sexta-feira, 17 de abril de 2009

Fátima Miranda - «Não procurei a voz: encontrei-a e casei com ela"



Fátima Miranda

«Não procurei a voz: encontrei-a e casei com ela»

por Miguel Matos

«O artista é um órgão de resistência. Somos como barricadas contra o medo e a indiferença. Não somos entertainers nem decoradores. Lutamos contra a degradação do gosto e dos conceitos de verdade e beleza. Gosto de reivindicar a capacidade do artista para despertar as máximas possibilidades de percepção, para descodificar, para pôr em evidencia as contradições. Isto faz com que todos sejamos mais livres»

Setembro. Madrid, babel multicultural. La Noche en Blanco – uma noite em que a frenética cidade parece estar sob o signo da loucura criativa. Milhões de pessoas vagueiam pelas ruas como formigas. Templo de Debod, monumento egípcio rodeado de água. Entra uma mulher e começa a chover. Um cenário quase sagrado. Uma voz inumana e hipnótica agarra uma multidão que não arreda pé apesar do dilúvio. Fátima Miranda continua estoicamente na luta contra a chuva e o vento apenas usando como arma o seu corpo sonoro. Uma hora depois nós não somos os mesmos, a chuva parou e a criatura abre uma sombrinha antes de desaparecer.

«Pode-se ler muito da personalidade de uma pessoa apenas ao escutar a sua voz. Há vozes que são mais neutras e outras que definitivamente te horrorizam. Há vozes que te seduzem...», diz Fátima Miranda, cantora, performer, criatura onírica em palco e excelente conversadora na sala de sua casa, no bairro de Lavapies, no centro de Madrid, onde fui recebido com cerveja, gengibre e amêndoas.

O pretexto para conhecer Fátima foi esta performance (porque não é apenas um concerto) que comemorava os 15 anos de carreira, mas começámos por falar de um espectáculo mais antigo do que este – Cantos Robados – pois este conceito explica em parte a sua obra. «Já percebeste que gosto de jogar com as palavras... Cantos Robados significa roubar, ir buscá-los às origens, às músicas ancestrais. Mas não me interessa copiá-las nem imitá-las. O que me interessa é roubá-las, realmente. Para mim! Fazê-las minhas!!! Até chegar a um ponto em que elas já não são elas mas sim eu. Transformá-las através do filtro da minha complexidade, da minha cultura, do tempo em que vivo. Comê-las realmente, digeri-las e convertê-las em algo diferente. Para mim a ideia de roubar opõe-se à ideia de imitar ou copiar que é o que faz a new age e tanta gente que trabalha com fusão, utilizando estes elementos de uma maneira necrótica. Pegam num elemento exótico e põem-no como um elemento decorativo. Não me interessa decorar. Interessa-me significar ou transmitir. Pegar nas coisas que roubo, repeti-las, repeti-las, repeti-las até que, depois de digeridas, caem sobre um terreno de cultivo que sou eu, onde há uma cultura, uma educação, uma opção estética, uma filosofia de vida, uma forma determinada de escutar...»



O que há de fascinante no teu trabalho ao vivo é a conexão íntima entre todos os elementos de um espectáculo. Não é só a voz... Hoje em dia não há muitos artistas que trabalhem a performance da forma como tu fazes, respeitando o seu sentido original...


Pois não... Ou então cai-se no domínio do teatro, por ser mais narrativo... Ah, experimenta isto. São gomas de gengibre... é maravilhoso experimentar a mistura de gengibre com amêndoas. Se os puseres na boca juntos... é uma descoberta que fiz há dois meses, o que achas? É que pica por um lado e suaviza por outro. Estas amêndoas não são as melhores, deviam ser mais salgadas, mas este gengibre é muito bom, comprei num mercado.


É realmente bom, e não é muito picante... Mas agora fala-me deste espectáculo no Templo de Debod. Foi épico! Aquela chuva imensa e tu com aquele fato esvoaçante branco e violeta contra o vento... Há uma altura em que estavas a cantar de frente para o vento e a chuva como se estivesses numa caravela, a lutar contra os elementos, as intempéries...


É verdade, um amigo disse-me: «estava a ver-te e era uma imagem maravilhosa e terrível! Épica!». A mim a pena que me dá é de não ter estado entre o público. Quando me dizem estas coisas gostava de poder ter uma Fátima fora e outra dentro do palco porque quando estou a actuar estou no meu mundo, numa concentração total.


Eu estava rodeado de centenas de pessoas. E muita gente não te conhecia nem estava preparada, e mesmo assim, sem conhecerem o teu trabalho - que por vezes é difícil para quem não está habituado - e apesar da chuva, estava como que hipnotizada, como que em transe.


Foi muito bonita a reacção das pessoas. Um amigo disse-me depois: «se viesse um raio, tu parava-lo!». E quando parou a chuva, coincidiu com a parte do concerto em que eu tocava um instrumento com água.


Este foi um espectáculo de retrospectiva de 15 anos de carreira... O que apresentaste são as obras que consideras as melhores?


