por Miguel Matos
No mito da origem da arte pictórica descrito por Plínio, o Velho, os gregos começaram a guardar imagens dos seus entes queridos através do delineamento dos contornos das suas sombras. Uma jovem, cujo amado iria partir, “segurou” a sua memória ao delimitar na parede de uma gruta os traços do seu rosto. Tem início assim o desenho e a pintura e é neste espírito que podemos começar a entender a obra de Lourdes Castro (1930).
A sombra é entendida como realidade e ilusão. Comporta em si a verdade e a mentira. É registo de presença mas está presente de forma etérea. Está associada ao domínio da metafísica, do obscuro. É ao mesmo tempo imagem em si e representação de outra imagem. Embora seja inseparável da figura que a produz, ela é captada e tornada permanente por Lourdes Castro, como que querendo agarrar a passagem fugaz das coisas pelo mundo.
A sombra como testemunha de uma presença e reconstrutora dessa ausência... O fascínio de Lourdes Castro pela sombra aponta sempre no sentido de tornar presente aquilo que está ausente. Ao oferecer ao observador não mais do que a linha de contorno, a artista apresenta os dados essenciais para a apreensão do sujeito da obra. Acaba, assim, por convocar a imaginação e as informações prévias de quem observa, enriquecendo assim a obra com factores que dependem de outrém. «Assim, o desenho concretiza um princípio de economia ou de simplicidade que se encontra subjacente à atitude de Lourdes Castro perante a arte e a vida», analisa Miguel Wandschneider, no livro Lourdes Castro, À Sombra.
Em 1957, Lourdes Castro e René Bertholo deixam para trás um Portugal vazio de ideias e possibilidades criativas. Seguem em direcção a Munique, mas acabam por se estabelecerem em Paris no ano seguinte, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Juntos fundam a mítica revista artística KWY. Um projecto artesanal e modesto, de amigos e cumplicidades visuais sem orientações pré-definidas mas que acabou por servir de veículo de trabalho e projecção para os seus colaboradores regulares – Christo, Gonçalo Duarte, Escada, Costa Pinheiro, João Vieira e Jan Voss. Após um período abstraccionista que acompanha as exposições colectivas do grupo KWY, e partindo de algumas premissas do Nouveau Réalisme, a artista interessa-se pela sombra como relação memorial da representação da permanência do objecto e a sua relação com a luz, problematizada em diversos processos experimentais.
Entre o estar e o não estar, eis o território incerto em que se move Lourdes Castro. José-Augusto França dizia nos anos 60: «O desenho dos contornos da sombra recorda o objecto e diz que ele já não está: é sua memória e sua negação. Entre uma e outra, Lourdes Castro fala de ausência propondo uma ligação extremamente inquietante» (Cem Exposições, ed. INCM). A captação de traços e vestígios do quotidiano em Lourdes Castro começa com as assemblagens dentro de caixas – montagens e colagens de objectos banais, de uso no dia-a-dia, pintados de alumínio. As primeiras sombras projectadas começou a fazê-las em 1962, já em serigrafia, técnica que não mais abandonou e sempre aplicou aos mais diversos suportes. A KWY era ela própria uma revista inteiramente produzida em serigrafia.
São pequenos animais, talvez bonecos. Elefantes, burros, patos. São pequenos nadas como cabides, fivelas e coisas que nao reconhecemos pelo contorno, apenas adivinhamos. Este é o início de uma exploração sobre papel quase obsessiva mas tranquila. Um caminho que se derramou depois sobre telas, placas recortadas de plexiglas e películas de rodhoid (materiais inovadores para a época dos sessentas). Todos eles suportes que aludem ao conceito de telas. São projecções planas sobre ecrãs e evocam o assunto da memória e da duplicidade. Um caminho que a artista tem percorrido de forma solitária, sem se inserir claramente em correntes estéticas estabelecidas.
Sempre registando o que as sombras lhe sugeriam, Lourdes Castro cria quadros-objectos quase esculturas de parede que sobrepoem placas de plexiglas de diferentes cores, pintadas ou impressas em serigrafia. Estas placas, translúcidas e tão imateriais como as próprias sombras, ao serem montadas e acumuladas criam novas sombras e silhuetas que se interpenetram. Fundem-se com a parede onde se instalam e criam um jogo tridimensional que activa o dispositivo óptico. Acompanhando todas estas “novidades” técnicas, uma das àreas de trabalho mais simples de Lourdes Castro é também uma das mais interessantes: o desenho. «A linha, tal como ela existe no desenho de Lourdes Castro, não é um invólucro, ela não dá “corpo” a um saco, uma caixa, um volume que se trataria de encher de uma vez por todas», diz Sylvain Lecombe no livro À Sombra. São exemplos dessa concepção de desenho as malas, pastas ou outros contentores/recipientes e os desenhos dos seus conteúdos quotidianos, feitos com traços de sombras que se interpenetram. Limites que se transbordam e cruzam, aumentando a complexidade de algo em si muito simples. «O desenho de Lourdes Castro não descreve. Se parte da observação e mesmo da integração do real, não visa portanto à sua banal reprodução, é outra coisa que um duplicado do real, que um espelho onde ele se reflectiria», analisa Sylvain Lecombe. «Ele é para o real o que a sombra é para as pessoas e os objectos: essa parte da realidade impalpável, distorcida, elástica, imperceptivel, fantasmagórica e fugitiva, de que a linha e os espaços que ela desdobra em torno dela são, em matéria de desenho, o equivalente mais perfeito».
