quarta-feira, 24 de março de 2010

Marta Wengorovius - O banco mental de marta


Se há obras de arte que parecem necessitar de um manual de instruções, estes desenhos levam a ideia à letra. Os desenhos que Marta Wengorovius expõe na Galeria Alecrim 50 pedem movimento para que, ao aceitar a proposta da artista, se possa fruir da experiência total.

Desde há muito que Marta Wengorovius vem explorando um discurso sobre o corpo: “cada vez mais penso que o corpo um dia vai--se embora. Temos de ter luz no corpo e mantê-lo acordado, manter os sentidos apurados e saber o que sentes, porque isso depois apaga--se”, diz. Mas enquanto anteriormente o corpo se mantinha numa atitude de captação, agora a artista obriga o corpo a observar-se a si próprio através do movimento, do gesto. É uma performance que qualquer um pode realizar de si para si, percorrendo linhas. Porque a contemplação não é necessariamente uma coisa estática, tal como a acção não tem de implicar movimento, as peças que criou para “John, Edvard, Jorge, Bruce, Alberto e Agnés” vêm no seguimento da lógica de trabalhos seus anteriores chamados “Objectos de Errância”. Estes convocavam o olho e a forma como ele capta a luz para momentos de revelação e contemplação. Desses objectos minimais para os desenhos, Marta transpôs a ideia de trabalhar só com uma linha, uma coisa muito mínima, mas que consegue o máximo efeito visual.

A artista convoca para este encontro John (Cage), Edvard (Munch), Jorge (Silva Melo), Bruce (Nauman), Alberto (Carneiro) e Agnés (Martin) e todos aqueles que diante destas obras tomarem os seus lugares. Por entre as várias obras, dois dos desenhos em papel nesta exposição encontram um seu duplo em espelho. A referência para este método vem do trabalho do artista italiano Michelangelo Pistoletto (n. 1933), nomeadamente nos espelhos em que a imagem e o observador funcionam em conjunto e só nessa circunstância simultânea é que a obra vive.

“Nos anos 50, com Pistoletto, era importante aparecer alguém que dizia que nós fazemos parte do quadro, que estamos dentro dele. Isso já aconteceu há muito tempo e eu tenho a obrigação de acrescentar alguma coisa. Os espelhos aparecem numa ideia de poderes treinar o movimento”, explica a artista. Na obra dedicada a Alberto Carneiro essa intenção é clara. “É a ideia de poderes observar-te a ti mesmo a fazer qualquer coisa. Aqui fazes o movimento que é o mesmo que o artista fez ao criar o desenho”, diz Marta. “Então esse gesto estranho, eu queria que o sentisses no movimento que fazes com a mão. Neste caso não só estás dentro do quadro como tens uma tarefa para executar.”Se o desenho de Alberto Carneiro nos convida a fazer o gesto do próprio artista, o quadrado de Bruce Nauman pede para nos movermos sobre ele e assim entrar no seu ateliê. Não se acanhe: esta peça é mesmo para pisar, caminhando sobre a linha do desenho e observando o reflexo do seu movimento de pernas para o ar. Pode apenas imaginar a acção com o desenho sobre papel ou realizá-la com o desenho sobre o espelho.

No caso do banco de John Cage, este convida-nos a sentar e ouvir o silêncio à nossa volta com todos os ruídos que estão dentro dele. “O meu banco é mental”, diz Marta acerca desta obra. O desenho que tem como base o célebre quadro O Grito, de Edvard Munch, dá-nos a possibilidade de imitar com a boca a emoção do quadro e o palco de Jorge Silva Melo dá-nos espaço para sentir a nossa própria presença física. Agnés Martin propõe manter a felicidade de um despertar com a permanência da luz através de uma cortina branca às riscas.

