sábado, 18 de junho de 2011

João Murillo - Promessa Cumprida a Mário Cesariny




João Murillo é um pintor que mexe na tinta com o pincel, as mãos e o coração todo. É de sentimentos que se fazem as suas telas. Agora prepara-se para mostrar algumas delas, feitas em conjunto com um amigo que estará presente na inauguração em todo o seu espírito: Mário Cesariny.


Esta exposição marca o final de um processo pessoal e artístico. Podes explicar porquê?


Estou a fazer 25 anos de pintura e há algumas inevitabilidades para quem sente a inquietação que o leva a ser artista visual. Essa inquietação é, por um lado, factor de isolamento, mas por outro lado, de agregamento em relação a outras pessoas que sentem a mesma motivação. No entanto, nunca houve um movimento de artistas em Portugal a não ser o surrealista. Ou seja, existe muito pouca partilha e interacção entre artistas. Eu tive o privilégio de me cruzar com pessoas que levavam essa interacção aos extremos. Foi o caso do Artur Bual, com quem trabalhei durante 15 anos, e do Mário Cesariny, com quem também trabalhei 15 anos, e para além disso vivíamos na mesma rua.


Cesariny era a figura máxima do surrealismo em Portugal, acompanhado de perto por Cruzeiro Seixas...


Muitas vezes o Artur Cruzeiro Seixas declarava não ter o génio do Cesariny. Em termos de artes visuais, provavelmente o Cruzeiro Seixas era mais genial do que o Mário Cesariny. O Cesariny era genial ele próprio. Há uma característica da sua obra pouco falada: não há distinção entre o artista e aquilo que ele escreveu ou pintou. Há uma fusão total. Outro aspecto importante é o facto de ele escrever sempre a sua poesia nos cafés ou na rua. Deixou de escrever quando deixaram de existir cafés.


É importante para ti a ideia de agregação e partilha entre artistas, mesmo que estes tenham trabalhos diferentes?


É fundamental. Aliás, acho que hoje a grande inibição no convívio entre artistas é o dinheiro. Todos vivem obcecados com a possibilidade de forrarem mais a carteira e de terem uma conta bancária mais confortável. Eu acho que essas questões têm de estar completamente separadas do processo criativo. Não tenho nada contra os artistas que têm uma estrutura de marketing para ganhar mais dinheiro, mas isso não faz com que a sua obra seja melhor ou mais coerente. Para a velha guarda de artistas, o dinheiro era apenas uma consequência do processo e nunca interferia nos preceitos conceptuais.


Nesta exposição fala-se de uma época no final da década de 1990. Como é que começaste a trabalhar com Mário Cesariny?


Quando eu conheci o Mário, ele já não pintava. Mas como ele estava sempre no meu ateliê, começou a sentir de novo a envolvência e recomeçou a pintar. Eu fui sempre visto como um par pelo Mário, não era visto como um miúdo. Partilhávamos conhecimentos e essa experiência foi muito enriquecedora para ambos.


São autores diferentes, sendo que o teu trabalho é claramente expressionista. No entanto, a verdade é que o expressionismo tem ligações ao surrealismo, pelo lado automático e por vezes lírico...


Sim, especialmente para um surrealista que tem necessidade de construir e desconstruir até chegar a algo que procura transmitir. Mas o meu expressionismo foi sempre gestual. Em termos de linguagem pictórica está mais próximo do trabalho do Bual e distante da linguagem do Cesariny, embora houvesse pontos de cruzamento. O que é curioso é que no meio deste relacionamento começámos a perceber que quando o Mário pegava no meu processo e trabalhava nele, sentia-se em casa porque tinha um primário sobre o qual ele podia criar.


Ao longo desses anos de proximidade, surgiu um projecto em comum entre a poesia e a pintura. É o resultado desta colaboração que se mostra agora?


Tudo começou quando eu fiz um retrato do Mário. Esse retrato estava alicerçado num poema dele que dizia: “É preciso dizer o dia em vez de dizer os anos”, no sentido de celebrarmos cada vez mais os momentos. O Mário, depois de eu ter pintado esse retrato, lançou-me o desafio de pintar os poemas dele. No meu ateliê, no verso de uma obra que tinhamos pintado os dois, estruturou um quadro que me ofereceu e dedicou, baseado no seu poema “Atelier”. Depois disso fez-me prometer que pintava os seus poemas, que seleccionámos juntos. Algumas peças fizemos em colaboração e estão assinadas pelos dois. Outras começámos os dois e eu terminei depois para cumprir a promessa que tinha feito, mas a minha intervenção afastou-as tanto do seu início que tive necessidade de esconder a assinatura dele. Seria uma incorrecção da minha parte manter a assinatura do Mário.


Mas não se trata apenas de um conjunto de ilustrações...


De todo. Aí entramos numa visão que era comum aos dois, pois achávamos que a pintura vai sempre muito mais longe do que a poesia.


Porque esperaste tanto tempo para expor estes quadros?


Muita gente me perguntou, aquando da morte do Mário, porque é que eu não expunha estas obras. Havia uma componente emocional: cada pessoa precisa de fazer o seu luto. E depois, sempre que alguém desaparece, existe uma série de aproveitamentos e associações que algumas pessoas pretendem fazer, principalmente quando falamos de um dos maiores vultos da cultura portuguesa do século XX. Eu não quero ser confundido com uma dessas pessoas, pois o meu maior património não é aquilo que eu vou mostrar nesta exposição. É algo que nunca vou poder mostrar a ninguém, algo pessoal e intransmissível, que são os milhares de horas de conversas e de convívio que tivemos. Não quero capitalizar a minha relação com o Mário. O que eu quero é cumprir a promessa que lhe fiz para encerrar um ciclo de memórias. Sinto que estou numa fase de mudança, tenho estado num período de balanço e introspecção em relação àquilo que quero fazer daqui para a a frente. Depois de tanto laboratório, o que eu sinto é que hoje tenho as ferramentas mais arrumadas e agora que fechei o ciclo e cumpri a promessa, está na hora de usá-las.


Miguel Matos


“É preciso dizer os dias em vez de dizer os anos” está patente na Galeria São Bento (Rua do Machadinho, 1) de 18 de Junho a 31 Julho. Aberta de terça a sexta das 10.30 às 13.00 e das 15.00 às 19.30. Sábados das 15.00 às 19.30. A entrada é gratuita.

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