terça-feira, 28 de julho de 2009

Música com sabor a Sugu


Miguel Matos não consegue resistir a um pé de dança ao som da artista Susana Guardado a.k.a. DJ Sugu

A pista de dança: lugar de música. Lugar de escape. Lugar de engate. Morada de corpos e copos no exorcismo dos nossos males. O melhor e o pior aqui se passa. É lá que nos exprimimos, é aí que nos sacudimos até horas indecentes. É por aqui que passa também a arte de Susana Guardado, numa tentativa de registar e documentar vivências nocturnas – suas e nossas – ao mesmo tempo que nos dá música como alter-ego de nome DJ Sugu.

“O meu atelier é a rua. São as festas, a minha relação com os outros”. Na sua última exposição individual, na galeria 3+1, Susana Guardado apresentou um painel que representa a sua experiência pessoal na música e na arte. “Era uma composição fotográfica com registos de chão, de sítios onde já dancei, onde pus música ou onde gostaria de dançar.” As peças artísticas de Susana Guardado relacionam-se com a música, as suas histórias e as experiências que nos proporciona. Mas a música e a arte eram entidades separadas até que no Verão passado a artista esteve em residência com outros autores na Gulbenkian. “Não fiz nada daquilo que tinha planeado e acabei por passar música todos os dias no decorrer dos trabalhos. Fui impulsionada a explorar os dois aspectos: as artes visuais e a música.”

Susana começou a passar música no Europa (Cais do Sodré), local onde se sente mais à vontade. Mais tarde, numa festa de anos de uma amiga, Susana juntou-se ao performer Miguel Bonneville e fizeram pela primeira vez um DJ set em conjunto. A partir de então e desde Setembro que, no Europa, o primeiro sábado de cada mês é deles. As festas Black Sugu são uma reunião mensal de catarse pela música num ambiente de comunhão já raro de se ver em Lisboa. Um transe de boa disposição com uma dose de loucura e decadência. Os DJs dão os hits ao público e este replica em esfuziante dança. “O que caracteriza as nossas festas é o facto de não haver nada que as caracterize. São festas de espírito aberto. A tónica são os sucessos musicais, aquilo que faz com que as pessoas mexam. O que nos interessa é esta união entre as pessoas e elas saberem que podem ser aquilo que quiserem. Buscar os hits tem a ver com esse acto de reconhecimento, de memória que faz com que as pessoas se sintam mais libertas.” Nestas festas concentra-se boa parte da comunidade artística e alternativa da cidade. Parece uma Lisboa em Nova Iorque.

Agora a arte e a música de Susana andam de mãos dadas. “Há muito tempo que quero cruzar estes universos pois a música é universal e marca a nossa vida. Venho a amadurecer este processo desde a minha primeira exposição, na extinta galeria Artfit onde apresentei uma colecção de objectos em vinil ao mesmo tempo que passava as músicas cujos títulos estavam inscritos nas placas”. Susana inicia agora o projecto “Personal DJ”, em que se oferece para ir a casa das pessoas passar música. Obedece a horas e a algumas regras e depois há um registo de imagens e sons que documentam estas experiências.

O texto de apresentação da sua obra resume bem quem é Susana Guardado, “de topógrafa a etnógrafa, a artista revela-se psicanalista dos seus próprios traumas, usando a visualidade como catarse para purgar o sentimento de culpa que a assola: culpa de viver mais intensamente a noite que o dia, de sentir mais do que ponderar, de sucumbir facilmente ao prazer... mesmo sabendo que isso é parte integrante e intransponível do seu ego”.

Time Out, 29 Abril 2008

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O dia em que a arte e o fotojornalismo colidiram

As fotografias manipuladas de Edgar Martins puseram-no em polémica inflamada com o jornal New York Times. Mas será o fim da sua carreira artística? Miguel Matos foi à procura de respostas.

As fotografias de Edgar Martins, vencedor da última edição do prémio BES Photo, andam a correr o mundo numa polémica sobre os limites da arte, do jornalismo e da intervenção digital nas imagens publicadas em meios de comunicação. Tudo se passou nas páginas da revista do jornal americano New York Times que encomendou ao artista português um ensaio fotográfico sobre a crise do mercado imobiliário. As fotografias mostram o interior de casas abandonadas e ruínas de edifícios em 19 cidades dos Estados Unidos. O trabalho fotográfico “Ruins of the Second Gilded Age” foi publicado na revista e no site do New York Times, tendo depois sido retirado da net. Porquê? Porque todo o ensaio foi divulgado como sendo um trabalho sem qualquer manipulação digital de imagens, mas um leitor mais atento conseguiu descobrir uma série de pistas inequívocas que deixam a descoberto muito truque de Photoshop. “A maioria das imagens não reflectiam inteiramente a realidade que pretendiam mostrar. Se os editores soubessem que as fotografias tinham sido digitalmente manipuladas, não teriam publicado o ensaio fotográfico”, é o comunicado do NY Times, que até à data de fecho de edição não respondeu às tentativas de contacto da Time Out Lisboa. A notícia do presumível embuste corre já em dezenas de jornais, revistas e blogs. Por todo o lado há indignação, acusações e defesas que de degladiam num tumulto de argumentos e debatem a arte e o fotojornalismo como arqui-inimigos. Curioso é ver que os jornalistas crucificam o fotógrafo, assim como os artistas esfregam as mãos de contentes com este percalço, ao ver um eventual concorrente na iminência de se afundar. Os críticos e curadores de arte contemporânea relegam a questão para segundo plano e defendem Edgar Martins.


