quarta-feira, 8 de julho de 2009

Matthias Herrmann


Matthias Herrmann

Sexo – desmembrado, intelectualizado e multiplicado

por Miguel Matos


O que seria do exibicionista sem o voyeur? Como distinguir os nossos receios das nossas fantasias? Onde acaba o sexo e coeça a morte? E afinal que raio de arte é esta? Já agora, ainda vale a pena discutir o significado de uma obra de arte? Eo artista, pode ele ser a sua própria ferramenta de trabalho? E um pénis, é apenas um pénis, um ícone da sociedade ou uma arma mortífera? As respostas a estas perguntas não se encontram neste texto, mas Matthias Herrmann pode dar algumas pistas...

Em cada fotografia, o alemão Matthias Herrmann (n. 1963) dá vida a uma nova personagem que tem tanto de si como de cada observador. O meio que veicula a sua ambígua mensagem é a ironia e o humor, tendo o sexo (o seu) como elemento omnipresente. De facto, o pénis, o seu próprio pénis, é quase sempre um dos actores nestes intrincados puzzles conceptuais. O pénis como matéria plástica que acarreta sempre conotações diversas e por vezes contraditórias, sempre polémicas, numa arte que, sendo de cariz gay, não se pode confinar a esta “gaveta”.

Matthias Herrmann é um herdeiro directo de Robert Mapplethorpe e Cindy Sherman. De Mapplethorpe, ele resgata o universo gay, com todos os seus clichés e fantasias, os fantasmas e as repressões sociais. No entanto, Herrmann não se fica pelo aspecto do desejo e da beleza musculada ou pela esteticização de um quase submundo de músculos e práticas sexuais. Ele, como Mapplethorpe, pega nesses elementos e cria cenas irónicas em que fotógrafo e modelo se confundem e entrecruzam. Herrmann presta culto também ao corpo, o seu corpo especialmente. Um corpo trabalhado de ex-bailarino e que obedece também ele ao cliché do homem gay. E é com esta auto-representação encenada em múltiplos papéis, em esquizofrénicas personagens, que a sua obra se aproxima de Cindy Sherman. Tal como esta é a modelo de todas as suas imagens, também Herrmann trabalha sobre a sua própria plasticidade. No entanto, ao passo que Sherman esquarteja, suja, pinta e abusa de próteses, Herrmann mantém a integridade da imagem que veicula do seu corpo e, tal como ela, utiliza o corpo como matéria plástica para personagens que extravasam a sua própria identidade. Já Robert Mapplethorpe, ao executar os seus auto-retratos, nunca se afastava da sua pessoa.

É partindo destes ícones da história de arte como referências conceptuais e estéticas que Matthias Herrmann parte para a apropriação e utilização de outras referências. Cada imagem é meticulosamente pensada e está presa a elementos reconhecíveis da sociedade e da arte, num faz-de-conta repleto de sarcasmo e humor. A frequente utilização de frases dentro de cada imagem é uma apropriação de citações de actores famosos, de textos históricos, de filósofos, etc, que ganham novos contextos e que contribuem para a conceptualização e significação de cada obra. As séries Paris Text Pieces (1998), XX Portfolio (1999) e Blue (1999) são exemplos disso.

Em The Cum Pieces (1994-95), o artista concebe obras de uma grande beleza a partir de manchas de esperma, material que também inspirou o fotógrafo Andres Serrano. Em conversa com a Umbigo, Matthias falou um pouco sobre esta série: «as cumshots foram realizadas pouco antes de eu ter sido infectado com o vírus da SIDA (em 1999). Mas já nessa altura eram uma meditação sobre as qualidades do sémen em relação à criação da vida e ameaça à mesma. A coloração nestas imagens vem do facto de eu ter utilizado papel fotográfico a preto-e-branco não revelado, que foi exposto à luz do sol em diferentes intensidades e tempos (daí as diversas cores). Depois, o sémen foi “disparado” sobre o papel, o que gera uma reacção química que eu depois fotografei. No ano passado fiz uma série com o meu sémen já infectado. É claro que existe uma grande mudança nestas imagens, mas isso não é visível... ou será que é?». O facto de ser seropositivo afecta o artista na sua vida diária e, claro está, na sua forma de viver, de pensar e criar arte. «No início, quando soube da minha infecção, o trabalho tornou-se mais sombrio, não deliberadamente. De facto, só mais tarde dei por isso. Quando decidi ir para a “praça pública” com o meu estado de saúde incluí, por exemplo, a minha medicação para o HIV nas imagens e aludi ao perigo que o meu corpo expressa». No entanto, este é um aspecto que não deve sobrepor-se a todos os outros. «No geral o facto de ser seropositivo é um factor importante no meu trabalho. Mas espero que haja mais “camadas”, mais níveis inerentes às obras. Não gostaria de limitá-las àquilo que uma pessoa com HIV tem para dizer... e não gostaria de ver os outros a limitarem-me a isso».

Outro trabalho merecedor de destaque é a série Hotel (1999/2003), em que o artista explora os conceitos dicotómicos de público/privado. A série tem para mim um especial interesse: num quarto de hotel gosto de arrumar as minhas coisas apenas o suficiente para o habitáculo se tornar funcional. Agrada-me sentir que estou num quarto estranho. Há algo de desconfortável e simultaneamente excitante. Na verdade, um quarto de hotel é um espaço público, partilhado por imensas pessoas (o que o torna também mais intrigante, basta imaginar o que é possível acontecer nesse espaço), mas é também um local resguardado de olhares, uma esfera com alguma privacidade onde o utente pode ser quem quiser, até mesmo ele próprio. É essa ideia que Matthias Herrmann desenvolve. É claro que se mantêm as frases irónicas e recontextualizadas, a ironia, a sexualidade, o ridículo, o assumir de personalidades diferentes que cabe a cada um descortinar e interpretar.

Digital Cocks (2002) assume a obsessão pela plasticidade e multiplicidade de conotações do pénis. No entanto, aqui ele é reduzido a mais um dos elementos de uma natureza morta, figurando num quadro subversivo de estética clássica. Encontramos outra exploração da clássica natureza morta na série Old Masters (2002), em que as fotografias mostram uma bela composição de frutas numa taça. Mas, se repararmos com atenção, vemos que sobre a fruta ou sobre a taça, existe sempre um fluido gelatinoso e meio translúcido que nos faz lembrar algo que nada tem a ver com a cena em questão...

Em todas estas obras há uma constante e quase maníaca orquestração conceptual, uma encenação de elementos ambíguos. Matthias assume: «Conceptualizo muito o meu trabalho (estudei muito a arte conceptual) – mas não tanto a imagem individualizada. E adoro quando as pessoas dizem coisas que “começam” com as minhas obras, quando elas são o gatilho para ideias e pensamentos. Penso que uma vez que o trabalho de um artista sai para o mundo, deve estar aberto a todas as formas de conceptualização. De facto, sempre admirei obras que funcionam em vários níveis. Por exemplo, fico contente quando algumas pessoas acham que o meu trabalho é pornográfico enquanto outras preferem ver as estratégias conceptuais que estão por detrás». A obra de Matthias Herrmann, apesar de coerente, está em constante mutação e apenas um olhar atento nos dá a oportunidade de conjecturar acerca das verdadeiras intenções do artista.

Revista Umbigo, Dezembro 2005

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