Não, não é esse o sentido. O repertório que escolhi cria uma unidade e uma sequência, uma dramaturgia. Por outro lado, a nível técnico era necessário que não tivesse vídeos porque o risco de não funcionamento era muito grande por se tratar de um monumento ao ar livre. O espectáculo foi concebido tendo em conta as possibilidades e limitações do templo. E até com o vestuário quis ter o cuidado de não ser narrativa. Era a melhor selecção para este lugar.


De Cantar, era o nome da actuação. Porquê?


É o duplo sentido de cantar-decantar: separar o vulgar do puro, separar o essencial, como separar o líquido do depósito do vinho. No dicionário aparece a expressão inclinar-se para verter o líquido de maneira que por baixo fica o sólido. Gosto muito desta ideia e de associá-la à noção de haver várias capas, camadas...


Aproveitaste também para estrear Madrid Madrás Madrid... que tem a ver com a existência de tantas comunidades étnicas na mesma cidade...


Sim, havia uma paisagem sonora que incluia vozes indianas, do Bangladesh, Paquistão, uma mulher marroquina... Nessa altura foi quando choveu tanto tanto... Eu estava a cantar e tinha à minha frente um pequeno livro de orações de primeira comunhão com a partitura que foi ficando cada vez mais molhado e tudo o que escrevi se borrava... Entre uma e outra obra havia pequenos interlúdios com sons de ambientes de Madrid. Foi tudo recolhido com um microfone nos mercados, os gritos dos ciganos, dos chineses... Por exemplo, os chineses a gritar no mercado do Rastro “Camisas a Um Euro!!!”. Depois alguém diz oh Habibi e eu grito goool... adoro misturar tudo isto. Há uma realidade nova em Espanha: a imigração sempre esteve presente mas nos últimos anos tem aumentado. Aqui mais abaixo, o bairro de Lavapies está cheio de negros, cubanos, chineses. Isto é bom e uma fonte de música.


Reparei que muitas das músicas que cantas ao vivo estão tão rigorosamente estruturadas que parecem similares ao que se ouve no CD... Isso leva-me a pensar que tens uma partitura rígida...


Não gosto da palavra “rígida” por ser negativa, gosto mais de dizer que é fixa. Não é improvisada. Há uma estrutura muito clara em todas as minhas obras e sigo-a sempre. Tudo está tão trabalhado que cria uma liberdade e podes esquecer-te dessa estrutura.


Voltando ao assunto da retrospectiva e recuando estes 15 anos, como é que eles tiveram a sua origem?


Eu não era cantora nem compositora. No início dos anos 80, o compositor Llorenç Barber convidou-me a fazer parte de um gupo de improvisação, o Taller de Música Mundana. Eu era da área da História de Arte, era uma teórica. Mas ele queria formar um grupo de composição que não dependesse de partituras nem de cânones e pautas académicas. Ele queria gente que tivesse uma atitude musical mas sem formação, mais ligada à performance. E eu disse: ah pues si. Porque no? Parecia a coisa mais normal do mundo. Pensando em Marcel Duchamp, no Fluxus, surrealismo, dadaísmo, em todas as vanguardas e no underground, no happening... Não lhe dei muita importância e disse logo que sim. Subi ao palco de uma maneira espontânea. Era uma música orgânica, um pouco especulativa por causa do meu trabalho como historiadora de arte. Uma mescla de algo muito teórico com uma atitude muito intuitiva e selvagem como as duas partes do cérebro, coexistindo. Então nos ensaios a voz começou a sair pouco a pouco como uma reacção lógica. Por exemplo, eu estava a fazer ruídos numa garrafa de vidro e eu tendia a dialogar vocalmente com ela.


Não tinhas nenhuma relação anterior com a música?


Nada, nada, nada, nenhuma. Então comecei a improvisar com o que tinha à mão: um copo, uma colher, um tubo de plástico ou de metal... Tudo o que via convertia-se em objecto sonoro. Para mim a música é muitas coisas. Vivemos num armazém de ruídos que reciclamos e transformamos em música.


Escreveste livros, foste historiadora de arte e directora de uma fonoteca, depois veio a música... Existe alguma relação entre todas estas actividades?


Chegou uma altura em que queria alguma estabilidade e então consegui colocação como directora da fonoteca da Universidade Complutense e produziu-se aí um fenómeno interessante. Comecei a ter uma relação muito metódica com os documentos, assim como tinha acontecido antes, quando eu escrevi a minha tese sobre o urbanismo do pós-guerra em Salamanca. Seguia sempre uma metodologia muito rigorosa. Tinha uma boa relação com os documentos e com a organização da informação. Escrevi o livro La Fonoteca que recebeu um prémio do Ministério da Cultura. Em Espanha não havia nada sobre organização de documentos sonoros. Fiz até um plano de uma fonoteca ideal. Isto não tem nada a ver com o trabalho anterior nem estes dois trabalhos têm a ver com música mas no final tudo tem a ver com tudo. Eu tenho bastante desenvolvidas as partes analógica e analítica do meu cérebro. Ao mesmo tempo que sou muito rigorosa e organizo muito bem as coisas, tenho uma parte intuitiva bastante selvagem... Funciona como uma espécie de controlo da loucura. Quando ouves PercuVoz parece que estou completamente louca, mas há um controlo exacto, porque senão não poderia fazer o que faço com o virtuosismo com que o faço. E gosto muito disto.