As fotografias que valeram a Edgar Martins 25 mil euros de prémio BES Photo eram imagens captadas na escuridão, com exposições prolongadas, que lhe valeram noites passadas ao relento. Quanto à manipulação digital a elas aplicada, não se faz referência, mas qualquer espectador que as visse, adivinhava a sua existência. Gerry Badger, fotógrafo, arquitecto e crítico de fotografia, diz, no livro publicado no contexto do BES Photo: “Cada imagem fotográfica é um paradoxo. Somos implicitamente levados a acreditar (e com uma força poderosa) na verosimilhança de uma fotografia. Contudo, cada imagem fotográfica é essencialmente um simulacro estático e artificial da realidade”. O que Edgar Martins fez no NY Times foi, por exemplo, copiar algum lixo que está no chão de uma sala, e reproduzi-lo ao lado, para preencher uma falha na imagem. Recortou um interruptor e copiou-o noutra parede para criar simetria. Edgar Martins não é um jornalista e esta é a sua primeira fotoreportagem (talvez também a última). Ele é, acima de tudo, um artista e foi no conhecimento do seu trabalho de arte que o NY Times lhe fez uma encomenda. Desta decisão pode-se questionar: até que ponto é que um artista se consegue submeter à condição de retratista, à simples captação da realidade?


A posição do júri do prémio Bes Photo é de menosprezo a esta confusão, visto ser partidário da divisão entre fotojornalismo e arte. E se naquele há regras, nesta elas são sempre questionáveis e, portanto, tudo é permitido. O crítico de arte Alexandre Pomar comenta a polémica da seguinte forma: “Espero que esta situação possa fazer avançar a discussão sobre a questão da verdade e da mentira na fotografia e na arte em geral. As fotografias são sempre construídas, mesmo aquelas que passam por transparentes, objectivas ou realistas. É isso que o debate vai tornar claro. A manipulação que se faz por processos digitais apenas apura, melhora aquela que é possível por processos analógicos”. Mesmo que se trate de uma fotografia de reportagem há sempre uma construção que assenta no espaço e no tempo, no recorte de uma cena e no parar de um momento. “Toda a arte pode ser uma ilusão, grande parte da arte tem a ver com a mentira”, admite Alexandre Pomar. “Essa ideia de averiguar se uma imagem é ou não verdadeira tem muito pouco sentido. Não há razões para considerar que o fotojornalismo tem uma garantia de verdade ou de autenticidade e sabe-se que todas as fotografias passam sempre pelo Photoshop. Esta discussão tem-se afastado do tema do trabalho, sobre a crise ecomómica e ela não é modificada ou viciada pela alteração fotográfica”. E acrescenta ainda: “Parece usar-se uma abordagem convencional ou ingénua e mesmo redutora da fotografia "jornalística" mais tradicional numa situação em que se encomenda a um fotógrafo-artista (e se aceita) um trabalho artístico de propósito documental”.


Hoje em dia, devido às capacidades digitais, a criatividade passou a assumir um papel preponderante e é preciso distinguir a criatividade encomendada daquilo que é a criatividade autónoma em que o artista adapta a realidade à sua visão. A Time Out pediu um parecer sobre esta história a João Palmeiro, presidente da Associação Portuguesa de Imprensa: “Parece-me que o protagonista deste caso está de boa fé e que não pretende enganar ninguém”, responde. “Aqui há uma confusão que se estabelece porque estas regras estão muito fluidas. O que me parece ser o caso é a vontade de o encomendador ter um produto que, para além de traduzir uma realidade, o faz com uma determinada qualidade estética”. Na opinião de João Palmeiro, essa vontade foi mal interpretada. “Estamos perante uma falta de educação acerca dos valores e direitos associados à criatividade, o que permitiu que um jornal muito conceituado encomendasse a um artista uma visão da realidade, não o acautelando suficientemente de que essa realidade deveria estar contida dentro dos limites jornalísticos. Por outro lado, o artista entende que isso não constitui para ele um limite e que não pode fazer um relatório daquilo que vê sem lhe dar uma qualidade estética. Por vezes as duas partes não concebem que a encomenda possa ser mal-entendida. Situações destas acabam por ser ridículas”, conclui. A declaração de Hamburgo, que os editores europeus assinaram na semana passada em Lisboa trata exactamente estas questões de autoria e direitos de difusão, para além de discutir e regular o uso das tecnologias e a educação para a criatividade.


É claro que num jornal nem o mais ínfimo pormenor de manipulação é aceitável. E é clara também a posição do New York Times acerca da modificação digital de imagens. Aqui, tanto o fotógrafo como os editores foram ingénuos. O primeiro ao achar que nunca ninguém notaria a sua intervenção nas imagens. Os segundos por acharem que um artista seria tão objectivo quanto um jornalista. Terá Edgar Martins metido o pé na argola? Certamente, pois poderia ter tido mais cuidado na apresentação e defesa do seu trabalho. Terá ele dado um tiro no pé? Só o tempo o dirá, mas no campo artístico, os grandes nomes estão a seu favor. A curadora independente Lúcia Marques já teve oportunidade de trabalhar com Edgar Martins. Quando tomou conhecimento desta história, a sua primeira reacção foi dizer: “é um excelente profissional e para mim é inacreditável que o Edgar tenha mentido numa situação em que tenha manipulado as fotografias”. Lúcia Marques acha que “por um lado se está a dar muita divulgação ao Edgar, mas num primeiro momento, tudo isto prejudica-o. No entanto a memória das pessoas é curta e se o trabalho dele é bom, o seu sucesso vai continuar. Isto até pode ser positivo pelos debates que podem surgir, mas é preciso aproveitar as polémicas no melhor sentido e não alimentar esta história comezinha”. Para já, está na calha a edição em livro deste projecto que será exposto em Outubro na Galeria Graça Brandão, em Lisboa.

