quinta-feira, 16 de junho de 2011

O desenho bélico de Joana Rosa



“As ideias são como peixes. Se quisermos capturar peixes pequenos, podemos ficar pelas águas pouco profundas. Mas, se quisermos capturar os peixes grandes, temos de ir mais fundo.” - David Lynch1



Apanhar as linhas riscadas sem pensar e delas fazer desenhos pode ter efeitos perigosos e levar a descobertas inusitadas. Joana Rosa colecciona avidamente scribbles, o vulgo gatafunho que se faz de forma automática, sem se pensar no que se desenha. Colecciona os seus próprios e recolhe os que pode dos amigos e até de desconhecidos incautos. Com esses registos cria uma parte da sua obra que denota uma actividade classificatória, quase de bibliotecária, organizando estes documentos espontâneos e que aparecem sem aviso. Essa colecção gigantesca de scribbles serve de base para outro tipo de trabalhos da artista: os seus obscuros desenhos de grafite sobre papel vegetal. Os violentos, mortais e negros desenhos obsessivos repletos de armas, bailarinas, frases e rabiscos. É com eles que descemos às profundezas do inconsciente e à sujidade da grafite.


Joana Rosa declara o improviso como o tom geral do seu processo de trabalho. No entanto, a composição de cada desenho demonstra um planeamento espacial que, embora possa ser intuitivo, está bem presente. Joana Rosa possui um vocabulário criado por si e, com os elementos que o constituem, organiza no espaço ideias qe podem ser mais ou menos concretas. São obras realizadas em casa, frequentemente ao som de música. Aliás muitos trabalhos apresentam, escritas à mão, as letras das músicas ouvidas ou pensadas durante a sua execução. O próprio título da exposição, “My Own Army” poderá remeter para a música “Army of Me”, de Björk, em que a cantora sussurra e grita: “And if you complain once more / You'll meet an army of me”.






No papel translúcido, Joana Rosa acede às trevas. As suas e as do mundo que a rodeia. Faz isto acedendo à “porta mal fechada da escada que desce para as caves da torre, e que logo penetra numa escuridão onde se caminha às apalpadelas”2. É assim que René Huyghe definiu o inconsciente, o subconsciente, o subliminal, ou o que quisermos chamar ao estado em que deixamos o pensamento e o corpo fluirem sem exercer controlo sobre eles. A própria artista explica que “quando estou muito chateada desenho uma arma e ponho lá as minhas chatices, as minhas frustrações e, sobretudo o facto de haver crianças a morrer na guerra. Não posso ver crianças maltratadas. O meu exército tem a ver com isso. Estas são armas espontâneas, é a minha necessidade de combater e atacar todas as coisas terríveis e violentas que há no mundo”. Vemos nestes papéis agredidos objectos que reconhecemos como armas. No entanto, após uma observação atenta, verificamos que esses objectos não existem antes de Joana os desenhar. São bombas, armadilhas, correntes e metralhadoras imaginárias. Alguns destes mecanismos são até absurdos, mas apresentam elementos que sugerem uma função de arma. Aludem, no fundo, às imagens de conflitos e guerras que vemos diariamente na comunicação social.


Segundo Freud, o impulso de destruição constitui, lado a lado com a líbido, o segundo impulso básico humano3. Nas mãos de quem mata estão máquinas às quais não temos acesso mas que reconhecemos. Um gatilho, um cano, uma mira... é todo um repertório bélico que Joana Rosa recria, com o qual faz brincadeiras perigosas e que utiliza como palavras de combate em discursos de guerra. “É um exército de papel, não faz mal a ninguém. Não sou bélica, sou até muito doce”, diz a artista. São obras feias, poder-se-á dizer, de uma fealdade tal que apenas um espírito permeável aos estímulos mais contundentes se pode deixar penetrar pelas imagens e, após possuído, senti-las como redentoras. Não está nas intenções de Joana Rosa provocar repulsa com as suas violentas representações de instrumentos de morte. No entanto, é inegável que alguns receptores da imagem a possam entender como grotesca. A categorização de grotesco, neste caso, como na maior parte das vezes, é um fenómeno experimentado na recepção. “Mas é perfeitamente concebível que seja recebido como grotesco algo que na organização da obra não se justifica absolutamente como tal”, diz Wolfgang Kayser4. Não se pede ao observador uma atitude de intervenção ou interacção perante estas obras mas sim uma passividade que abra o caminho à fruição do terrível numa espécie de arte como ritual que “promove uma descida ao inferno, uma viagem ao imaginário e ao horror, mas essa viagem reconduz de novo ao quotidiano, de tal maneira que o sujeito se encontra, através do seu percurso, transformado”5. Numa obra que joga com os limites da experiência estética entre o macabro, o ameaçador e o lúdico, o inocente, dá-se o acesso ao tal “abismo que sobe e transborda” de que fala Eugenio Trías.


