quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Raquel Feliciano - A luz revela-se às escuras

Miguel Matos entregou-se à contemplação do cosmos na exposição de Raquel Feliciano na Galeria Alecrim 50.

Arredondadas sombras negras revelam pontos de luz, como estrelas. Ao lado, fotografias escuras da superfície do mar remetem para a mesma ideia. É a junção de elementos opostos, o princípio que levou Raquel Feliciano a apresentar estes trabalhos. A artista desenha, de forma quase invisível, com uma solução de sais de prata sobre papel, que depois expõe à luz, luz essa que lhe revela a imagem final.

O desenho às cegas serve como metáfora para a criação, mito da génese cósmica evocada nas imagens de escuridão, salpicadas de pontos brancos. Possíveis constelações? Por estas imagens passa também o processo de fotograma. Raquel interpõe, entre a luz e o papel, uma película manchada a tinta-da-china que lhe marca os tais pontos brancos.

O bloquear da luz que nos devolve posteriormente a luz das estrelas. São técnicas inspiradas em processos fotográficos antigos e que, retrabalhados de forma experimental, dão a estas obras o seu carácter inovador, fresco, de surpresa e mistério. No século XIX, inglês William Henry Fox Talbot criava desenhos fotográficos com plantas sobre papel foto-sensível. É a partir destes primórdios da fotografia artística que Raquel Feliciano baralha os dados e apresenta estas imagens poéticas, que convidam à contemplação.

“Quando era mais nova, tinha um grande fascínio pela astronomia e pela cosmologia. O mistério da formação das estrelas e das galáxias sempre me interessou”, revela Raquel Feliciano. “Recentemente voltei a ler coisas no âmbito da física para fazer relações com o meu trabalho. Interessa-me explorar as relações entre o micro e o macro, as analogias entre o muito grande e o muito pequeno, entre o homem e aquilo que o transcende em escala.”

Este é um trabalho sobre a luz e a escuridão e de como elas se podem unir. A luz só existe em confronto com a escuridão e é nestas fotografias e desenhos-fotograma que ela se revela.

De forma mais abstracta numas obras, mais figurativa noutras. Nas fotografias que ladeiam os desenhos, o lado evocativo e metafórico da imagem destaca-se por ser mais evidente. São imagens de água pontilhadas por focos de luz que mais não são do que o reflexo do sol no mar ou no rio. Esses pontos originados pelo reflexo de luzes fazem mais uma vez lembrar corpos celestes. “São estrelas do mar”, comenta Raquel com um sorriso. “Às vezes fotografo de forma muito intuitiva, depois apercebo-me de que existe alguma coisa substancial e decido explorá-la. Aqui há o casamento do céu e da terra.”

Na última edição da exposição “7 Artistas ao 10 Mês”, na Fundação Calouste Gulbenkian, Raquel figurou entre os artistas seleccionados. Aí apresentou desenhos com montanhas e aves de rapina, que simbolizavam a junção de dois elementos essenciais: o ar e a terra. Nesta exposição, conseguiu juntar os outros dois: a água (do mar) e o fogo (das estrelas).

Alguns artistas começam, neste momento, a regressar a uma vertente da arte que privilegia de novo a contemplação, tão desprezada que tem estado nos últimos anos. Raquel Feliciano re-aproxima a arte desta introspecção, desta paragem para reflexão: “Acho que isso é um traço de carácter. Sou uma pessoa contemplativa e bastante sensível à beleza e à natureza, quer visualmente quer intelectualmente. Penso nas ligações entre a natureza e a filosofia, até mesmo no campo da teologia. Para mim é tudo a mesma coisa e a arte entra nessa interrogação sobre a relação do Homem com o Cosmos.”

