terça-feira, 14 de abril de 2009

Raúl Perez - "É como se os sonhos me saíssem pelas mãos"


Time Out, 11 Fevereiro 2009

Raúl Perez

É como se os sonhos me saíssem pelas mãos”

por Miguel Matos


Raúl Perez tem sido um segredo bem guardado na arte portuguesa. Até agora. O Museu Berardo, em co-produção com a Fundação Cupertino de Miranda abre as portas a um conjunto de obras criadas desde 1960 até agora. São 50 anos de sonhos e criaturas mágicas que saem à rua para nos enfeitiçarem. A Time Out à conversa com um pintor pouco dado a “ismos”.


O primeiro impulso que temos ao ver pela primeira vez as suas obras é associá-las ao Surrealismo. Mas o Raúl não se sente muito confortável com essa associação...

O que me torna próximo dos surrealistas é o meu processo de trabalho. Eu não sou capaz de fazer nada de uma forma racional, deliberada. Quando pego num lápis ou num papel as coisas saem-me. Nunca me fiz a pergunta “o que vou fazer?”. É este processo que me torna parente dos surrealistas. Eu nunca tinha lido nada do Breton antes de começar a pintar. Conheci o Mário Cesariny nos princípios dos anos 60. Ia com um amigo meu no Marquês de Pombal, vi o Mário Cesariny e fui falar com ele. Tinha eu nessa altura o cabelo comprido que me dava pelas costas e me dava direito a ser vaiado pelas ruas. As pessoas paravam para insultar-me. Fui falar com o Cesariny e disse-lhe que gostava muito da sua poesia e que gostava muito de poder conversar com ele. Ele então olhou para a folha que eu trazia pendurada ao pescoço e disse-me “você não tem grande coisa a aprender comigo. Mas eu, o Cruzeiro Seixas, o Pedro Oom, o Mário Henrique Leiria, vamos fazer uma exposição e leitura de poesia na Livraria Buchholz... se quiser apareça lá”. Assim, comecei a conviver com estes artistas. A partir daí começámos a encontrar-nos. Fomos convivendo e comecei a aperceber-me de que o meu próprio processo de trabalho identificava-se com o dos surrealistas, mas isto é muito antigo em mim e não me leva a proclamar-me surrealista até porque detesto ser qualquer coisa. Não tenho partido político nem religião nem clube de futebol. O que é ser surrealista? Acho esquisito, parece um partido político... Eu ponho em primeiro plano a liberdade e a autenticidade. Não me quero envolver nesses “ismos”.


Mas afinal onde tem andado estes anos todos para ser tão pouco conhecido? É muito raro ouvir falar de si.

O que eu faço agora é uma coisa que tem vindo a germinar ao longo dos anos, não veio do nada. Há os pintores “da casca”, que se preocupam com o mundo que os envolve e isso reflecte-se no seu trabalho. Eu sou uma espécie de mineiro à procura do meu ouro, esta coisa que todos nós temos cá dentro. Comecei este processo desde rapazinho. Sempre me conheci a desenhar e a pintar.


Porque esteve tanto tempo sem expôr?

Todas as exposições que tenho feito são em galerias de arte, que no fundo são comerciais, são lojas. Nunca fiz nenhuma exposição sem ser um bocado contrariado porque as coisas de que eu gostava muito não as queria vender e os marchands querem vender. Estes quadros que foram guardados, foram mesmo por causa disso. Podia expô-los mas nunca para vendê-los. Há quadros que apesar de serem meus e serem bons, não me apego a eles, mas há outros dos quais eu não sou capaz de me desligar. Esta exposição e a anterior na Fundação Cupertino de Miranda são as primeiras em que eu escolhi as peças que quero mostrar. É uma exposição planeada por mim e não por um galerista, o que tem outro significado.


Pinta muitas vezes os mesmos símbolos, como por exemplo as torres com asas, pode explicar porquê este motivos recorrentes?

Não há um motivo para isso. Quando estou a pintar não tenho consciência do que faço. Posteriormente é que me apercebo daquilo que um quadro significa. Isto são sonhos. Não são ilustrações de sonhos mas os sonhos em si. Desde muito cedo me apercebi de tudo o que eu desenhava às ocultas da consciência continha uma linguagem e uma filosofia próprias semelhantes às dos sonhos. Era como se os sonhos me saíssem pelas mãos. Fui-me familiarizando ao longo da vida com este processo que se assemelhava a um acto mediúnico e no qual eu representava apenas um simples instrumento. Esta experiência leva-me a postular que a arte é um prolongamento do sonho. Quando estou a fazer isto, comparo-me àquelas mulheres que estão no autocarro a fazer tricô e nem reparam no que estão a fazer. Na minha pintura dou muita importância ao desenho, que me sai espontaneamente. Depois as texturas que faço são como o tricô das mulheres no autocarro. Costumo também ter ao lado um bloco de papel onde anoto ideias sobre as coisas mais incríveis e que se referem à própria pintura. É filosofia. Não é uma filosofia que parte da realidade material mas sim das profundezas. Os sonhos estão imbuídos de filosofia, de poesia...


E os tais elementos simbólicos e recorrentes? Será realmente importante para o observador saber a sua explicação? Eu, por exemplo tenho uma interpretação pessoal, tal como outra pessoa terá uma diferente...

Esta tendência ocidental de querer explicar tudo... Tem de se racionalizar tudo... Estas coisas têm outra linguagem. Se abordarmos isto de uma maneira racional, adulteramos as coisas. A maior parte dos críticos tem um discurso lógico que, ao abordar estes quadros, desvaloriza-os, criando uma imagem adulterada.


Mas a explicação que me está a dar é em si mesma uma explicação válida... a explicação de que estas coisas não se explicam... A Filosofia quer conhecer a realidade. E os sonhos não serão eles também a realidade, assim como os efeitos palpáveis que os sonhos têm em nós, na nossa vida e na arte?

Mas o que é que é a realidade? Os sonhos são muito importantes e são a raíz das coisas. A Filosofia devia partir daí. Todo o acto inconsciente tem a sua origem nos sonhos, são coisas oníricas...


Algumas das obras patentes nesta exposição pertencem à Fundação Cupertino de Miranda, outras são de coleccionadores particulares, mas muitas são suas. Porque guardou estas e não outras?

Porque é importante guardar. Porque significam marcos no meu percurso. Alguns dos quadros que eu guardei são os que eu considero os melhores.


E o que sente pelo facto de ser pouco reconhecido?

Então, quem não aparece...


Assume a sua responsabilidade, portanto. Mas gostaria de ser mais conhecido?

Tenho visto ao longo da vida as reacções das pessoas. Se há quem me compre quadros é porque gostam, mas eu não pinto para viver. De vez em quando vendo um quadro mas não tenho necessidade de vendê-los. Nunca subjuguei a minha actividade ao dinheiro. Tenho uma repulsa incrível a isso. Quanto a reacções, estou à espera... Vejam, eu agora estou a mostrar.

Sem comentários:

Enviar um comentário