Se Joana Rosa nos surpreende com obras tão díspares (ora mostra armas, ora expõe fadas de contos infantis) é porque o seu trabalho plástico é bipolar. Entre a cor e a escuridão, oscila uma dialética de opostos. Mesmo nos seus desenhos negros, a par das armas e das bombas aparecem frequentemente e em convivência imagens de fadas e bailarinas, como delicadas amazonas nesta batalha de contrários. A presença das bailarinas é um pormenor autobiográfico e deriva de sonhos desfeitos. Com efeito, a artista fez o curso de bailarina com a ideia de conseguir chegar a trabalhar como coreógrafa. No entanto, no final dos estudos, o médico proibiu-a de dançar. Foi então que Joana Rosa seguiu para Londres e estudou escultura experimental. As bailarinas são assim representações simbólicas do sonho destruído. Já as fadas, aludem a um universo infantil do qual a artista não se consegue separar. Há, de facto, uma grande e permanente dualidade entre bem/mal, masculino/feminino, caos/harmonia, pacífico/agressivo, maquinal/orgânico... sempre nesse registo em que tudo convive em tensão no meio de um aparente caos. Apesar dos elementos fálicos, há uma delicadeza feminina, um croché de armas, uma minúcia... Os elementos destes desenhos podem ser violentos, mas a maneira de trabalhá-los é delicada e frágil, provocando perplexidades no espectador.


Não estamos perante um mundo onírico: estas armas não são sonhos nem pesadelos; vêm da realidade e não são o reflexo do interior da artista. São antes, e pelo contrário, a sua reacção à violência que a rodeia, num processo psicológico de transferência, ligado ao inconsciente, no qual estes sentimentos transbordam para o papel. O lado obsessivo destes trabalhos tem a ver com o carácter automático dos scribbles. Esse lado revela-se na repetição de elementos, na escrita compulsiva... Joana Rosa deixa o desenho correr através das mãos nestes desenhos que são também diários. Diários porque reflectem as preocupações quotidianas da autora, diários porque são apontamentos. Diários até porque não escondem pormenores “práticos” do momento em que são realizados: números de telefone, lembretes de tarefas, rabiscos, rasuras, receitas de cozinha... Por outro lado há o aspecto pobre do suporte sobre o qual desenha: o papel vegetal, é usado pela sua transparência e pela possibilidade de sobrepor os desenhos. O papel é amachucado, maltratado, sujeito a todo o tipo de agressões. A artista deita-o para o chão, chega até a pisá-lo ou mesmo queimá-lo.


Joana Rosa nunca lutou numa guerra que não seja a que se passa dentro de si. No entanto, conseguiu manufacturar um vocabulário de armas imaginárias, um desenho bélico. Estes desenhos reflectem a repressão que a artista sente no mundo. É uma violência arrumada, organizada mas nem por isso domesticada. Finalmente há que reflectir sobre um aspecto a ter em conta quando se fala dos armamentos que se impõem nestes desenhos: a arma como objecto pertencente à lista de ícones da sociedade de consumo. Dá-se assim uma aproximação à arte de carácter mais pop: a arma como ícone de uma sociedade contemporânea baseada na força e na repressão.





1LYNCH, David, Em Busca do Grande Peixe – Meditação, Consciência e Criatividade, Estrela Polar, Cruz Quebrada, 2008


2HUYGUE, René, O Poder da Imagem, Edições 70, Lisboa, 1986
3DOUCET, Friedrich, A Psicanálise, Editores Associados, Lisboa, s/d
4KAYSER, Wolfgang, O Grotesco, Editora Perspectiva, São Paulo, 2003


5TRÍAS, Eugenio, O Belo e o Sinistro, Fim de Século, Lisboa, 2005

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