Edgar Martins em entrevista

Quando entregaste estas fotografias para publicação de alguma forma sonhavas com uma polémica destas proporções?

Eu já previa que surgisse este debate, mas não o rumo que a conversa tomou. Apesar de eu não ter divulgado a forma como estas imagens foram produzidas, também nunca tentei esconder o facto de que estas imagens representavam construções e nunca escondi os próprios originais. Eu não sabia como é que este ensaio fotográfico iria ser apresentado ao público nem vi os layouts do artigo em antemão.


Mas então tu nunca baseaste o teu trabalho na premissa da não utilização de manipulações digitais?

É claro que nunca disse isso. O facto de eu não ter utilizado Photoshop em projectos específicos não significa que nunca o utilize. Sempre evitei falar sobre o processo de trabalho das minhas fotografias. Faço com que as imagens sejam ambíguas para que sejam as próprias pessoas a pensarem no porquê de as coisas estarem ali. O meu erro foi ter divulgado esses elementos em entrevistas. Com isso algumas pessoas formaram a ideia de que eu sou um purista e isso não é verdade. Apesar de eu não ter usado computadores nos projectos mais conhecidos, por vezes recorro a eles em outros projectos que provavelmente são menos divulgados. Como artista tenho que recorrer a todas as técnicas à minha volta.


Mas no site da tua editora, a Aperture, aparece um texto que salienta o facto de não usares tratamentos digitais, texto esse que foi, entretanto, alterado...

Não tenho qualquer controlo sobre essas sinopses que são escritas por outras pessoas e que depois são divulgadas. É óbvio que afirmei isso, mas no contexto de projectos muito específicos, como o livro “Topologies”.


Já aquando da atribuição do prémio BES Photo, disseste à Time Out que queres levantar questões e asumir comentários à realidade através das tuas fotografias...

Em vez de fazer um registo factual, estou a comentar a situação e a assumir-me como autor de um ponto de vista. Não são meras observações. Para aqueles que não entendem a relação entre a arte e a fotografia, isto parecerá apenas uma justificação. No fundo, cada uma destas fotografias assume a priori que é uma representação e portanto lida também com a questão de comunicar ideias.


Nas fotografias do BES Photo usaste Photoshop?

Essas imagens são quatro obras de um projecto extenso e que contou com várias coisas, nomeadamente as longas exposições, duplas e triplas exposições e, em alguns casos, elementos de digitalização. Mas não quero falar mais do processo. Neste contexto do NY Times percebo porque temos que falar disso, mas no campo das artes isso não faz sentido. Até mesmo no livro “Topologies”, o tal que foi definido por não ter intervenção digital, há sempre imagens que têm de passar por um processo digital, mas isso não significa que a construção da imagem seja digital. Na maioria das vezes é uma questão de restauro da imagem, para não ter riscos, por exemplo. Mas de agora em diante vou optar por não falar acerca destes processos porque se está a perder demasiado tempo a questionar as coisas erradas.


E quando o NY Times te encomendou este projecto, falou-se sobre a não utilização de intervenção digital?

Não posso ser explícito em relação a isso. Só posso dizer que tenho consciência das ansiedades que existem em relação a essa questão. O nosso ponto de partida, meu e do jornal, era diferente. A postura do NY Times tem sido de admitir que houve uma contradição, mas não me culpando directamente por ela. As pessoas podem ler nisso o que quiserem.


Então isso simplesmente não foi debatido antes de fazeres o trabalho?

Não posso dizer isso. A questão não é tão simples e por isso é que não posso dar uma resposta.


Mas faz parte das regras do jornal a não manipulação das imagens...

Não tinha conhecimento disso. Fiquei a saber depois, mas isso não significa que eles não me tenham dado a conhecer essa posição. Só que eu entendi que essas preocupações seriam aplicadas apenas no meio estritamente jornalístico. Se eu estivesse ciente de que isto era um trabalho totalmente jornalístico e que seria passível de acção em tribunal caso agisse em contrário, não me colocaria numa situação destas.


Achas que esta polémica se pode transformar em publicidade para o teu trabalho?

Esta controvérsia está a levantar questões sobre parâmetros e fronteiras que são desconfortáveis e que me parece serem evitadas no meio jornalístico. Através do meu trabalho sempre tentei silenciar o sensacionalismo e essa é a minha atitude na vida, tento evitar a intriga e o conflito. Se pode dar uma plataforma diferente ao meu trabalho, sim, é verdade. Para os puristas da fotografia, pode proporcionar uma plataforma negativa, mas para aqueles que de facto gostam de fotografia e de debate, pode ser uma coisa positiva. Para já, houve mais visitas ao meu website nos últimos dias do que nos últimos anos.

Time Out Lisboa, 22 Julho 2009

domingo, 19 de julho de 2009

Brian Kenny - Odisseia Artístico-Pessoal de um Wigger




Brian KennyBrian Kenny

Odisseia Artístico-Pessoal de um Wigger

Por Miguel de Matos

Quem é leitor regular da Umbigo lembra-se concerteza da capa da edição 13, Slava Mogutin. Foi com Slava que o artista americano Brian Kenny veio a Portugal neste Verão - os dois criaram o colectivo Superm, desenvolvendo trabalho em vídeo, fotografia, desenho, grafitti, inatalação e mural. E foi com eles que a Umbigo passou alguns dias a fazer turismo dentro da nossa Lisboa e arredores. De Slava já vos contámos a história. Por isso aqui fica uma das muitas conversas tidas entre o Noobai, o Crew Hassan, a Brasileira, o cais do Ginjal e um quase secreto hostel no Saldanha....