“Quando se executa um destes gestos”, diz Doris von Drathen no catálogo referente à exposição da artista no ano passado, no Centre Culturel Calouste Gulbenkian de Paris, “algo estranho acontece com o observador: o que há pouco nos pareceu um objecto de arte museológico na parede, dissolveu--se.” Assim, a linha pintada ganha existência fora do quadro e transforma-se em movimento real.

Wengorovius alicia o visitante não só a interagir com a sua obra mas também a fazer parte da mesma. Aceita o convite?

“John, Edvard, Jorge, Bruce, Alberto e Agnés” está patente na Galeria Alecrim 50 (Rua do Alecrim, 48/50) até 30 de Abril. Aberta de segunda a sexta das 10.00 às 19.00 e sábados das 11.00 às 18.00. Entrada gratuita.

Time Out, 23 de Março de 2010

terça-feira, 16 de março de 2010

Noé Sendas - Documentos armadilhados


Para quem tem espírito de voyeur e morre de curiosidade sobre como um artista visual cria o seu universo, eis a oportunidade de espreitar, neste caso, para dentro da mente de Noé Sendas. Agora prepare-se, pois quando se espreita o alheio, nem sempre se vê o que se está à espera de ver... “Processo: Quem é Noé Sendas” é a auto-investigação que o autor apresenta no próximo sábado, no Atelier Real.A documentação do processo de trabalho na criação contemporânea é a ideia central do ciclo de residências artísticas “Restos, rastos e traços” no ateliê dirigido por João Fiadeiro. Esta semana o ciclo é protagonizado por Noé, artista visual que veio de Berlim, onde vive, para passar cá uma temporada, inserido num núcleo de criadores oriundos da dança. Parte deste projecto consiste num texto publicado no jornal do Atelier Real, assim como numa apresentação única nas instalações da companhia. Não será, portanto, uma exposição pura e dura. Será, sim, uma acção demonstrativa, seguida de uma conversa com o artista a que o público poderá assistir ou mesmo intervir. Pelo meio, vídeos, esculturas e uma banda sonora sempre à volta da identidade do autor e da sua relação com o espaço de trabalho.

Quem entrar neste simulacro de ateliê pode contar com um elemento surpresa. “Não quero desvendar já. É como um filme em que há um enredo e, dentro dele, um acontecimento. Se eu revelar à partida, perde o interesse.” Os visitantes podem contar com factores de perturbação dignos de um filme de David Lynch. Na verdade, a estranheza e o absurdo fazem parte do seu trabalho desde sempre. Noé Sendas é conhecido pelas suas esculturas e instalações com manequins realistas em poses insólitas, insinuando contextos urbanos. Desta vez serão expostos trabalhos que derivam daqueles que Noé apresentou recentemente no Porto e que consistiam numa série de fotografias manipuladas. O seu desenvolvimento inicia o processo que vem a público no sábado. São imagens de corpos “picadas”, uma apropriação de fotografias de domínio público, modificadas, amputadas, quase que transformando a imagem em escultura plana. O ambiente destas fotografias roubadas e mastigadas é surrealista, intrigante, conseguindo ao mesmo tempo uma subtileza que lhes confere mistério. “Ao contrário daquilo que faço na escultura, em que humanizo determinados objectos, nestas fotografias objectualizo as representações de seres humanos”, diz Noé. Numa mesa de madeira, as imagens estão dispostas sob volumes de vidros que contribuem para uma maior distorção daquilo que Noé nos deixa ver. E o que ele nos deixa ver pela primeira vez é também a construção de uma das suas esculturas. “Vou dar a ver umas coisas, mas sabendo que tenho outros trunfos neste jogo.” É um processo documentado, mas distorcido, como num truque de magia. Assim, Noé Sendas assume em público a mesma atitude que reside na generalidade da sua obra: tentando mostrar uma coisa, mostra afinal outra. O artista lança ao ar uma pergunta – Será a resposta esclarecedora?“

Processo: quem é Noé Sendas?” acontece no sábado às 18.00 no Atelier Real (R. Poço dos Negros, 55). Conversa com o artista pelas 19.30. Entrada gratuita.

