sábado, 13 de março de 2010

Lara Torres - Declínio


Mas quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações”.

Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust.


Lara Torres tem salientado no seu percurso o desejo de agarrar um gesto, um vestígio, uma presença. Sem se deixar limitar pela provocação que representam os seus “artefactos de moda” no questionamento das fronteiras entre as disciplinas da moda, da arte e da performance, ela segue como uma obsessão o tema da memória.

“Interessa-me evocar a presença de algo que pertence ao passado, algo como uma ruína que pode ser conseguida através da evocação mimética de um objecto/peça de roupa que nos é familiar”. Em séries anteriores, como em “Mimesis / Fac Simile”, Lara pretendia cristalizar um momento, um traço ou marca pessoal de um alguém abstracto. Numa camisola petrificada em cerâmica, a tentativa de não esquecer, de fazer perdurar um elemento significativo de um segundo passado. Parar o tempo ou fazer o tempo perdurar no próprio tempo, nesse discurso sobre a memória que é simultaneamente íntima, individual e social. O passar do tempo na metáfora destes objectos atinge então uma concretização mais apurada e irónica num relógio em látex, feito a partir do molde de um relógio real. O material látex necessita de um cuidado regular de manutenção, com o fim de manter o seu aspecto, e represeneta uma interessante metáfora que sublinha a tentativa de agarrar a lembrança dos minutos. O relógio não é mais do que a representação tridimensional, não funcional e já gasta desse mesmo relógio. É agora apenas uma sombra que urge manter.

Nesta sua fase mais recente, fruto da investigação no contexto do mestrado “Fashion Artefact” que desenvolve no London College of Fashion, Lara Torres deixa essa cristalização e explora uma libertação progressiva da memória. A mudança de materiais e meios é prova dessa evolução, ao abandonar a cerâmica e o látex. Ao contrário de um material que pede manutenção, uma acção consciente do indivíduo para reter e manter, a cera, ela própria, por mais tentativas que se realizem, está condenada a perecer. Como material orgânico e natural, ela presta-se à degradação.

Num passo adiante, Lara Torres complexifica o discurso ao optar por apresentar os objectos de forma menos directa, usando o vídeo. É o largar da materialidade do objecto físico. Letting go.

Ao criar uma escultura em cera, evocativa de uma peça de vestuário masculino (uma camisa), Lara alude ao mecanismo da memória de que Platão falava na sua hipótese do bloco de cera. Platão pensou que a mente guarda impressões da mesma forma como a cera é marcada na sua superfície com um objecto pontiagudo. Para Platão, a impressão feita na cera duraria apenas o período correspondente ao seu processo de erosão. Com o passar do tempo, este mesmo bloco gravado transformar-se-ia numa superfície lisa, como no início, o que, conforme Platão, equivale ao esquecimento completo, o estado inverso do processo decorrido. Mais tarde, filósofos como Henri Bergson e Paul Ricoeur discorreram sobre a memória com teorias que de modo indirecto se espelham no trabalho recente de Lara Torres.

No processo metafórico que deu lugar a “Involuntary Memories / Effacing Series”, as nossas recordações de cera, após derretidas pelo calor da vida e da morte, transformam-se em quase fantasmas. Matéria informe mas, ainda assim, presente. São as coisas que esquecemos do nosso consciente, mas que se mantêm presentes num outro nível, inconsciente. As situações do passado que escolhemos deixar para trás mas que, involuntariamente, fazem parte da nossa construção. Algumas delas fragmentos aos quais nem sabemos aceder por não reconhecermos agora a sua forma nem textura, tal como uma mancha de cera que fica no chão da memória. E isto torna-se mais espectral quando o objecto de discurso já não é apresentado directamente, mas sim através do seu registo em vídeo. A imaterialidade total é alcançada, ficando apenas a luz e o seu movimento. Será alusão inconsciente à mistura de luz e escuridão de que falava Parménides, quando analisava os elementos constituintes da memória?

Nesta série é possível evocar uma das teorias da psicologia acerca da memória que é, de certa forma, ainda análoga às ideias referidas de Platão. Falamos do declínio, tal como o descreveu o investigador Henry Gleitman. Assim como as montanhas sofrem a erosão dos ventos e das águas, também os traços mnésicos sofrem, com a acção do tempo, um declínio gradual. A memória sofreria um desgaste dos seus traços até chegar ao seu total desvanecimento e desintegração. São apenas hipóteses teóricas com qualidades filosóficas e poéticas, a ciência é outra conversa.

Alguns autores defendem que a memória é um elemento constituinte da identidade (individual e colectiva). Será o esquecimento uma forma de dar lugar a novas construções de identidade? “Não penso muito no futuro”, responde a autora... O trabalho de Lara avança num sentido cada vez mais fragmentado e fragmentário. Uma fantasmagoria com contornos quase psicanalíticos em que penetra, cada vez mais fundo, sondando os rios subterrâneos do inconsciente e correndo o risco deliberado de neles perder o pé. Uma narrativa progressivamente destruída. Restam elementos soltos, como recordações à espera de vida.

Miguel Matos

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