz-se noite do veado.” Uma noite estranha que nos aproxima das obras dos mestres do século XVIII com cenas contorcionistas de luta entre animais.

Para além das telas a óleo, estes animais povoam também peças em cerâmica, num registo mais abstracto. “Deixei de fazer cerâmicas durante dez anos, enquanto estive em Nova Iorque. Agora, até Maio estou concentrada nas cerâmicas e a produzi-las na fábrica Bordalo Pinheiro.” Em “Stag Night” Bela Silva mostra pela primeira vez os seus desenhos, que muita gente não conhece. São desenhos preparatórios para os seus trabalhos de cerâmica, feitos a caneta.

Bela é conhecida pelas suas pinturas coloridas em que representa meninas com traços inspirados no barroco. Mas esse período acabou. “Quero livrar-me daquilo que já fiz e começar novos trabalhos. Cheguei a uma altura em que o meu trabalho entrou em overdose”, confessa a artista. “As pessoas ainda querem que eu pinte meninas mas têm de perceber que há uma evolução... Um dia até posso voltar a isso, mas agora tenho necessidade de experimentar outras coisas. Fiz este tema só para a exposição, mas agora já estou farta de veados. É uma série isolada, uma brincadeira única.” Bela está a entrar numa fase de mudança, de desenvolvimento. Para já, decidiu que a próxima série vai entrar por influências japonesas.

“Stag Night” mostra cenas de caça, estranhas, cruéis, divertidas e até metafóricas. Mas não traz consigo grandes conceitos ou ideias filosóficas. São o que são. “As teorias são para os críticos inventarem, eu sou uma mulher do fazer”, diz Bela Silva.

“Stag Night” está patente na galeria Alecrim 50 (R. do Alecrim, 48/50) até 31 de Outubro. Aberta de segunda a sexta das 11.00 às 19.00. Sábado das 11.00 às 13.30 e das 16.00 às 19.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 13 de Outubro de 2009