Time Out, 16 de Março de 2010


Resgatado do arquivo, um texto mais antigo sobre o mesmo autor...


O predador de imagens
por Miguel Matos

Quem entrar na Galeria Cristina Guerra deverá ir preparado para um confronto de imagens insólitas e inquietantes. “The Hunter” é a proposta de Noé Sendas, nome recente mas já incontornável da arte contemporânea portuguesa. E não, as imagens que o leitor vê nesta página não sofrem de um defeito de impressão...

Em cada novo projecto, Noé Sendas apresenta uma personagem por si criada como mote para desenvolver um conceito. E se antes os temas foram “The Lodger”, “The Private Eye” e “The Collector”, agora entra em cena “The Hunter”. Desta vez, o artista recorreu a imagens de domínio público, evitando assim recorrer a actores ou câmaras. Pelo simples processo da edição de imagens Noé reuniu em si todos os elementos de uma equipa de filmagem, apropriando-se de materiais alheios como um caçador de frames. Um caçador que sonha viver as vidas de outras pessoas.

“São imagens tiradas de mais de 150 filmes”, explica Noé Sendas. “Piquei imagens com 5 a 10 segundos de filmes que já são de domínio público. O que me interessa mais no conceito são as imagens em si e não o contexto em que elas estavam inseridas. São pedaços de filmes série B da Hollywood dos anos 20, 40 e 50. No fundo, eu não quis criar propriamente uma narrativa, mas mais uma melodia de imagens. Escolhi filmes de domínio público para não interferir com direitos de autor e porque quando as imagens caem nesse estatuto é como se fizessem parte da natureza, podendo ser usadas livremente”.

“The Hunter” é um percurso constituído por três peças: dois vídeos (“Public Domain” e “Dead Weight”) e um conjunto/instalação de fotografias (“The Urban Legends”). As fotografias estão suspensas no espaço formando um pentágono em que o visitante penetra cautelosamente. A base de todo este universo é a criação de uma personagem e a partir daí começa a investigação. É sempre assim que começam as últimas produções de Sendas.

Desta vez a personagem que desencadeia a exposição é uma pessoa que está a caçar imagens pertencentes à história de arte. O que resulta deste processo é uma série de melodias visuais que transmitem uma sensação de voyeurismo relacionado com a história e não com situações reais. É a postura de uma personagem que se assume como voyeur e que tenta apropriar-se das imagens que são de outros para torná-las suas. Depois de passarem pelo seu crivo, são já uma outra coisa.

Noé Sendas faz parte de um conjunto de artistas portugueses que escolheram Berlim como cidade base, tal como Nuno Cera e Rui Calçada Bastos. Será que esta tendência recente é uma prova de que Lisboa é uma cidade limitativa para os artistas portugueses? “Fui para Berlim em 1999”, conta Noé. “Nessa altura eram poucos os artistas portugueses lá residentes.

Neste momento é lá que vivo e o panorama está diferente. 99% dos artistas portugueses que lá estão vivem ainda do mercado nacional. No entanto, ao nível da oferta cultural, Berlim é muito maior do que Lisboa e há muito mais acesso a comissários que por lá passam por ser uma cidade central.

Há lá muitos portugueses como há espanhóis, finlandeses e holandeses. Isto deve-se a toda uma qualidade de vida que é superior a muitas cidades europeias neste momento. Em Berlim existe uma troca de ideias e de vivências que é muito mais intensa do que em Lisboa. Cá ainda não foi criada uma ideia da arte como um produto que se pode exportar. No entanto, o mercado artístico português é ainda a base de sustentação para muitos.” A temporada de caça artística abre esta quinta-feira.

Time Out, 8 de Janeiro de 2008

sábado, 13 de março de 2010

Lara Torres - Declínio


Mas quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações”.

Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust.