Antes de mais, um esclarecimento acerca de um conceito que será útil no texto que se segue acerca Brian Kenny: wigger. O urbandictionary.com define wigger da seguinte maneira: Um indivíduo caucasiano do sexo masculino, normalmente nascido e criado nos subúrbios, e que demonstra um forte desejo de emular a cultura e o estilo hip hop afro-americano através da moda “bling” e princípios de conduta relativos à chamada “thug life”. A este conceito está também associado, em Portugal pelo menos, o fenómeno tuning.

Afinal de contas o que significa para ti o conceito wigger e o que pretendes dizer sobre isso? É uma crítica? É um elogio ao seu estilo?

Muitas pessoas usam esse termo de uma forma negativa. É como um branco chamar preto a um negro. Eu não vejo as coisas assim. Assumo-me como um wigger, mas viro o conceito de pernas para o ar e aceito-o. Eu gosto de ser um wigger. Não se trata exactamente da cultura negra, mas sim da cultura hip hop, que é muito mais abrangente e já não é uma questão de raça...

Mas podemos ir buscar outras interpretações, também pelo facto de ser um estilo associado a uma etnia... Existe a questão racial neste teu trabalho?

É a cultura hip hop que estes rapazes adoptam, embora isso ainda seja visto de um ponto de vista racial. O hip hop é o rock da minha geração. Cresci com este género musical sempre à minha volta. Na escola toda a gente vestia roupas de hip hop, é natural que eu goste disso. Mas conheço muitos brancos que são relutantes em relação a serem muito óbvios no que diz respeito a gostarem de hip hop porque não querem ser vistos como brancos a fingirem que são negros. E eu acho que isso é muito estúpido. É por isso que uso tanto esse termo. Não o vejo como algo negativo. Tem as suas raízes tradicionais entre as pessoas negras, mas hoje em dia move-se para além disso. Por outro lado, é óbvio que o termo wigger é uma distinção racial, por isso, tentar explicar o termo sem incluir a questão da raça não funciona. A série wigger não pretende falar de barreiras raciais. Fi-lo porque considero-me um wigger, gosto de wiggers e por isso decidi, juntamente com o Slava, fazer uma exposição com esse tema. É tão simples como isso.

E o que há de sexual nisso?

Porque acho os wiggers sexy? Não sei. Porque é que as pessoas acham que os saltos altos são sexy? Acho-os sexy e pronto. Quando se cresce sexualmente, muitos dos pensamentos sexuais têm a ver com aquilo que desejas ser. Quando eu era um miúdo, lembro-me que a maior parte dos rapazes populares da escola - e que eu queria imitar - eram wiggers. Usavam todos roupas largas, eram muito masculinos. A cultura hip hop orgulha-se de ter uma imagem masculina, dura e colorida.

No entanto, tu misturas isso com a cultura gay.

Pois. É isso que me atrai.

Então não estás a enfatizar o aspecto racial do tema, mas sim a cultura urbana e a cultura hip hop em particular... Mas não achas que muitas das pessoas que adoptam esse look o fazem apenas por uma questão de moda, sem terem qualquer noção de todo o background?

Sim, claro. Podem até nao gostar de hip hop. Mas porque tens que ter isso em conta? Se quiseres vestir alguma coisa, veste. Que se lixe.

A introdução de caracteres e palavras russas nos desenhos, o que significa?

Muitos desses desenhos comecei a fazê-los em museus. Outros fiz em conjunto com o Slava, até em aviões. Depois comecei a introduzir caracteres e símbolos russos nos desenhos, que vêm do meu fascínio por ele. À medida que desenhava, reparei que já intruduzia esta caligrafia virtualmente em todos os desenhos. E eu nem sei ler em Russo, apenas escolho as letras e as palavras que me agradam pelo seu aspecto visual. Nem me lembro do seu significado nem do som que fazem. Agora uso estes símbolos em tudo simplesmente porque gosto deles.

Nem tudo no teu trabalho, e nas obras Superm, faz sentido. Muitas vezes parece mais um resultado imediato sem quaisquer conceptualizações...

Em todo o nosso trabalho, nós nunca tentamos planear demasiado. Quanto mais planeamos, pior resulta. A arte que nós fazemos baseia-se na espontaneidade. Quando começo um desenho, não penso muito, limito-me a desenhar e ver o que sai. Isso é muito mais interessante do que tentar inventar um conceito. É triste ver que os outros artistas produzem um tipo de arte que parece muito fabricada. A arte que me interessa, de que eu gosto, é aquela que é pessoal. Fico cansado de ver paisagens, etc. Interessa-me a arte que diz algo sobre o artista. Que o artista fez porque isso significa algo para ele. Muitas vezes estás perante uma peça artística e nao sentes nada. Na minha arte tento fazer apenas aquilo que quero. Desenho apenas aquilo que quero ver. Se me pusesse a desenhar pensando num conceito popular ou algo que os outros quisessem ver, não seria nem de perto tão bom como quando estou a criar algo que sinto.