Esta pertinência da reflexão junta-se a um lado técnico acentuado que reforça também o mistério intrigante das imagens. Na arte que Raquel Feliciano produz, tem de existir sempre algum encantamento. E isso pode surgir pela beleza, pelo assombramento. “Não acho que toda a arte tenha de ser necessariamente bela e harmoniosa, mas em geral procuro criar obras que transmitam silêncio e contemplação. No entanto, isso tem estado em desuso e como tal sentia-me fora do meu tempo. Lembro-me de quando eu estava a estudar, aquilo que eu queria fazer parecia desajustado. No fundo, acho que a beleza é um canal de comunicação com o espectador que faz pensar e permite tocar pessoas diferentes de maneiras diferentes”. As imagens de Raquel Feliciano não são buracos negros, mas têm o poder de sugar a nossa atenção por alguns instantes, ao ponto de nada mais existir do que o nosso cosmos interior. E é tudo um efeito de luz.

A exposição de Raquel Feliciano está patente na Galeria Alecrim 50 (Rua do Alecrim, 48/59) até 16 de Janeiro. Aberta de segunda a sexta das 11.00 às 19.00. Sábado das 11.00 às 13.30 e das 16.00 às 19.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 22 de Dezembro de 2009


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Lourdes Castro - Luz de Presença / Sombra de Ausência


por Miguel Matos


No mito da origem da arte pictórica descrito por Plínio, o Velho, os gregos começaram a guardar imagens dos seus entes queridos através do delineamento dos contornos das suas sombras. Uma jovem, cujo amado iria partir, “segurou” a sua memória ao delimitar na parede de uma gruta os traços do seu rosto. Tem início assim o desenho e a pintura e é neste espírito que podemos começar a entender a obra de Lourdes Castro (1930).


A sombra é entendida como realidade e ilusão. Comporta em si a verdade e a mentira. É registo de presença mas está presente de forma etérea. Está associada ao domínio da metafísica, do obscuro. É ao mesmo tempo imagem em si e representação de outra imagem. Embora seja inseparável da figura que a produz, ela é captada e tornada permanente por Lourdes Castro, como que querendo agarrar a passagem fugaz das coisas pelo mundo.


A sombra como testemunha de uma presença e reconstrutora dessa ausência... O fascínio de Lourdes Castro pela sombra aponta sempre no sentido de tornar presente aquilo que está ausente. Ao oferecer ao observador não mais do que a linha de contorno, a artista apresenta os dados essenciais para a apreensão do sujeito da obra. Acaba, assim, por convocar a imaginação e as informações prévias de quem observa, enriquecendo assim a obra com factores que dependem de outrém. «Assim, o desenho concretiza um princípio de economia ou de simplicidade que se encontra subjacente à atitude de Lourdes Castro perante a arte e a vida», analisa Miguel Wandschneider, no livro Lourdes Castro, À Sombra.


Em 1957, Lourdes Castro e René Bertholo deixam para trás um Portugal vazio de ideias e possibilidades criativas. Seguem em direcção a Munique, mas acabam por se estabelecerem em Paris no ano seguinte, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Juntos fundam a mítica revista artística KWY. Um projecto artesanal e modesto, de amigos e cumplicidades visuais sem orientações pré-definidas mas que acabou por servir de veículo de trabalho e projecção para os seus colaboradores regulares – Christo, Gonçalo Duarte, Escada, Costa Pinheiro, João Vieira e Jan Voss. Após um período abstraccionista que acompanha as exposições colectivas do grupo KWY, e partindo de algumas premissas do Nouveau Réalisme, a artista interessa-se pela sombra como relação memorial da representação da permanência do objecto e a sua relação com a luz, problematizada em diversos processos experimentais.


Entre o estar e o não estar, eis o território incerto em que se move Lourdes Castro. José-Augusto França dizia nos anos 60: «O desenho dos contornos da sombra recorda o objecto e diz que ele já não está: é sua memória e sua negação. Entre uma e outra, Lourdes Castro fala de ausência propondo uma ligação extremamente inquietante» (Cem Exposições, ed. INCM). A captação de traços e vestígios do quotidiano em Lourdes Castro começa com as assemblagens dentro de caixas – montagens e colagens de objectos banais, de uso no dia-a-dia, pintados de alumínio. As primeiras sombras projectadas começou a fazê-las em 1962, já em serigrafia, técnica que não mais abandonou e sempre aplicou aos mais diversos suportes. A KWY era ela própria uma revista inteiramente produzida em serigrafia.