No final dos anos sessenta, o interesse pelo contorno da sombra deitou-se. Passou da vertical de uma parede para a horizontal de uma cama. São os lençóis bordados com sombras de pessoas deitadas. Bordados pela própria artista, foram feitos para dormir, mas com a possibilidade de se pendurarem na parede, transformando-se assim em outro objecto com outro uso. Mas, como diz Lourdes, estas sombras são de pessoas deitadas. «Deitadas na cama em cima de um lençol, claro. E lençóis naturamente são bordados». A evolução da trajectória passa nos anos setenta para um registo performático, com o Teatro de Sombras, em colaboração com Manuel Zimbro. Esta performance, apresentada até 1985 realçava o carácter imaterial e efémero das sombras que então se moviam na superfície do pano onde eram projectadas. A artista aparecia em cena, como num espectáculo de sombras chinesas. Executava os movimentos e gestos do quotidiano, as acções mais banais, imprimindo poesia nestes rituais que todos cumprem mas ninguém vê. A partir desta fase, o trabalho de Lourdes Castro torna-se cada vez mais depurado, concentrando-se no desenho. Depois dos lençóis bordados, passa a concentrar-se mais na linha da sombra do que no seu suporte. A sombra é assim reduzida ao essencial.
A presença antropomórfica vai desaparecendo gradualmente das peças de Lourdes Castro a partir dos anos setenta. Em Grande Herbário de Sombras (1972), cria um inventário de cem espécies vegetais presentes na ilha da Madeira, sua terra natal. Fá-lo registando as suas sombras sobre papel heliográfico exposto à luz do sol. Antes de passar quase exclusivamente ao desenho sobre papel, ainda faz experiências com azulejos e tapeçarias, sempre obedecendo ao seu leitmotiv. A obsessão tranquila de espírito zen desenvolve-se com Sombras à Volta de Um Centro: a magnífica série de desenhos que quase encerra a actividade de Lourdes Castro (depois desta, a artista raramente faz uma aparição pública, apesar de ter participado na Bienal de São Paulo em conjunto com Francisco Tropa, em 1998, com uma peça que esteve depois exposta no Museu do Chiado). Em Sombras à Volta de um Centro, Lourdes Castro regressa ao lado primordial do desenho de contorno. Ela recolhe flores que dispõe em recipientes, constituindo já este criar de um ramo na sua jarra, uma atitude de estudo prévio. Após isso, ela coloca a composição em cima de um papel, expõe o conjunto à luz e depois dedica-se a seguir as sombras ditadas pela luz e pelas flores. Tudo parte da base do recipiente, que quase sempre é redonda mas por vezes assume outras formas. A partir deste centro, como um Sol, disparam harmoniosamente as sombras das flores, como raios, como fractais que pelas técnicas utilizadas assumem características mais ou menos figurativas. «Aqui, o arranjo das flores nessa jarra – em todas as jarras – é feito, sobretudo, com a atenção que escuta o que as flores e a jarra lhe dizem, diz ela. Os gestos são feitos sem brusquidão, com vagar, com ponderado e cuidadoso afecto, dir-se-ia que manuseia o mundo», escreve Manuel Zimbro, no livro com o mesmo nome desta série, publicado pela Assírio&Alvim. Remata este autor: «A Lourdes “das sombras”, que antes banhava tudo de alumínio, objectos colados e compostos segundo essa mesma escuta, a partir de uma dada altura, diluindo-lhes a densidade, torna toda a representação definitivamente plana. E planificando-a, dando menos fazer ao fazer, simplifica-a».
Lourdes Castro abandonou o quase vão corre corre da arte contemporânea e vive na sua ilha, a da Madeira. Após um longo período de silêncio, podemos finalmente observar as suas obras desde os anos 50 aos 70, na exposição patente no Centro de Arte Manuel de Brito, até 17 de Janeiro. (Palácio Anjos, Alameda Hermano Patrone, Algés).
Lourdes Castro descreve os seus Lençóis de Sombras, em 1969
«São de facto lençóis bordados com contornos de sombras de pessoas deitadas.
Tive esta ideia há muito tempo, a de fazer sombras de pessoas deitadas. Deitadas, deitadas na cama em cima de um lençol, claro. E lençóis naturamente são bordados.
Fiz os primeiros dois na Madeira, durante o Verão de 68.
A surpresa do desenho de gente deitada, sombras projectadas na horizontal e não na vertical (como eu até aqui costumava quase sempre fazer) tornou-se cada vez mais importante, e agora só faço lençóis.
Faço-os eu própria porque realmente tenho prazer em bordá-los; é muito sossegado e tranquilizante; uma espécie de concentração e meditação. Às vezes ouço música e muitas vezes não penso em nada.
Porque é que se deve dependurar tudo nas paredes.
Os japoneses desenrolam os kakemonos só em ocasiões especiais.
Um livro tem que ser aberto.
Os meus lençóis, são para dormir em cima deles.
Se se põe um destes lençóis na parede, as sombras parece que voam, também não me desagrada.
Depois de ter retirado as sombras da sombra de lhes ter dado cor e transparência, uma vida independente, estendo-as.»