A atribulada vida de Brian


Brian Kenny nasceu na Alemanha mas foi viver para a América ainda era um bebé. Devido à profissão dos seus pais, viveu no Tenessee, Kansas, Colorado, Novo México, Maryland, Virginia, New Jersey e Nova Iorque. Andou em escolas diferentes todos os anos da sua vida. «O aspecto positivo disso é que me tornei muito bom em lidar com as mudanças, adaptei-me a andar por todo o lado e a conhecer novas pessoas. O lado negativo é que não tenho relações duradouras, não tenho amizades que tenham durado mais de dois anos, não tenho raízes. Uma das questões mais frequentes quando conheces alguém é: de onde és? Não sou alemão, vivi três anos aqui, três anos ali e em sítios muito diferentes, por isso é dificil dizer. Às vezes falo com pessoas que dizem ter amigos que conhecem uma vida inteira, e eu gostaria de saber o que isso é».

Jogou futebol quando era miúdo, mas a experiência mais séria como atleta foi quando praticou ginástica, dos 11 aos 15 anos. Pertencia a um ginásio onde treinava seis dias por semana, três horas por dia e ia a campeonatos. Não era tremendamente bom, mas levava o desporto muito a sério. Entretanto, teve que desistir porque ficou demasiado alto para este desporto. Mais tarde, praticou mergulho e freesbie. A dada altura começou a desenvolver o gosto pela música e entrou numa escola de música. «Quando andava no liceu queria estudar trompete, o que não fiz, mas entrei num coro. Descobri que gostava de cantar e então, quando estava a viver no Novo México, comecei a ter aulas de canto. Depois fomos para Massachussets e ofereceram-me uma espécie de bolsa para ir para uma escola privada de música. Era uma coisa em que eu era realmente bom e nessas alturas, quando descobres uma vocação, tentas segui-la. Mas o meu coração não estava empenhado nisso e foi por essa razão que acabei por desistir. Estava sempre a cantar para velhos, sempre numa língua diferente e músicas que tinham sido escritas há séculos... E não conseguia andar com os meus colegas porque eles eram muito diferentes de mim, eles eram os típicos cantores líricos e eu era um wigger. Mas foi muito bom andar nesta escola pois aprendi muito sobre música, o que mais tarde apliquei quando comecei a fazer música electrónica. Hoje faço todas as músicas para os nossos vídeos. Mas não penso em fazer música apenas. Acho que a minha música é um complemento da minha arte».

Depois de todas estas experiências, Brian conseguiu um emprego numa empresa em New Jersey, mas não resistiu muito tempo. «É horrível trabalhar numa empresa, dentro de um edificio enorme, num cubículo a fazer trabalhos que não me diziam nada. E gastar a tua vida e toda a tua energia num emprego desses não vale a pena». Finalmente, a empresa mudou-se e havia a possibilidade de sair ou ser deslocado para West Virginia. «Decidi acabar com tudo. E foi nessa altura que conheci o Slava. Foi mesmo na altura certa. Ele apareceu e eu fiquei completamente deslumbrado porque ele vivia a sua vida, ganhava o seu dinheiro a fazer o que lhe apetecia e a expressar as suas ideias. Senti que era o meu despertar e foi então que recomecei a desenhar e a fazer arte. Mudei-me para Nova Iorque e em 2004 fui viver com o Slava».

E para acabar a estrevista... Como é que decidiste finalmente enveredar pela carreira artística? E como evoluiram os desenhos pelos quais começaste?

Acho que os meus desenhos só começaram a ficar mesmo muito bons no ano passado. Foi quando abandonei todas as minhas ideias anteriores e conceitos e comecei a criar coisas mais pessoais e interessantes. Ao mesmo tempo, tinha medo de fazer um monte de porcarias mas decidi desenhar na mesma, embora sem mostrar a ninguém e sem me preocupar. No entanto, quando olhei para os desenhos achei que eram os melhores que já tinha feito. E por isso continuei e agora sinto-me confiante para trabalhar e expôr em museus e galerias. E sinto que mais tarde ou mais cedo, estes desenhos darão lugar a pinturas.

E daí para os Superm com Slava Mogutin...

Tivemos a ideia de criar o colectivo Superm no ano passado. Basicamente porque começámos a trabalhar sempre em conjunto e porque ambos trabalhamos individualmente temas que se interligam. Primeiro ele mostrava as fotografias e eu os desenhos, mas depois chegámos a um ponto em que desenhávamos e faziamos vídeos juntos, ele tirava fotografias enquanto eu fazia os vídeos e já não funcionávamos separadamente.


Revista Umbigo, Setembro 2006

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Kolovrat: entre o caos, a ordem e a entropia


Kolovrat: entre o caos, a ordem e a entropia
por Miguel Matos

“Estou a descobrir uma coisa: aquilo que se relaciona com o corpo está automaticamente relacionado com o espaço”, diz Lidija Kolovrat, a criadora nascida na Bósnia e que desde 1990 escolhe Portugal como seu território emocional.

Na sua pesquisa artística, Lucio Fontana pensou no vestuário como extensão e evolução natural da sua obra, saltando fora da tela que já tinha esquartejado na busca de novos espaços de intervenção plástica. Segundo Germano Celant, curador da Bienal de Florença de 1996 sob a égide do tema Looking at Fashion, Fontana buscava “a fronteira entre interior e exterior, entre tecido e pele, entre vestuário e nudez”. É nesta tradição artística que podemos enquadrar o trabalho de Lidija Kolovrat.