São pequenos animais, talvez bonecos. Elefantes, burros, patos. São pequenos nadas como cabides, fivelas e coisas que nao reconhecemos pelo contorno, apenas adivinhamos. Este é o início de uma exploração sobre papel quase obsessiva mas tranquila. Um caminho que se derramou depois sobre telas, placas recortadas de plexiglas e películas de rodhoid (materiais inovadores para a época dos sessentas). Todos eles suportes que aludem ao conceito de telas. São projecções planas sobre ecrãs e evocam o assunto da memória e da duplicidade. Um caminho que a artista tem percorrido de forma solitária, sem se inserir claramente em correntes estéticas estabelecidas.


Sempre registando o que as sombras lhe sugeriam, Lourdes Castro cria quadros-objectos quase esculturas de parede que sobrepoem placas de plexiglas de diferentes cores, pintadas ou impressas em serigrafia. Estas placas, translúcidas e tão imateriais como as próprias sombras, ao serem montadas e acumuladas criam novas sombras e silhuetas que se interpenetram. Fundem-se com a parede onde se instalam e criam um jogo tridimensional que activa o dispositivo óptico. Acompanhando todas estas “novidades” técnicas, uma das àreas de trabalho mais simples de Lourdes Castro é também uma das mais interessantes: o desenho. «A linha, tal como ela existe no desenho de Lourdes Castro, não é um invólucro, ela não dá “corpo” a um saco, uma caixa, um volume que se trataria de encher de uma vez por todas», diz Sylvain Lecombe no livro À Sombra. São exemplos dessa concepção de desenho as malas, pastas ou outros contentores/recipientes e os desenhos dos seus conteúdos quotidianos, feitos com traços de sombras que se interpenetram. Limites que se transbordam e cruzam, aumentando a complexidade de algo em si muito simples. «O desenho de Lourdes Castro não descreve. Se parte da observação e mesmo da integração do real, não visa portanto à sua banal reprodução, é outra coisa que um duplicado do real, que um espelho onde ele se reflectiria», analisa Sylvain Lecombe. «Ele é para o real o que a sombra é para as pessoas e os objectos: essa parte da realidade impalpável, distorcida, elástica, imperceptivel, fantasmagórica e fugitiva, de que a linha e os espaços que ela desdobra em torno dela são, em matéria de desenho, o equivalente mais perfeito».

No final dos anos sessenta, o interesse pelo contorno da sombra deitou-se. Passou da vertical de uma parede para a horizontal de uma cama. São os lençóis bordados com sombras de pessoas deitadas. Bordados pela própria artista, foram feitos para dormir, mas com a possibilidade de se pendurarem na parede, transformando-se assim em outro objecto com outro uso. Mas, como diz Lourdes, estas sombras são de pessoas deitadas. «Deitadas na cama em cima de um lençol, claro. E lençóis naturamente são bordados». A evolução da trajectória passa nos anos setenta para um registo performático, com o Teatro de Sombras, em colaboração com Manuel Zimbro. Esta performance, apresentada até 1985 realçava o carácter imaterial e efémero das sombras que então se moviam na superfície do pano onde eram projectadas. A artista aparecia em cena, como num espectáculo de sombras chinesas. Executava os movimentos e gestos do quotidiano, as acções mais banais, imprimindo poesia nestes rituais que todos cumprem mas ninguém vê. A partir desta fase, o trabalho de Lourdes Castro torna-se cada vez mais depurado, concentrando-se no desenho. Depois dos lençóis bordados, passa a concentrar-se mais na linha da sombra do que no seu suporte. A sombra é assim reduzida ao essencial.