Lara Torres tem salientado no seu percurso o desejo de agarrar um gesto, um vestígio, uma presença. Sem se deixar limitar pela provocação que representam os seus “artefactos de moda” no questionamento das fronteiras entre as disciplinas da moda, da arte e da performance, ela segue como uma obsessão o tema da memória.

“Interessa-me evocar a presença de algo que pertence ao passado, algo como uma ruína que pode ser conseguida através da evocação mimética de um objecto/peça de roupa que nos é familiar”. Em séries anteriores, como em “Mimesis / Fac Simile”, Lara pretendia cristalizar um momento, um traço ou marca pessoal de um alguém abstracto. Numa camisola petrificada em cerâmica, a tentativa de não esquecer, de fazer perdurar um elemento significativo de um segundo passado. Parar o tempo ou fazer o tempo perdurar no próprio tempo, nesse discurso sobre a memória que é simultaneamente íntima, individual e social. O passar do tempo na metáfora destes objectos atinge então uma concretização mais apurada e irónica num relógio em látex, feito a partir do molde de um relógio real. O material látex necessita de um cuidado regular de manutenção, com o fim de manter o seu aspecto, e represeneta uma interessante metáfora que sublinha a tentativa de agarrar a lembrança dos minutos. O relógio não é mais do que a representação tridimensional, não funcional e já gasta desse mesmo relógio. É agora apenas uma sombra que urge manter.

Nesta sua fase mais recente, fruto da investigação no contexto do mestrado “Fashion Artefact” que desenvolve no London College of Fashion, Lara Torres deixa essa cristalização e explora uma libertação progressiva da memória. A mudança de materiais e meios é prova dessa evolução, ao abandonar a cerâmica e o látex. Ao contrário de um material que pede manutenção, uma acção consciente do indivíduo para reter e manter, a cera, ela própria, por mais tentativas que se realizem, está condenada a perecer. Como material orgânico e natural, ela presta-se à degradação.

Num passo adiante, Lara Torres complexifica o discurso ao optar por apresentar os objectos de forma menos directa, usando o vídeo. É o largar da materialidade do objecto físico. Letting go.

Ao criar uma escultura em cera, evocativa de uma peça de vestuário masculino (uma camisa), Lara alude ao mecanismo da memória de que Platão falava na sua hipótese do bloco de cera. Platão pensou que a mente guarda impressões da mesma forma como a cera é marcada na sua superfície com um objecto pontiagudo. Para Platão, a impressão feita na cera duraria apenas o período correspondente ao seu processo de erosão. Com o passar do tempo, este mesmo bloco gravado transformar-se-ia numa superfície lisa, como no início, o que, conforme Platão, equivale ao esquecimento completo, o estado inverso do processo decorrido. Mais tarde, filósofos como Henri Bergson e Paul Ricoeur discorreram sobre a memória com teorias que de modo indirecto se espelham no trabalho recente de Lara Torres.

No processo metafórico que deu lugar a “Involuntary Memories / Effacing Series”, as nossas recordações de cera, após derretidas pelo calor da vida e da morte, transformam-se em quase fantasmas. Matéria informe mas, ainda assim, presente. São as coisas que esquecemos do nosso consciente, mas que se mantêm presentes num outro nível, inconsciente. As situações do passado que escolhemos deixar para trás mas que, involuntariamente, fazem parte da nossa construção. Algumas delas fragmentos aos quais nem sabemos aceder por não reconhecermos agora a sua forma nem textura, tal como uma mancha de cera que fica no chão da memória. E isto torna-se mais espectral quando o objecto de discurso já não é apresentado directamente, mas sim através do seu registo em vídeo. A imaterialidade total é alcançada, ficando apenas a luz e o seu movimento. Será alusão inconsciente à mistura de luz e escuridão de que falava Parménides, quando analisava os elementos constituintes da memória?