A criadora corta, retalha, cola, queima, junta e separa, recicla e abandona. Com este movimento paradoxal, Lidija Kolovrat cria a partir do caos controlado. Ao mesmo tempo que tudo no seu trabalho é fruto da espontaneidade, nada é deixado ao acaso. O aparente improviso é sempre pensado, calculado. Só após lançadas as bases de trabalho é que ela se lança na experimentação. As buscas de volumes, de torções de materiais e distorções de linhas e cores, são manipulações numa demanda plástica, uma procura de meios de expressão mutáveis e mutantes. O corpo aparece como suporte de uma peça. Não é a peça que serve o corpo. A roupa (e falamos de roupa como nomenclatura de um determinado objecto que pode ser autónomo, ou seja objecto “por si”) não elogia o corpo, não serve este, mas veicula ideias, mensagens, preocupações. Tal como o anti-desenho acabava por apelar a objectos indefinidos que por esta qualidade se definiam e saltavam do papel e dos materiais ao desenho atribuídos, Kolovrat cria peças de roupa que são talvez anti-roupa (?) ao abandonarem a tridimensionalidade de um adereço tradicionalmente destinado ao corpo. São como telas que se podem usar ou como saias que se podem pendurar. São tecidos serigrafados, pintados, esculpidos directamente sobre o corpo, desrespeitando-o no processo, mas obedecendo a este em última instância. Em casos extremos, uma peça deixa de ser aplicável ao corpo para representá-lo ou simbolizá-lo, marcando até a sua ausência, ganhando assim autonomia. Dois vestidos unidos pelos braços, uma roda de corpos, num registo performático. Todo este experimentalismo apropria-se de alguns processos e materiais da moda e não deixa de ser moda, mas utiliza a linguagem das artes, terminando num produto híbrido com este resultado desconcertante, provocatório e por vezes aleatório. Estes elementos pertencentes ao mundo filosófico ou social são depois mastigados, declinados para darem origem a vestuário. O vestuário como medium e não como função.

Exprimir e repensar um modo de vida, sublinhar a liberdade, reaproximar a arte do quotidiano, como os artistas pensaram a obra de arte total. Repescando o contexto da arte futurista e a sua relação com a moda, rejeitando os espartilhos das artes plásticas, a autora Florence Müller refere a estética do efémero de Marinetti e Giacomo Balla que traduzia em tecido “os elementos de síntese estudados em pintura, como a linha-velocidade, as formas-barulhos e os ritmos cromáticos”. Lidija Kolovrat, analogamente às linhas orientadoras dos futuristas, recontextualiza o indivíduo no meio social e urbano enfatizando os fenómenos sociais, provocando o questionamento acerca da nossa posição face ao mundo físico e ao mundo das ideias, aos condicionalismos políticos e ideológicos. Não se poderá falar de um conceito unificador da sua obra mas sim de um leitmotiv que insiste, contra a moda passageira e mundana, num uso lúdico destas peças, uso esse que reforça a idiossincrasia de quem a porta e não o espelho do gosto da época.

Numa das suas colecções mais bem conseguidas, a autora pega fogo a uma saia vermelha e com isso quase incendeia todo o seu atelier. Em outra das suas experiências, veste um amigo com um casaco que posteriormente é envolvido em látex, imobilizando o voluntário durante horas. Ele só é libertado à força de tesouras que finalmente redefinem as aberuras do casaco e revelam a sua forma e aspecto finais - registo final de um acto performático? Um casaco de aspecto usado adquire mais uma camada semântica ao ser “desenhado” a quente por pontas de cigarro acesas. Casacos de cabedal obsoletos pela mudança de gosto ao longo de 20 anos ganham novos volumes pela subversão da sua normal utilização. Eles são sujeitos à inversão, recortados para os mesmos membros em novos locais e ganham assim nova ordem. É este o método de Lidija Kolovrat: pegar nas regras, nas coisas normalizadas, repensá-las e apresentá-las à luz das suas preocupações ecológicas, sociais e políticas.
Lidija está neste momento a mudar de estado criativo. Está a deixar para trás o já histórico atelier/galeria Pedro e o Lobo, onde tem alimentado o seu KolovratLab e está a deixar progressivamente o ambiente Moda Lisboa como plataforma onde apresenta as colecções ao grande público e à imprensa. Doravante, os seus fiéis clientes entrarão num outro casulo. O atelier será construído na intimidade da sua casa e as colecções serão apresentadas em galerias ou outros espaços menos convencionais, adicionando mais um ponto à indefinição e multidisciplinaridade das suas peças. Este leilão na P4 Live Auctions funciona como um ponto de situação, uma visão histórica, uma reflexão retrospectiva sobre vinte anos do trabalho de Kolovrat.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Matthias Herrmann


Matthias Herrmann

Sexo – desmembrado, intelectualizado e multiplicado

por Miguel Matos


O que seria do exibicionista sem o voyeur? Como distinguir os nossos receios das nossas fantasias? Onde acaba o sexo e coeça a morte? E afinal que raio de arte é esta? Já agora, ainda vale a pena discutir o significado de uma obra de arte? Eo artista, pode ele ser a sua própria ferramenta de trabalho? E um pénis, é apenas um pénis, um ícone da sociedade ou uma arma mortífera? As respostas a estas perguntas não se encontram neste texto, mas Matthias Herrmann pode dar algumas pistas...

Em cada fotografia, o alemão Matthias Herrmann (n. 1963) dá vida a uma nova personagem que tem tanto de si como de cada observador. O meio que veicula a sua ambígua mensagem é a ironia e o humor, tendo o sexo (o seu) como elemento omnipresente. De facto, o pénis, o seu próprio pénis, é quase sempre um dos actores nestes intrincados puzzles conceptuais. O pénis como matéria plástica que acarreta sempre conotações diversas e por vezes contraditórias, sempre polémicas, numa arte que, sendo de cariz gay, não se pode confinar a esta “gaveta”.