A presença antropomórfica vai desaparecendo gradualmente das peças de Lourdes Castro a partir dos anos setenta. Em Grande Herbário de Sombras (1972), cria um inventário de cem espécies vegetais presentes na ilha da Madeira, sua terra natal. Fá-lo registando as suas sombras sobre papel heliográfico exposto à luz do sol. Antes de passar quase exclusivamente ao desenho sobre papel, ainda faz experiências com azulejos e tapeçarias, sempre obedecendo ao seu leitmotiv. A obsessão tranquila de espírito zen desenvolve-se com Sombras à Volta de Um Centro: a magnífica série de desenhos que quase encerra a actividade de Lourdes Castro (depois desta, a artista raramente faz uma aparição pública, apesar de ter participado na Bienal de São Paulo em conjunto com Francisco Tropa, em 1998, com uma peça que esteve depois exposta no Museu do Chiado). Em Sombras à Volta de um Centro, Lourdes Castro regressa ao lado primordial do desenho de contorno. Ela recolhe flores que dispõe em recipientes, constituindo já este criar de um ramo na sua jarra, uma atitude de estudo prévio. Após isso, ela coloca a composição em cima de um papel, expõe o conjunto à luz e depois dedica-se a seguir as sombras ditadas pela luz e pelas flores. Tudo parte da base do recipiente, que quase sempre é redonda mas por vezes assume outras formas. A partir deste centro, como um Sol, disparam harmoniosamente as sombras das flores, como raios, como fractais que pelas técnicas utilizadas assumem características mais ou menos figurativas. «Aqui, o arranjo das flores nessa jarra – em todas as jarras – é feito, sobretudo, com a atenção que escuta o que as flores e a jarra lhe dizem, diz ela. Os gestos são feitos sem brusquidão, com vagar, com ponderado e cuidadoso afecto, dir-se-ia que manuseia o mundo», escreve Manuel Zimbro, no livro com o mesmo nome desta série, publicado pela Assírio&Alvim. Remata este autor: «A Lourdes “das sombras”, que antes banhava tudo de alumínio, objectos colados e compostos segundo essa mesma escuta, a partir de uma dada altura, diluindo-lhes a densidade, torna toda a representação definitivamente plana. E planificando-a, dando menos fazer ao fazer, simplifica-a».


Lourdes Castro abandonou o quase vão corre corre da arte contemporânea e vive na sua ilha, a da Madeira. Após um longo período de silêncio, podemos finalmente observar as suas obras desde os anos 50 aos 70, na exposição patente no Centro de Arte Manuel de Brito, até 17 de Janeiro. (Palácio Anjos, Alameda Hermano Patrone, Algés).


Lourdes Castro descreve os seus Lençóis de Sombras, em 1969


«São de facto lençóis bordados com contornos de sombras de pessoas deitadas.

Tive esta ideia há muito tempo, a de fazer sombras de pessoas deitadas. Deitadas, deitadas na cama em cima de um lençol, claro. E lençóis naturamente são bordados.

Fiz os primeiros dois na Madeira, durante o Verão de 68.

A surpresa do desenho de gente deitada, sombras projectadas na horizontal e não na vertical (como eu até aqui costumava quase sempre fazer) tornou-se cada vez mais importante, e agora só faço lençóis.

Faço-os eu própria porque realmente tenho prazer em bordá-los; é muito sossegado e tranquilizante; uma espécie de concentração e meditação. Às vezes ouço música e muitas vezes não penso em nada.

Porque é que se deve dependurar tudo nas paredes.

Os japoneses desenrolam os kakemonos só em ocasiões especiais.

Um livro tem que ser aberto.

Os meus lençóis, são para dormir em cima deles.

Se se põe um destes lençóis na parede, as sombras parece que voam, também não me desagrada.

Depois de ter retirado as sombras da sombra de lhes ter dado cor e transparência, uma vida independente, estendo-as.»

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Jóias a Quatro Mãos



Eduardo Nery desenhou as“Linhas Paralelas” que Alexandra Corte-Real transformou em jóias. Miguel Matos mostra-lhe o resultado.

Eduardo Nery, mestre da optical art portuguesa, tem pautado a sua carreira pelo recurso às mais diversas técnicas e suportes. Trabalha não só em desenho e pintura sobre tela, como em cerâmica, escultura, azulejaria e grandes projectos de arte pública. As suas linhas dinâmicas e coloridas, que assumem frequentemente dimensões quase monumentais (nos murais que tem feito, por exemplo), foram agora encolhidas milimetricamente à escala de um dedo, uma orelha, um pulso. Os desenhos de Eduardo Nery, transformados pela joalheira Alexandra Corte-Real são obras pensadas para uma função específica, articulando as linguagens dos dois artistas.

