sexta-feira, 20 de maio de 2011

José Pedro Croft - “O nosso interior é uma caixa de Pandora”


José Pedro Croft pode parecer um artista metódico e racional se atentarmos apenas na sua produção plástica. No entanto, apesar de empregar materiais pobres ou industriais, e de o resultado poder ser frio e distante da manualidade, Croft salienta a importância da intuição ligada à disciplina.

As esculturas de José Pedro Croft são mecanismos que funcionam em interacção com o corpo… Apesar da referência à forma e função funerária da escultura, são obras que pedem a dinâmica de um organismo vivo, observante e em interacção dinâmica com a estrutura. É nessa dualidade constante, nesse fluxo bidireccional que se dá a troca de energias que permite à arte existir como tal. Na exposição que inaugura a 9 de Maio no Espaço Chiado 8 Fidelidade Mundial, José Pedro Croft explora noções de habitabilidade e de escala em linguagens diferentes que seguem um caminho único.

Desde os anos 80 que tem construído um percurso sólido e concentrado numa linguagem imediatamente reconhecível. Muitos artistas mais jovens optam pela diversificação de linguagens e temas de forma tal que muitas vezes não criam uma marca autoral. Acha que esse caminho dificulta a progressão de uma carreira no contexto do mercado da arte?

Não sei muito sobre carreiras nem confundo o trabalho com o mercado. Acho que andam paralelamente e por vezes nem sequer se tocam. Eu acho que um artista explorar novos caminhos e novas possibilidades não só é um desafio como é estimulante, refrescante e enriquecedor. Em relação ao meu trabalho, tento ir trabalhando diferentes materiais e escalas, pensando cada exposição de maneira diferente. Cada trabalho é pensado em função do lugar e de uma ideia. Surgem outros materiais e eu estou disponível para usá-los. O que acontece é que, no momento de usá-los, me meto tão dentro deles que é impossível isso não ter uma marca autoral, uma impressão digital. Mas isso não acontece com o objectivo de ter uma linguagem reconhecível.

É dos poucos artistas portugueses que conseguem realizar exposições individuais todos os anos em diversos países. Considera que a sua internacionalização é um facto consumado?

Não. Hoje em dia, para os artistas portugueses, e para qualquer artista europeu, é normal expor e circular fora do local de produção – coisa que não existia quando eu comecei. Apesar de fazer exposições no estrangeiro, não estou integrado nos grandes circuitos nem nos grandes museus internacionais. Não estou e não é uma coisa que me preocupe.

Uma faceta do seu trabalho que tem mais sucesso no estrangeiro do que em Portugal é a gravura. Em Portugal não se dá valor a esta técnica, no entanto, basta ir a Espanha para encontrar um interesse enraizado...

A Galería La Caja Negra, que me representa em Madrid, levou o meu trabalho de gravura para a Feira de Arte do México e para a Feira de Arte de São Paulo. As minhas gravuras têm feito alguma circulação em Espanha e nas feiras internacionais em que a Galería La Caja Negra participa. Em Portugal, é um trabalho que não está valorizado, tal como há 20 anos não se valorizava o trabalho sobre papel. É uma coisa que leva tempo e também não há uma grande tradição, apesar de nos anos 50 e 60 alguns artistas portugueses terem feito um importante trabalho de exploração da técnica, sempre com condições difíceis e rudimentares. Há um grande desconhecimento sobre a gravura e as pessoas associam-na muitas vezes ao poster. De qualquer forma, o que interessa é o processo que está por detrás, o conceito de múltiplo e a manualidade do trabalho. Muitas vezes, para mim é mais difícil fazer uma gravura do que dez desenhos.

A relação que estabelece entre o seu trabalho de gravura, desenho e escultura é de diversidade ou de complementaridade?

Eu acho que são complementares. Tal como dentro da escultura, cada uma é complementar da outra. O processo escultórico, só por si, não esgota todo o modus operandi e assim vou ter de buscar outras técnicas que podem ser o guache, o acrílico ou o carvão sobre papel para continuar o processo. No fundo estou sempre a falar da mesma coisa, mesmo num processo mais demorado como o da gravura.

Na sua escultura há um movimento duplo, em fluxo permanente. Concentra num espaço delimitado a realidade circundante, captada e fragmentada por espelhos, mas por outro lado, esses espelhos projectam para fora ângulos e superfícies.

O que faço é dar impressões do espaço e deslocá-las, retirando-as do contexto e alterando inclusive a sua escala. São questões de percepção.

O seu trabalho remete para uma função de preservação, que se intui nas estruturas que lembram arcas ou vitrinas de exposição de objectos preciosos ou ritualísticos. As suas esculturas, ao contrário do que possa parecer, não estão vazias, pois não?

Temos duas maneiras de olhar para elas. Primeiro, porque qualquer estrutura, por muito vazia que esteja, está cheia do mesmo ar que está fora dela. Mas a diferença é que se pode falar de um “cá fora” e um “lá dentro”, por existir um espaço delimitado. Depois, estas esculturas não estão completas. Elas existem em potência mas só são completadas e activadas pelo espectador cada vez que as olha e lhes enche o interior.

Explora nas suas esculturas questões do corpo, da percepção e do espaço...

Há um assunto que eu estou a trabalhar que é a noção de território e de demarcação. Nesta exposição pego num espaço que é habitável e construo uma escultura que nos expele e nos empurra contra a parede, tornando-se a escultura num espaço de arquitectura inabitável.

Isso quer dizer que numa escultura pode descobrir um elemento que depois desenvolve noutro medium?

Sim, não há uma regra. Mas isso tanto pode ser na escultura como a passear na rua ou a ver um filme. De repente há qualquer coisa que mexe connosco. O nosso interior é uma caixa de Pandora da qual, se estivermos disponíveis, estão sempre a saltar cliques que nos permitem fazer pontes e ligar coisas.

O que é preciso é viver…

Exactamente! E estar disponível. Há uma parte de rigidez que é importante e sem a qual não se pode construir. É preciso ter a disciplina de ir ao atelier, uma obstinação de se conseguir fazer qualquer coisa. Mas também é preciso estar aberto a contaminações para que umas coisas dêem origem a outras e outras. São dinâmicas contraditórias que, no fundo, se complementam.

A exposição que está a preparar para o Chiado 8 divide-se em três partes. Pode contar-nos um pouco sobre elas?

Comecei a pensar esta exposição há três anos. São três peças: uma delas é uma escultura que ocupa a totalidade da sala maior. Depois há um desenho que trata do mesmo assunto e a terceira sala terá uma peça de parede. A escultura central, composta com vidros e espelhos, é enorme e faz com que fiquemos apenas com uma distância de metro e meio de circulação entre ela e a parede. Nunca será possível ter a noção da peça no seu todo, apenas visões parciais. Pela primeira vez vou também apresentar um trabalho de fotografia que não funciona como obra autónoma mas sim como estudo. É um registo dos olhares que eu vou tendo quando passeio ou quando viajo e que me ajudam a perceber qual é o assunto que ando a tratar na escultura e no desenho.

Miguel Matos

(Foto – Clara Azevedo)

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