Nesta série é possível evocar uma das teorias da psicologia acerca da memória que é, de certa forma, ainda análoga às ideias referidas de Platão. Falamos do declínio, tal como o descreveu o investigador Henry Gleitman. Assim como as montanhas sofrem a erosão dos ventos e das águas, também os traços mnésicos sofrem, com a acção do tempo, um declínio gradual. A memória sofreria um desgaste dos seus traços até chegar ao seu total desvanecimento e desintegração. São apenas hipóteses teóricas com qualidades filosóficas e poéticas, a ciência é outra conversa.

Alguns autores defendem que a memória é um elemento constituinte da identidade (individual e colectiva). Será o esquecimento uma forma de dar lugar a novas construções de identidade? “Não penso muito no futuro”, responde a autora... O trabalho de Lara avança num sentido cada vez mais fragmentado e fragmentário. Uma fantasmagoria com contornos quase psicanalíticos em que penetra, cada vez mais fundo, sondando os rios subterrâneos do inconsciente e correndo o risco deliberado de neles perder o pé. Uma narrativa progressivamente destruída. Restam elementos soltos, como recordações à espera de vida.

Miguel Matos

terça-feira, 9 de março de 2010

Alexandra Mesquita - As espirais irrequietas da vida


Miguel Matos encontrou os objectos que Alexandra Mesquita procura na Galeria Arte Periférica.

Elementos essenciais à sobrevivência. É esta a ideia que Alexandra Mesquita explora ao recolher estes “Artigos Procurados”, a exposição que mostra os seus mais recentes sonhos e pensamentos. Tudo começa com “Sinal de proibição para proteger utopias”, peça que abre os portões para este mundo redondo de aventuras. Alexandra Mesquita revela os seus segredos: “é um sinal de proibição especial. No vermelho que está à volta da peça está uma série de situações que habitualmente proibimos, mas estão em amálgama, sobrepostas, e por isso não se consegue ler cada uma delas. Erguida no meio, tridimensionalmente, está uma frase: ‘proibir a proibição’. Isto é um reforço que se constitui ele próprio como uma utopia. No centro, a branco, está uma série de utopias que são minhas, mas que não se percebem, pois estão sobrepostas”.

Estas peças lutam para serem objectos sem nunca o conseguirem ser. “Penso que, de acordo com a maneira como o nosso corpo é constituído, há uma parte que é racional e que é bidimensional, constituída pelo bem e o mal, o sim e o não. Depois, há uma terceira dimensão composta pela nossa emoção. Por isso, é normal que estas escritas bidimensionais queiram ser som e emoção, queiram ser lidas, mas estão na vertical, tal como o nosso corpo”, explica Alexandra.

O observador destes objectos baixa-se, vira-se para um lado e para o outro ao perceber que estes elementos são afinal letras, signos e símbolos reconhecíveis. No entanto, ao não conseguir dominar todos os ângulos daquilo que está à sua frente, torna-se praticamente impossível aceder às palavras que estas letras secretamente formam. Frustração é o sentimento causado por esta impossibilidade de trazer a realidade ao domínio do observador. A luta é intencional e provocada pela amálgama conflituosa criada pela artista.

Estas “rodas da sorte”, sistemas circulares de signos e símbolos, bonecos e sinais de perigo organizados em espirais e caleidoscópios, são desorientadoras das nossas crenças e teimosias. Representam fugas à realidade e confrontam-nos com manias, obsessões e desejos que temos como habitantes de um país rectângulo que gostava de ser circular. Um país que se contorce para ser uma ilha ou uma jangada à deriva, à conquista de territórios. É aquele “estou bem onde não estou porque só quero ir onde não vou” característico da nossa identidade. Relógios que param o tempo, sopas e caldos entornados, incêndios e questões ambientais.