Há músicas em que parece que descobriste uma linha melódica que depois catalogas e analisas incansavelmente, repetindo e variando até à exaustão, desenvolvendo-a... E depois consegues comunicar uma imensidão de elementos sempre sem usares a palavra.


Toda a gente já falou de todos os temas. A questão está na maneira como o fazes, na linguagem. O pior e o melhor poeta podem dizer o mesmo, mas a diferença está em como o fazem. É isto que me interessa. É uma reflexão sobre a importância da linguagem inteligível ou não inteligível. Naturalmente que a palavra é muito importante, mas há que questionar a necessidade da inteligibilidade. Por outro lado interessa-me implusionar e enriquecer as capacidades perceptivas de quem me escuta para que ambos – o ouvinte e o artista - adquiram um maior conhecimento de si mesmos. Porque quanto mais longe vais no como, no cultivar de um som, mais livre és...


Quando te oiço em CD as composições parecem todas muito sofisticadas e até electronicamente manipuladas, embora não o sejam. Esse nível mais básico perde-se e acabas por viajar muito dentro do cérebro para captar todas as tonalidades...


Isso é uma maneira de forçar o ouvido, de esticar as possibilidades de quem me escuta. Nesse sentido, o trabalho na Índia foi muito importante para desenvolver a microtonalidade – percursos muito lentos de microtons. No século XVIII decidiu-se dividir a oitava em 12 semitons iguais. Com isto ganhava-se a possibilidade de escrever em todas as tonalidades mas perdiam-se coisas como a microtonalidade. Porque se divides um espaço em 12, perdes as subtilezas e as afinações desiguais dos instrumentos. Tudo se codificou e marcaram-se os cânones daquilo que se considerava bem feito. Interessava-me recuperar a microtonalidade e por isso fui estudar para a Índia. Nas tradições da musica chinesa, japonesa, indiana e indonésia mantém-se a microtonalidade porque não se dividiu a escala dessa forma e por isso a sua riqueza é enorme. De um semitom a outro parece que há um quilómetro de distância. Mas para percorrer essa distância tão fina tive que identificá-la. Se o teu ouvido não sabe identificar um som não conseguirás reproduzi-lo. Nos conservatórios ensina-se a escala dividida em 12 – por isso o ouvido está educado de maneira limitada, enquanto que a minha forma de cantar recupera a microtonalidade que herdei da tradição do canto Dhrupad do Norte da Índia...


Fala-me desta técnica e como a aprendeste...


É uma tradição muito exigente. Podes estar a trabalhar uma raga durante dias e dias, a praticar uma só escala durante sete horas. É tremendo! Mas esse treino converte-se num ear training que te muda a percepção. A partir do momento em que tu o integras, o teu ouvido é que te dita o canto. Na realidade tu cantas com o ouvido e não com a garganta. A partir do momento em que o teu instrumento ouvido se refina, tens mais capacidades. Há uma frase maravilhosa de Goethe que diz «qualquer objecto bem contemplado desenvolve no homem um novo órgão de percepção». Todos contamos com os rudimentos, mas para quê ficarmos apenas pelo óbvio se tens um conteúdo que não o vês porque não tens o teu nível de percepção bem treinado? Há toda uma filosofia por detrás de tudo isto. Quando dizias que as pessoas ficavam embasbacadas a olhar para mim, pode ser que eu tenha um magnetismo e uma presença forte, mas há um “como” no cantar que está a sacar o melhor dessa pessoa embora ela possa não estar consciente disso.


O que sentes se te relaciono com Meredith Monk, Diamanda Galás, Laurie Anderson ou Sainkho Namtchylak? Concordas?


Acho que é correcto. Creio que Meredith Monk foi a pioneira neste terreno, juntamente com o italiano Demetrio Stratos. Seguramente que se eles não tivessem existido eu também não faria o que faço. Todos nós formamos uma família, embora sejamos muito diferentes uns dos outros. O que Sainkho faz é muito distinto daquilo que eu faço. Tal como Bobby McFerrin que apesar de ser maravilhoso vai por um lado mais comercial, David Moss, Phil Minton, e mesmo Maria João, que tem uma bela voz mas podia ser mais experimental. Outra percursora foi Cathy Berberian, antes mesmo de Meredith Monk. Há uma atitude comum em todos nós de escutar a voz de outra forma.... Com Diamanda Galás tenho em comum um rigor técnico mas ao nível estético não me diz nada.

Nesta altura toca o telemóvel: já estamos à conversa há quase três horas e Madrid espera-me para a despedida... Hasta pronto cariño!


Umbigo, Dezembro 2007

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