Para quem chega a este parágrafo com o sobrolho levantado, que o baixe pois para Nery, a joalharia é um assunto sério e que há muito lhe interessa, uma vez que se considera um artista e ao mesmo tempo um designer. Mas foi com a produção da taça para a Vista Alegre, no ano passado, que ganhou ânimo para acreditar que era capaz de fazer jóias também. “Em ambos os casos, estou a usar o dourado, cor que tenho usado desde os anos 70. Tenho um fascínio muito grande pelo ouro, pelo seu sentido metafísico e simbólico. A minha última exposição de guaches tinha imensas obras em que usava o ouro e estas jóias vêm no seguimento dessas duas experiências: os guaches e a taça da Vista Alegre.”

“Ocorreu-me a ideia e convidei o Eduardo”, diz Alexandra Corte-Real sobre como surgiu tudo isto. “Ele ficou a olhar para mim, pensou e depois aceitou. Para ele foi um desafio porque representou entrar numa área diferente. Para mim também foi desafiante porque tenho por hábito desenvolver o meu trabalho do princípio ao fim. Se ele aceitou que eu fosse intervir, eu tive de aceitar que a ideia-base seria dele.” O brilho dourado, que desde há décadas sublinha a obra de Nery, aparece agora sob a forma de jóia. A partir do convite de Alexandra, criou formas que bifurcam: dão lugar a objectos em prata e em prata dourada. “Estes materiais levaram-me a criar cores que fossem contrastantes com eles e ao mesmo tempo os integrem. As obras voltam à questão inicial das formas e do movimento na optical art. Ao desenhar, eu já pensava que esse desenho resultaria num pendente, em brincos ou botões de punho. No entanto, quem tomou essas decisões foi a Alexandra, pelo seu conhecimento da escala e do grau de dificuldade técnica”, explica o artista.

Não se trata aqui de um trabalho de colaboração, mas sim de co-autoria. “A Alexandra teve tanta autonomia no seu campo como eu tive a desenhar”, diz Eduardo Nery. No fundo, este projecto foi um grande desafio duplamente sentido. Para Nery, foi uma questão de dimensões, ao passar de uma escala de pintura para objectos tão pequenos. Por outro lado, para Alexandra Corte-Real, o desafio de transformar um desenho numa jóia, não fazendo apenas ajustes ou intervenções funcionais mas sim prolongando linhas e projectando as formas para que continuasse a haver o mesmo equilíbrio do trabalho original. “Este trabalho não é apenas uma adaptação”, explica a joalheira. “Não me limitei a acrescentar uma função, mas desenvolvi a peça.”

A jóia é, por definição, uma obra que se relaciona directamente com o corpo. Que preocupações teve Eduardo Nery ao desenhar para tal finalidade? “A única preocupação que tive foi a de não fazer peças agressivas. Ficou de lado uma ideia que tive para um colar. Nesse desenho eu não consegui encontrar as formas adequadas, uma vez que os seus ângulos se podiam espetar no pescoço. De resto, foi apenas uma questão de escala.”

Entre Nery e Corte-Real, “Linhas Paralelas” é uma exposição híbrida, de autoria mista. Joalharia de autor para quem não a considera como manifestação artística. Conhecendo o gosto da ASAE em apreender jóias de autor como fez em Serralves, reza-se para que a exposição chegue intacta ao seu último dia na Ermida de Belém.

“Linhas Paralelas” está patente na Ermida da Nossa Senhora da Conceição (Travessa do Marta Pinto, 21) de 5 a 20 de Dezembro. Aberta de terça a sexta das 11.00 às 17.00 (encerra para almoço das 13.00 às 14.00). Sábado e domingo das 14.00 às 18.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 1 de Dezembro de 2009

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Cruzeiro Seixas - Lá onde o Negro Sémen do Mundo se Gera no mais Profundo dos Vulcões


Por Miguel Matos

«Se as profundezas do nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo o interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controlo da nossa razão», dizia André Breton em 1924 no seu Manifesto do Surrealismo. Segundo o fundador da corrente, a exploração dos meandros do sonho e da realidade inconsciente era de importância extrema para a arte e para a vida, duas dimensões que mais nenhum programa artístico soube conjugar com tanta eficácia como o surrealismo.