Matthias Herrmann é um herdeiro directo de Robert Mapplethorpe e Cindy Sherman. De Mapplethorpe, ele resgata o universo gay, com todos os seus clichés e fantasias, os fantasmas e as repressões sociais. No entanto, Herrmann não se fica pelo aspecto do desejo e da beleza musculada ou pela esteticização de um quase submundo de músculos e práticas sexuais. Ele, como Mapplethorpe, pega nesses elementos e cria cenas irónicas em que fotógrafo e modelo se confundem e entrecruzam. Herrmann presta culto também ao corpo, o seu corpo especialmente. Um corpo trabalhado de ex-bailarino e que obedece também ele ao cliché do homem gay. E é com esta auto-representação encenada em múltiplos papéis, em esquizofrénicas personagens, que a sua obra se aproxima de Cindy Sherman. Tal como esta é a modelo de todas as suas imagens, também Herrmann trabalha sobre a sua própria plasticidade. No entanto, ao passo que Sherman esquarteja, suja, pinta e abusa de próteses, Herrmann mantém a integridade da imagem que veicula do seu corpo e, tal como ela, utiliza o corpo como matéria plástica para personagens que extravasam a sua própria identidade. Já Robert Mapplethorpe, ao executar os seus auto-retratos, nunca se afastava da sua pessoa.

É partindo destes ícones da história de arte como referências conceptuais e estéticas que Matthias Herrmann parte para a apropriação e utilização de outras referências. Cada imagem é meticulosamente pensada e está presa a elementos reconhecíveis da sociedade e da arte, num faz-de-conta repleto de sarcasmo e humor. A frequente utilização de frases dentro de cada imagem é uma apropriação de citações de actores famosos, de textos históricos, de filósofos, etc, que ganham novos contextos e que contribuem para a conceptualização e significação de cada obra. As séries Paris Text Pieces (1998), XX Portfolio (1999) e Blue (1999) são exemplos disso.

Em The Cum Pieces (1994-95), o artista concebe obras de uma grande beleza a partir de manchas de esperma, material que também inspirou o fotógrafo Andres Serrano. Em conversa com a Umbigo, Matthias falou um pouco sobre esta série: «as cumshots foram realizadas pouco antes de eu ter sido infectado com o vírus da SIDA (em 1999). Mas já nessa altura eram uma meditação sobre as qualidades do sémen em relação à criação da vida e ameaça à mesma. A coloração nestas imagens vem do facto de eu ter utilizado papel fotográfico a preto-e-branco não revelado, que foi exposto à luz do sol em diferentes intensidades e tempos (daí as diversas cores). Depois, o sémen foi “disparado” sobre o papel, o que gera uma reacção química que eu depois fotografei. No ano passado fiz uma série com o meu sémen já infectado. É claro que existe uma grande mudança nestas imagens, mas isso não é visível... ou será que é?». O facto de ser seropositivo afecta o artista na sua vida diária e, claro está, na sua forma de viver, de pensar e criar arte. «No início, quando soube da minha infecção, o trabalho tornou-se mais sombrio, não deliberadamente. De facto, só mais tarde dei por isso. Quando decidi ir para a “praça pública” com o meu estado de saúde incluí, por exemplo, a minha medicação para o HIV nas imagens e aludi ao perigo que o meu corpo expressa». No entanto, este é um aspecto que não deve sobrepor-se a todos os outros. «No geral o facto de ser seropositivo é um factor importante no meu trabalho. Mas espero que haja mais “camadas”, mais níveis inerentes às obras. Não gostaria de limitá-las àquilo que uma pessoa com HIV tem para dizer... e não gostaria de ver os outros a limitarem-me a isso».

Outro trabalho merecedor de destaque é a série Hotel (1999/2003), em que o artista explora os conceitos dicotómicos de público/privado. A série tem para mim um especial interesse: num quarto de hotel gosto de arrumar as minhas coisas apenas o suficiente para o habitáculo se tornar funcional. Agrada-me sentir que estou num quarto estranho. Há algo de desconfortável e simultaneamente excitante. Na verdade, um quarto de hotel é um espaço público, partilhado por imensas pessoas (o que o torna também mais intrigante, basta imaginar o que é possível acontecer nesse espaço), mas é também um local resguardado de olhares, uma esfera com alguma privacidade onde o utente pode ser quem quiser, até mesmo ele próprio. É essa ideia que Matthias Herrmann desenvolve. É claro que se mantêm as frases irónicas e recontextualizadas, a ironia, a sexualidade, o ridículo, o assumir de personalidades diferentes que cabe a cada um descortinar e interpretar.

Digital Cocks (2002) assume a obsessão pela plasticidade e multiplicidade de conotações do pénis. No entanto, aqui ele é reduzido a mais um dos elementos de uma natureza morta, figurando num quadro subversivo de estética clássica. Encontramos outra exploração da clássica natureza morta na série Old Masters (2002), em que as fotografias mostram uma bela composição de frutas numa taça. Mas, se repararmos com atenção, vemos que sobre a fruta ou sobre a taça, existe sempre um fluido gelatinoso e meio translúcido que nos faz lembrar algo que nada tem a ver com a cena em questão...

