quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Ana Janeiro - Espelho meu, espelho meu...


Miguel Matos fez uma viagem ao passado e recordou os contos infantis, desconstruídos pelas mãos de Ana Janeiro.

Era uma vez uma fotógrafa chamada Ana Janeiro. Certo dia ela vestiu a capa do Capuchinho Vermelho e comeu a maçã envenenada da Branca de Neve. Como escapou ilesa destas aventuras, decidiu fazer uma pesquisa sobre os mágicos contos populares da nossa infância e descobriu que inocência é coisa que eles não têm. É a sua interpretação do sentido original destes mitos que se mostra na Galeria Paulo Amaro, na exposição “Who’s The Fairest One of All?”.
Tal como tem acontecido nos teus trabalhos anteriores, és tu quem aparece nas fotografias, mas estas imagens não são exactamente autoretratos, uma vez que o que vemos são personagens exteriores a ti. No fundo, é como se fosses apenas a tua própria modelo, certo?

Sim, também. Eu julgo que há sempre um bocadinho de mim, mas eu uso-me para representar outras personagens. Neste caso, fascinou-me a ideia de pegar nos contos infantis porque o meu trabalho tem sido sempre baseado na memória e na intimidade. Estes contos são a memória colectiva da infância.

São cenas que fazem parte da nossa estrutura “psicanalítica”...

Claro, e muito daquilo que aprendemos socialmente é transmitido pelos contos infantis, que têm também essa função. Foi isso que eu achei interessante. Estudei a origem das histórias infantis antes de elas o serem. Eram contos populares e muitos deles, na sua versão original, não são nada aconselháveis para crianças. Como eram histórias de tradição oral, não há registos originais, mas sim da versão escrita mais antiga, que não será a primeira. E, ao longo dos tempos, mesmo o papel das personagens foi altamente modificado ao longo dos tempos.

Podes dar um exemplo?

“O Capuchinho Vermelho” originalmente chamava-se “A História da Avozinha”. É completamente diferente o papel da mulher nesta história: em vez de ser uma menina que tem de ser salva por um caçador, trata-se de uma mulher que se safa sozinha das investidas do lobo. Isto é completamente diferente daquilo que nós aprendemos. Na sua versão mais antiga, ela vai a casa da avozinha levar comida, encontra o lobo na floresta, este encontra a casa da avozinha e come-a. Mas não a come toda; guarda o resto da carne e do sangue na despensa. Quando o Capuchinho Vermelho lá chega, o lobo finge que é a avozinha na cama e pede-lhe para se meter na cama com ele. Pede-lhe também para se despir e ela pergunta-lhe o que fazer com a roupa. O lobo responde: “Deita-a na fogueira pois já não vais precisar dela”. Ela enfia-se na cama com o lobo e percebe que não é a avozinha. Então diz que tem que fazer uma coisa lá fora. Ele não quer, mas ela insiste. Então o lobo amarra-a com uma corda pelo tornozelo. O Capuchinho Vermelho chega à rua, amarra a corda numa ameixoeira e foge. Quando o lobo se apercebe já é tarde demais.

Portanto, a história inicial foi completamente subvertida. O Capuchinho Vermelho passou de mulher corajosa a menina inocente e devorada...
Interessa-me a maneira como o papel social da mulher foi mudado ao longo dos tempos. Quem deu a este conto a sua carga moral foi Charles Perrault. Segundo a versão dele, a menina que ia na floresta distraiu-se a apanhar flores e portanto foi comida pelo lobo.

E quanto à segunda história que vemos nestas imagens, a Branca de Neve? O que lhe aconteceu?

O registo mais antigo é dos Irmãos Grimm, mas a versão original tem algumas diferenças. A principal está na forma como a história acaba. O Príncipe não a salva com um beijo, os anões levam-na no tal caixão de vidro e tropeçam numa pedra. Com o solavanco, o caroço que estava alojado na garganta salta e a Branca de Neve acorda. No casamento do Príncipe e da Branca de Neve, quando o pai descobre o que a madrasta tinha feito, eles resolvem castigá-la obrigando-a a dançar até à morte nuns sapatos de ferro em brasa. É um final brutal e é daí que vem a série de fotografias da mulher a dançar. Aliás, numa versão de que não existem registos escritos, não é a madrasta, mas sim a mãe que quer matar a filha porque está a crescer e a tornar-se mais bela do que ela própria. É uma dualidade quase esquizofrénica, como se a madrasta (ou a mãe) e a filha fossem a mesma personagem. Essa questão do duplo está sempre presente no meu trabalho.

E no entanto, acaba por ser uma história ainda actual, no sentido em que a busca desenfreada pela juventude é cada vez mais forte nos dias de hoje...

Sim, com todas as cirurgias plásticas que existem...

O teu trabalho fala muitas vezes sobre a questão da condição feminina, mas num discurso sobre a mulher que é mais intimista do que político...

Nunca pensei muito nessas questões políticas, embora acabe sempre por ser um pouco. Toco no feminismo porque é incontornável ao falar da mulher, mas gosto de explorar isso de um ponto de vista mais pessoal e íntimo.
E daí, como dissemos antes, utilizares o auto-retrato para contar uma história que afinal não é tua?

Mas também é minha...

“Who’s The Fairest of them All?” está patente na Galeria Paulo Amaro (Rua Capitão Leitão, nº14) até 27 de Fevereiro. Aberta de terça a sábado das 11.00 às 19.30. A entrada é gratuita.

Time Out, 12 de Janeiro de 2010

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