O estado de vigília-a realidade. O estado inconsciente – o sonho! Breton acreditava na resolução destes dois estados contraditórios numa espécie de realidade absoluta a que chamou de surrealidade. Dizia ele: «(...) porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por vezes à realidade, seja este valor de certeza em si mesma, que, em seu tempo, não está exposta a meu desmentido? Porque não haveria eu de esperar do indício do sonho, ele também, resolução de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas as mesmas num caso como no outro, e no sonho elas já estão? O sonho terá menos peso de sanções que o resto? Envelheço, e mais que esta realidade à qual penso me adstringir, é talvez o sonho, a indiferença que lhe dedico, que me faz envelhecer».

Se começou por ler estas páginas pelo seu título, saiba que fez bem. Não só porque são as letras maiores da página, como porque resumem o espírito da obra de Cruzeiro Seixas. De entre o grupo de artistas que participaram na primeira Exposição dos Surrealistas em Lisboa no ano de 1949, Artur do Cruzeiro Seixas é o grande representante-sobrevivente, embora também ainda se encontre entre os viventes e activos o pintor Carlos Calvet. Seixas, aos 88 anos continua a defender que a arte «sempre se deixou levar pelo mundo onírico e sobre ele trabalhou toda a vida. Ainda é possível sonhar? Eu acho que é a única salvação. O sonho acordado é das coisas mais bonitas que o homem tem. É tão belo como a vida sexual... São coisas das quais podemos pôr e dispôr à nossa vontade. É a liberdade!»

Uma chávena impossível de ser pegada – é o Objecto do Quotidiano, peça icónica que Cruzeiro Seixas criou em 1954. Uma chávena com a asa por dentro como a que temos nós e que por si é toldada de acção. A Mão (1960) - Uma luva... Uma mão que arranha e que escreve como quem arranha. Uma luva que acaricia e que denuncia. Que pica e que encanta. Como descreveu Emília Ferreira (CAMJAP). «Um dos objectos escultóricos realizados na década de 60, esta peça perturbadora, com unhas feitas de aparos de caneta, instaura uma relação simbólica entre criação e destruição». Em outro objecto, O Mar Português, uma criatura nómada aprisionada numa gaiola de tradições e crenças. É a impossibilidade que compõe o discurso de Cruzeiro Seixas tanto nos objectos como nos seus desenhos oníricos. O dramatismo de uma alma lírica, de uma personalidade solitária. Não é o humor que compõe seja as esculturas seja os desenhos ou as pinturas de Cruzeiro Seixas. É de uma solidão interior, de histórias de encontros e desencontros. De acontecimentos reais com reverberações imaginárias. Do corpo que se liga e desliga com outros, de metamorfoses ejaculatórias ou dolorosas, mas sempre exacerbadas em traços e manchas precisas sobre papel. «Há uma confusão no que diz respeito à ideia que as pessoas fazem de mim», diz Artur. «Vivo metido no meu buraco e não sou muito sociável. As pessoas falam do humor do Cruzeiro Seixas. Isso é uma coisa que me faz sorrir pois eu não tenho humor nenhum. O que eu faço é profundamente dramático. Eu sou um tipo com um feitio dramático, o que não quer dizer que não goste de ir para a cama acompanhado, por exemplo. Mas realmente os desenhos que faço são dramáticos, é aí que eu abro a minha janela e deito aí as minhas coisas. Há grandes críticos que vêem humor nas minhas obras mas eu acho que isso é um grande desentendimento».