Em todas estas obras há uma constante e quase maníaca orquestração conceptual, uma encenação de elementos ambíguos. Matthias assume: «Conceptualizo muito o meu trabalho (estudei muito a arte conceptual) – mas não tanto a imagem individualizada. E adoro quando as pessoas dizem coisas que “começam” com as minhas obras, quando elas são o gatilho para ideias e pensamentos. Penso que uma vez que o trabalho de um artista sai para o mundo, deve estar aberto a todas as formas de conceptualização. De facto, sempre admirei obras que funcionam em vários níveis. Por exemplo, fico contente quando algumas pessoas acham que o meu trabalho é pornográfico enquanto outras preferem ver as estratégias conceptuais que estão por detrás». A obra de Matthias Herrmann, apesar de coerente, está em constante mutação e apenas um olhar atento nos dá a oportunidade de conjecturar acerca das verdadeiras intenções do artista.

Revista Umbigo, Dezembro 2005

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Rui Effe - Hand Job


Rui Effe- Hand Job

por Miguel Matos


«É através de um outro que me torno um eu livre. Eu descubro-me como um eu livre através da sapiência do outro» - Rui Effe

Se até ao presente projecto, o trabalho de Rui Effe denotou sempre uma tendência para discursar sobre a dor física e emocional, sempre num registo metafórico em que o corpo e as suas incapacidades e/ou limitações eram omnipresentes, desta vez, o artista muda a sua entoação. É agora o conhecimento próprio através de uma ligação a um outro que está em questão.

A série Hand Job começou com um conjunto de experiências em colagens sobre recortes/silhuetas sob o tema da masturbação. A masturbação entendida como “modalidade” de extracção daquilo que está dentro de nós. A masturbação como exploração, não apenas auto-exploração como também exploração do prazer do “eu” através de um outro – a mão do outro. Um outro indefinido, uma entidade que não vemos, que não se deixa ver. Apenas a mão, o instrumento exploratório, simbólico. O corpo que vemos em silhuetas é sempre o corpo próprio, nas suas múltiplas dimensões, personalidades. O corpo social, o corpo psicológico, um corpo carnal, o corpo das emoções. Muito embora nunca nos seja dado a ver algum traço identificativo ou pessoal da personagem, aqui e além vemos um coração, um órgão vital, elementos dos quais não sabemos a proveniência, poucos, mas que nos indiciam uma orientação pessoal. Em todo o caso, há nesta série um claro afastamento plástico, técnico e psicológico em relação à sua anterior exposição individual, Circo Completo, na Galeria Bernardo Marques. O corpo fragmentado que Rui propõe em Hand Job não o é pela mutilação mas sim pelo explorar de diferentes realidades dentro de uma mesma. Ecos de obras e séries mais afastadas no tempo como na exposição My Poche and My Pocket, apresentada no Porto e em Braga.

A um nível meramente plástico/estético, existe uma aproximação inconsciente aos universos visuais de um António Palolo (em inícios de anos 80), em período constituído por telas que representavam a figura humana através dos seus contornos. De facto, nesta fase, encontrar o seu “eu” era também a demanda deste pintor, uma chadada “metafísica pessoal” repleta de figuras que questionam o “eu” e evocavam uma ancestral memória colectiva. Contudo, sabemos que Rui Effe não teve contacto prévio com estas obras de Palolo e, para além disso, os diferentes rostos que nos aparecem em contornos incertos são sempre alter-egos do artista, sendo apenas as mãos os elementos pertencentes a um outro elemento humano. Por outro lado, se quisermos encontrar mais analogias, o desenho de contorno, o decalque, a cópia anatómica praticada por Rui Effe encontra ecos no trabalho de Lourdes Castro que trabalhava a sombra de seus amigos, tal como Effe retrata-se através de corpos de seus conhecidos, contornando-os no papel como Lourdes Castro contornava os seus em lençóis de sombras. Em ambos, os corpos unidos. Ou a ausência deles testemunhada pelos seus traços. Em todo o caso, há que realçar que o desenho pelo contorno é o sinónimo de corpo desnudado. «Toda esta redundância tem a ver com o facto de procurarmos incessantemente o nosso próprio prazer, o prazer da própria imagem e dar aos outros aquilo que realmente entendemos, julgando sempre que o que nos preocupa é uma inquietação comum», explica o artista.

Não sabemos se este é um registo de work in progress, sabemos ser um projecto livre e impulsivo, de contornos autobiográficos. Hand Job é, certamente, um ponto de viragem.


Radiografia

Rui Effe nasceu em Braga em 1974. É licenciado em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto com pós-graduação em Direcção Artística pela Escola Superior Artística do Porto. Pós-Graduação em Estudos da Criança – Comunicação Artística e Expressão Plástica no Instituto de Educação da Criança da Universidade do Minho. Foi o Director Artístico do projecto/exposição Este é o Meu Corpo (2006), no Museu dos Biscainhos, Braga. Fez as ilustrações do livro São Salvador do Mundo (2007), com texto de valter hugo mãe para o projecto Pintar de Verde o Douro, Ministério da Cultura. Expõe desde 2000, salientando-se as seguintes individuais: Ma Poche and my Pocket (2000), no Museu Nogueira da Silva, Braga, Disconnected (2005), na Casa das Artes do Porto, Circo Completo (2008), na Galeria Bernardo Marques, em Lisboa. Das exposições colectivas salientam-se o Projecto IMAN (2007), no Festival de Arte Experimental, Casa das Artes de Famalicão e 7 Projectos Individuais (2008), na Cidadela de Cascais. Participou na Arte Lisboa 2008.


O projecto Hand Job, de Rui Effe, está patente na Galeria Fábulas (Calçada Nova de São Francisco, nº14) ao Chiado. De segunda a sábado das 10h às 24h. Uma exposição Umbigo, com curadoria de Miguel Matos e Elsa Garcia. Até 20 de Julho.

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