Tudo isto espelha inquietações. “Sem ser sempre salva” simboliza, nas palavras da artista, “a necessidade de termos uma bóia de salvação. No entanto, se nos perdermos no meio líquido, a melhor solução não seria ficarmos a boiar, mas sim nadar contra o meio que nos está a afogar. Isto é uma ironia. O título é uma frase escrita na própria peça mas que pode ser lida de diferentes formas. O cinzento à volta da bóia pode ser o mar revolto como pode ser a chapa de um navio de onde queremos tirar essa mesma bóia.”

Mas há reflexões mais íntimas nestes trabalhos, como as coisas que dizemos em códigos nas obras compostas por letras, palavras, exclamações e onomatopeias. Alguns destes círculos ligam-se às raízes da artista nos campos da poesia visual. São sopas de letras, palavras cruzadas e outros labirintos como os caminhos tortuosos das ansiedades em círculos infinitos.

“Artigos Procurados” está patente na Galeria Arte Periférica (Centro Cultural de Belém, loja 3) até 31 de Março. Aberta todos os dias das 10.00 às 20.00. Entrada gratuita.

Time Out Lisboa, 9 de Março de 2010

domingo, 7 de março de 2010

Clara Martins - Pétalas de desejo


Duas personagens apaixonaram-se num pátio de vasos esquecidos ao sol. Cactos são as espécies ainda activas numa história que se conta ao observador apenas através de fragmentos. Mas isto é apenas o início de “Botânica Flesh”, pois o que se segue é um desabrochar de sentimentos e emoções, garridas como as cores das telas.

Clara Martins assume a sua paixão pela botânica e recorre à ilustração científica para recolher inspiração. Assim, desenraiza as flores e faz crescer pernas. Através da associação de dois universos díspares, cria uma nova ordem no universo, uma subversão maliciosa. Ao arrancar os objectos da sua significação habitual, parece ir de encontro às ideias surrealistas. Vejamos: se as duas grandes direcções do surrealismo, como salientou Yvonne Duplessis no livro O Surrealismo, são, por um lado “sugerir o mistério do inconsciente, por outro subverter o real”, Clara Martins, consciente ou inconscientemente, seguiu-as sem qualquer preconceito. Eis um exemplo contemporâneo e arejado do surrealismo como “realidade supraordenada, supranatural, onde desaparece a aparente contradição entre o sonho e a realidade”, como escreveu Walter Hess no livro Documentos para a Compreensão da Pintura Moderna. Surreal sim, na sua estética de descontextualização do real, abrindo as portas do inconsciente para uma intromissão transformadora do indivíduo. Não tão surreal no sentido ideológico ou mesmo programático. No entanto, sabendo do registo quase automático da sua pintura e da livre associação de elementos pictóricos, com recurso às ferramentas da consciência, pode-se reforçar mesmo tal ligação à estética surrealista.

Nos trabalhos mais recentes de Clara Martins, por entre os canteiros imaginários que a artista nos propõe visitar, o crisântemo é a flor que aparece mais recorrentemente. Segundo algumas filosofias orientais, esta flor simboliza a simplicidade e a perfeição. Começa a florir no Outono, estação das folhas caducas, período de tranquilidade antes das tempestades e da abundância após as colheitas. É considerada uma planta que liga a vida e a morte, o Céu e a Terra. Tal como o erotismo se liga a ambas as dimensões. Se a artista americana Georgia O'Keefe (1887-1986) erotizou estilizada e descaradamente todo o tipo de flores, Clara Martins não se coibiu de ir mais além e criar uma quase narrativa fantástica. A sua utilização de partes do corpo feminino, descontextualizadas e, de certa forma, tornadas em fetiche, faz talvez lembrar a ousadia do alemão Hans Bellmer (1902 - 1975) quando este montava pernas de diferentes manequins, criando obras desarmantes na série “Die Puppe”. As flores das imagens de Clara Martins tomaram como suas pétalas, as pernas de bonecas desmembradas, num erotismo torcido e mascarado de inocência lúdica.