Contra tudo e todos, na actualidade o surrealismo existe, resiste e contamina todas as áreas visuais, desde o cinema (veja-se o caso de David Lynch), à publicidade (como nos anúncios da marca de jeans Diesel), na fotografia (pense-se em David LaChapelle) e nas artes plásticas, Ray Caesar e Mark Ryden poderiam ser associados ao que seria um neo-surrealismo. Em Portugal, e para referir um jovem nome, Cruzeiro Seixas salienta a originalidade dos objectos domésticos forrados a veludo de Eva Alves. No entanto, este género tardio de surrealismo não possui qualquer conteúdo ético, ao contrário do original pensado por Breton e continuado aqui por Seixas. O surrealismo, se é que ele existe hoje, não se assume como tal e constitui apenas uma estética, uma inclinação visual sem pretensões a um programa ideológico. Talvez uma apropriação de um imaginário, uma tradição onírica que nos veio por mãos de Dalí, Chirico ou Magritte, três exemplos máximos e divergentes dentro de uma mesma área abrangente e indefinida por natureza. «Hoje quem quiser seguir o surrealismo de acordo com todos os preceitos que André Breton defendia está lixado... Vê-se às aranhas e fará muitos disparates», diz Cruzeiro Seixas. «Se o Breton voltasse cá provavelmente seria o primeiro a mudar muitas coisas do seu programa inicial. Não faz sentido o surrealismo ortodoxo hoje em dia. O que é preciso é largar a ideia original, acho eu. Eu até nem seria capaz de ser ortodoxo em coisa nenhuma porque a minha luta consiste em romper as barreiras para levar as coisas mais adiante. Este surrealismo de hoje, que anda por aí, está muito mal. Eu correspondo-me com surrealistas de todo o mundo e acho que esta gente nova já não tem nada de surrealista. Estão a fazer exposições e a ganhar dinheiro como qualquer pintor de arte e servem-se do surrealismo como uma estética. Ora acontece que o surrealismo não é uma estética, é uma ética. Não conheço outra alternativa, outra ideia com igual força. O surrealismo foi e é para mim uma ideia muito forte, um mito com muitas possibilidades de nos aguentar neste mundo incrível. Há quem diga que está esgotado mas eu acho que não. No entanto, a maioria das pessoas ligadas à arte está a repetir muitas das coisas inventadas pelos surrealistas nos anos vinte, embora sem revelarem a proveniência da sua inspiração. Isso eu acho muito triste. No outro dia descobri uma série de objectos numa galeria de Lisboa. Eram objectos interessantes que poderíamos chamar de surrealistas mas a pessoa que os fez não tem consciência disso ou não quer ter».

Na residência onde vive, no Estoril, rodeado de objectos de amigos e obras por si desenhadas, despontou-nos a conversa sem rumo nem destino com a companhia de um cadavre exquis seu e de Paula Rego na parede, múltiplas recordações da sua vida em África. Em frente, uma varanda povoada de esculturas suas e ao fundo o mar como companhia...

E como ética, o surrealismo faz sentido hoje em dia?
Há muitos campos em que poderia fazer sentido, mas já não seria uma questão de cumprir as rígidas regras morais de Breton. Por exemplo, ele estava rodeado de homossexuais, mas fingia que não dava por isso e não os aceitava.

Pegando nesse assunto... As diferenças entre a Lisboa de hoje e a de outros tempos são espantosas. Como era ser homossexual em Lisboa?
Para mim foi muito fácil e gostei muito, quando era novo. Ao mesmo tempo, tudo era proibido neste país, com a moralidade do Salazar. Mas havia grandes suspeitas de homossexualidade em relação a Salazar e ao Cardeal Patriarca, que era uma grande dama. Parecia uma senhora na voz e no seu encanto. Mas antigamente era muito mais fácil e mais giro. As pessoas olhavam uma para a outra e logo daí a pouco estavam na cama. Agora não, é preciso ir à noite, para os bares. É quase uma coisa profissional. Tudo evolui tanto em tão pouco tempo... e daí ser tão difícil fazer a História. Porque do alto dos meus 88 anos já vejo a cada momento a história do surrealismo, a história da história, a história do país. Tudo completamente deturpado e as pessoas acreditam. Nunca se sabe onde está a verdade...

Muitas vezes ela está à nossa frente e nós não a vemos...
Se calhar ela nasceu para não ser vista. Tem um véu, como as estátuas das mulheres...

