segunda-feira, 3 de maio de 2010

Teresa Gonçalves Lobo - Instinto


“Algures dentro de mim

uma nascente.

a merecê-la que cântaro?

Que canto?


Sinuoso

vertente



precário

o trilho das palavras


Ador transborda

a sede permanece.”


Rosa Lobato de Faria1


As linhas que percorrem estas superfícies vertem sinuosas como uma intuição desenhada por escrito. É imagem que desliza sem a mediação teórica de quem a premedita. Inscrevendo-se a obra de Teresa Gonçalves Lobo dentro do rumo do instinto, como seria possível descrever o seu corpo de trabalho recorrendo a teorias? Quem, neste mundo, pede justificações a um músculo para que ele se mova? Quem pede licença antes de soltar um pensamento? Estes traços de sentimentos incertos vivem dessa volatilidade. São desenhos do corpo que falam sobre os instintos, numa obra de cariz profundamente gestual, que descende da abstracção lírica para encontrar um rumo próprio.

As íntimas geografias apresentadas por Teresa Gonçalves Lobo são correntes no seu trajecto, como água na fluidez de quem desenha como quem respira. E, mais uma vez, não se pede autorização aos pulmões para se engolir uma golfada de ar e depois soltá-la já disforme, quente da passagem pelo corpo. Tal como este texto, que faço por ser escrito o mais espontaneamente que consigo, querendo fazer eco da Teresa quando frente ao papel com os materiais riscadores. Falando com a artista, percebe-se que é para si urgente a actividade de criar. Dessa urgência emerge a inconsciência que faz destes trabalhos registos emotivos, reflexos puros das camadas mais profundas da mente. Como uma automática escrita (embora longe dos preceitos surrealistas) que, timidamente, deixa entrever matizes mais ou menos profundos pela intensidade das marcas feitas no papel.

Há nestas peças um silêncio expressivo omnipresente que convida à reflexão e à contemplação. Talvez as origens insulares de Teresa Gonçalves Lobo sejam perceptíveis na poesia simples e recatada das suas obras. Entre sinuosas curvas quase vegetais e linhas serpenteadas de rios correntes, é de elementos essenciais que se faz a sua prática artística, numa contenção cromática que reflecte um isolamento com propósitos de recolha interior. Nos pretos da grafite e da tinta-da-china sobre o branco imaculado do espaço plano do papel surgem por vezes vermelhos de intensa vida ou verdes de pura energia. Da maioria dos seus desenhos surge uma sensação de crescimento, como seres diáfanos que se inclinam e prolongam em direcção à luz. Mas, por outro lado, são formas orgânicas que possuem as suas raízes em crescimento para a terra e, portanto, à obscuridade, à interioridade. Recolhimento e conhecimento. Em ambos os casos, há uma direcção apontada à necessidade criativa, esteja ela sintonizada com as forças da luz ou da escuridão. São sentimentos à solta. Contudo, não é absolutamente caótica a criação de Teresa Gonçalves Lobo, o que se torna evidente notando a organização de linhas em confluência. Na tentativa de extrair energia de um corpo pensante, acontece naturalmente um desenho com a tranquilidade do silêncio. Há nisto como que uma intenção pouco clara de organização espacial da mente. Tornar plástico um estado de espírito sem ceder à tentação da figuração.

Teresa não tem medo de errar nesta entrega de si. Na verdade, como representar o desejo e o instinto sem cair em erro por não os conhecermos na totalidade? O erro faz parte destes caminhos e vive dentro de uma subjectivação assumida de quem desenha “coisas que se pensam em mim”, como dizia Maria João Ceitil. “Pôr o corpo a falar, pôr o desejo a falar, é abrirmo-nos à possibilidade do sentido daquilo que parece ser sentido. (...) O rasto que o meu pensamento segue é o da descoberta de um movimento no pensamento: pensar é pensar e ser pensado. O movimento de vai-e-vem. Espaços dialécticos da subjectividade”2.

O trabalho de Teresa Gonçalves Lobo, como o de todos os artistas contemporâneos não vive sem algo que o precedeu. Possui, não na sua génese, mas na sua contextualização, como referência, o trabalho de Ana Hatherly, no que diz respeito à ligação com as caligrafias por si exploradas. Também, a espaços, é possível identificar cruzamentos com alguma obra de Eurico Gonçalves. No entanto, percebe-se a autonomização do seu discurso. Abandonando progressivamente os iniciais alfabetos, e assim distanciando-se da tradição gráfica protagonizada por Soulages. Há um lado performático nestas linhas. O que é inegável também é a feminilidade destes traços, se entendermos a sensibilidade à flor da pele como característica definidora da feminilidade. O que vemos aqui é o reflexo do movimento instintivo de uma mão que corre a superfície sem pressas, sem poderes nem regras. De facto, “é emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transmuta o mundo em pintura”, como disse Merleau-Ponty3. Sem noções pré-estabelecidas ou intenções programáticas, Teresa Gonçalves Lobo segue as linhas que, saindo de si, canalizadas, só as conhece depois de riscadas através do seu corpo.


Miguel Matos

1Faria, Rosa Lobato, Poemas Recolhidos e Dispersos. Roma Editora, Lisboa, 1997

2Ceitil, Maria João. Pôr o Corpo a Pensar. ISPA, Lisboa, 2003

3Ponty, Merleau. O Olho e o Espírito. Vega, Lisboa, 2006

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