Como lolitas vegetais e perversas, estes seres transgénicos vivem de simbolismos ocultos. Se quisermos procurar paralelismos entre Clara Martins e outros autores, estes tocarão certamente em alguma pintura do francês Yves Clerc (n. 1947), também ele criador de metamorfoses em alguns aspectos análogas a estas, nomeadamente quando faz uso da sua mestria em texturas para transformar mulheres em seres vegetais, num plano mais decorativo do que o de Clara Martins, divertido na primeira camada, perturbador logo na subsequente.

Em “Botânica Flesh” há uma dimensão oculta, que pertence à esfera da intimidade, mas que se revela, mesmo que timidamente. O que se apresenta e se camufla sob estas pétalas é também o desejo. Mas não só o desejo, como também um lado fetichista. Se um indivíduo sente estímulo erótico ao contemplar o órgão sexual feminino, esse desejo é reprimido socialmente ao ser considerada negativa a sua expressão. Opera-se assim uma deslocação para algo que o simbolize, o que pode ser, por exemplo, um sapato - extremidade oposta e representativa deste desejo. Podem ser também as pernas que ao órgão sexual conduzem, tal como o sujeito desejante poderá apenas ficar pela analogia da flor e do seu gineceu. Midori, figura central da cultura do fetiche em Nova Iorque, salienta (no livro The Beauty of Fetish) que “nós os humanos somos criaturas simbólicas. Interpretamos o mundo à nossa volta em conjuntos de símbolos apreendidos e comunicamos uns com os outros através de uma série de símbolos de linguagem, música e arte comummente aceites. O sexo é uma forma de comunicação, de facto, a expressão sexual humana é quase inteiramente um conjunto de comportamentos apreendidos. Naturalmente, como um reflexo do mundo à nossa volta e da história antes de nós, a nossa simbologia sexual inclui os materiais que representam os nossos objectos de desejo”.

A flor, tantas vezes usada como símbolo erótico ganha nestas pinturas um carácter quase agressivo. Entre a ironia, o humor e a alusão ao órgão sexual feminino, torna-se surpreendente notar que estas flores tanto despontam a partir de espinhosos cactos como de domésticos vasos, tal como os instintos femininos, tantas vezes selvagens, outras tantas formatados e contidos pelas regras sociais. As saias, decentes coberturas de supostas indecências, são relegadas para as folhas com seus padrões de xadrez. São superfícies de texturas geométricas, como tecidos antigos, de batas de escola ou de saias de Verão. Espelham o interesse da artista pela moda como fenómeno estético e social. Nos trabalhos que realiza, são estas saias que captam clorofila para alimentar as belas pernas e estimular o seu crescimento, presas em cálices e corolas que farão parte de ramalhetes destinados a ofuscar intenções e inventar outras, quando ofertados em ocasiões urgentes e apropriadas.

Se por um lado, Clara Martins cria este universo de flores psicadélicas e explode com elas em múltiplas cores, por outro, a artista decide aprisionar estas mulheres que, de cabeças ocultas sob as pétalas, destas não poderão fugir. Se elas são símbolo de erotismo e fecundidade, não será menos verdade que isso as limita. É a partir deste pensamento que passamos à escultura que centraliza e unifica os desenhos e pinturas apresentados. Tudo começa em “Mihanovichi”, pintura em que os corpos destas mulheres aparecem representados de uma outra forma: com vestes coloridas e espaços vazios no lugar de cabeças. Essas cabeças aparecem depois numa estrutura de grandes dimensões. Uma enorme flor multicolor em que, a partir de fichas eléctricas, sobem aos céus os caules/veias que logo a seguir, em movimento descendente, chegam ao chão e finalmente se transformam em cabeças humanas. Cabeças essas que, ao não se apresentarem com rostos, se tornam universais, menos particulares e por isso, mais sujeitas a interpretações pessoais de quem as observa. Íntimas, como refere Clara Martins.

Miguel Matos