Nas palavras de Rui-Mário Gonçalves, «Cruzeiro Seixas instaura um campo magnético de comunicabilidade intersubjectiva. Há nos seus desenhos celebrações de memórias e juramentos de amor. Há erotismo. Nunca há pornografia.» A sua obra tem o erotismo muito associado. Mas é um erotismo muito subtil. Parece omnipresente mas sempre velado. Não é muito óbvio...
Pois não, eu nunca tinha necessidade disso porque ia para a cama com muita gente... Pode-se falar de erotismo sem falar de surrealismo? Ninguém vai pedir referência válida sobre tal tema ao Neo-realismo, ou à Igreja Católica. O erotismo perdeu o seu encanto, em grande parte, por ser livre. Antigamente era a dificuldade que lhe acrescentava interesse. Era uma fuga às pressões políticas. Eu nunca tinha podido aguentar isso se não fosse esta fuga, como ir para a cama com um marinheiro lindíssimo. E realmente isso era uma coisa muito bonita, era o meu escape. A minha grande porta não foi a pintura, foi isto. E era uma Lisboa extraordinária, o teatro que era a baixa...

Então, mas a Brasileira continua a ser hoje em dia um dos locais de encontros e de “show off” mais activos...
Mas quais são as celebridades que lá estão? Aquilo antigamente estava sempre cheio de gente famosa. O Almada estava lá quase sempre ao final da tarde... e o Almada era um mundo, a maneira de ele falar, a sua gesticulação, nem imagina, era um espectáculo de borla! A respeito dele há uma história muito engraçada que envolvia Mário Cesariny. Ele tinha um grande encantamento por mim e acreditava que eu seria o maior pintor de Portugal. Tínhamos nós vinte anos... eu via dentro da cabeça dele estas coisas e achava que eram sonhos tontos de um amigo, mas deixava andar. Era-me agradável. Um dia fomos ao Café Chiado, as mesas estavam cheias e estava lá o Almada. O Mário era muito atrevido e pegou num caderno meu onde eu desenhava umas coisas. Volta-se para o Almada e diz: «olha, tenho aqui um amigo que faz estas coisas, veja!». O Almada pega no caderno, passa duas volhas e não ligou nenhuma. Eu fiquei encantado a pensar no fracasso do Mário. Para ele foi um fracasso enorme, uma coisa terrível. Eu acho tanta graça a esta história...

Apesar de a vista já fraquejar e a mão também, o Artur está a pensar em voltar a desenhar, não está?
Isso é uma perspectiva muito optimista, ou muito louca pelo menos. Estes últimos meses têm sido imparáveis, loucos. Não consigo fazer nada que preste e já estou farto daquilo que fazia. De maneira que dar-se-à um caso de interrupção e, se a vida sossegar, quero ver se volto a fazer alguma coisa. Mas não quero voltar a fazer o mesmo. No outro dia desafiaram-me a fazer um cadavre exquis. Eu gosto de fazer isso, dá-me mais liberdade, mas não é fácil... Dentro da cabeça não tenho nada, mas sei que precisava de fazer algo de novo. É uma questão de deixar a mão correr... sabe que foi sempre a minha mão que fez tudo e não a cabeça.

Mas continua a existir um público interessado na sua obra. É um nome incontornável da história da arte portuguesa...

As pessoas já estão um bocadinho cansadas do Cruzeiro Seixas. Até eu! Se eu vivesse mais dois ou três anos teria que reinventar um outro Cruzeiro Seixas. Já estou farto de fazer as mesmas coisas. Eu sei que tenho o meu público, mas sou um bicho do mato. O que eu faço interessa mais aos outros do que a mim. Não sou um apaixonado daquilo que faço. Mas enfim, cumpri a minha obrigação, sempre com paixão. Tudo o que fiz na vida foi sempre apaixonadamente e isso é necessário. Mas agora estou farto, é como uma receita de culinária, sempre a mesma. Há alguns anos que comecei a dar por isso.

E no que diz respeito ao interesse do público pelo surrealismo, isso é incontestável...
O surrealismo português é ignorado em todo o mundo. É na Fundação Cupertino de Miranda, onde está o meu espólio e o do Mário Cesariny. É lá que eu propus que se criasse um centro de estudos desta corrente artística. Propus também que eles publicassem um livro sobre a história do surrealismo português.

O que é que o Artur gostava de fazer neste momento?

Agora gostava muito de viajar com uma pessoa que tivesse um entendimento igual ao meu acerca das coisas. O Mário...