domingo, 31 de janeiro de 2010

Bartolomeu Cid dos Santos - O Mundo Gravado num Papel


Miguel Matos relembra o mestre gravador Bartolomeu Cid dos Santos, em exposição antológica no Centro de Arte Manuel de Brito.

É inaugurada esta semana a exposição dedicada a Bartolomeu Cid dos Santos, a quem o jornal britânico The Guardian se referiu como “o artista que encontrou a liberdade em Londres e a fama em Portugal”. Eis a homenagem ao grande vulto da gravura portuguesa, artista de fama internacional, professor e amigo do coleccionador Manuel de Brito.

Apesar de desaparecido há dois anos, a obra de Bartolomeu Cid dos Santos apresenta-se viva por ter inspirado outros grandes nomes da gravura como David de Almeida e Paula Rego, sua aluna. “Em Londres, tinha uma relação privilegiada com os alunos, que rapidamente ficavam amigos para a vida. Era o professor que, como dizia, ensinava tudo quanto sabia. Essa relação de cerca de 40 anos com jovens de todo o mundo levou-o a fazer cursos do Canadá e dos EUA à China, ao Paquistão, ao Iraque”, conta Maria Arlete Alves da Silva, comissária da exposição.

Apesar de leccionar durante grande parte da sua vida em Londres, de 1961 a 1996, na Slade School of Art, Bartolomeu nunca cortou as raízes com Portugal. Expunha regularmente por cá e regressou finalmente, após longo período de ausências intermitentes. Durante toda a vida, uma atitude de bon vivant, uma extensa bagagem cultural e a preocupação constante com o estado do mundo fizeram dele uma personalidade marcante. Fascinado pelo negrume de Goya, e na senda das técnicas de gravura, Bartolomeu Cid dos Santos dedicou-se de início a interpretar as suas duas cidades: Londres e Lisboa – a dialéctica entre o escuro caos do smog gelado e a luminosidade quente de uma terra mediterrânica.

É uma dualidade de humores. Se por um lado discursa sobre a podridão de um clero obscuro, logo depois entra numa mitologia onírica em que fala de terras perdidas da Atlântida. Outros temas explorados foram o regime opressor de Salazar e, recuando nos séculos, a ousadia de dividir o mundo ao meio com o Tratado de Tordesilhas. No reverso, as gravuras dedicadas ao mar, à mulher, às praias e aos poetas.

Se de Andrei Tarkovsky a Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa, toda uma abundância de influências eruditas é invocada em diversas séries, outras há em que são sereias os motivos de eleição. Mais tarde, denuncia o ataque americano ao Iraque, transformando os soldados em ratos destruidores e gananciosos. A sincronia com a vida leva-o a reinventar as suas linguagens plásticas, apropriando-se dos signos e estilos das manifestações da arte das ruas e paredes. Como disse aquando de uma exposição na Galeria 111, em 2001, “se devemos estar atentos e denunciar a agressão que hoje a todos os níveis nos rodeia, isso não nos impede de mergulhar no nosso mundo interior, onde poderemos encontrar uma outra, mais misteriosa, mas não menos perturbadora realidade”.

A par com esta antologia de obras da colecção Manuel de Brito, uma outra mostra se desenvolve no mesmo palácio. “Going South” é um conjunto de peças seleccionadas a partir de cinco artistas pelas suas afinidades temáticas com Bartolomeu Cid dos Santos. A homenagem reúne Samuel Rama, Valter Vinagre, Ana João Romana, Miguel Martinho e John Aiken. “Going South” é a evocação de uma série que Bartolomeu realizou numa época feliz da sua vida, quando regressou a Portugal e se instalou em Tavira, onde criou um ateliê de gravura. Nestas imagens produzidas em terras algarvias, não é raro aparecerem visitas de polvos e sereias. Para o artista, estas presenças sedutoras tinham facetas dúbias: “A sereia que apareceu em algumas destas gravuras simboliza o canto das tentações que nos levará ao naufrágio, se não formos tão cautos como Ulisses o foi na sua famosa viagem.”

“Bartolomeu Cid dos Santos” e “Going South” está patente no CAMB (Palácio Anjos, Alameda Hermano Patrone, Algés) até 16 de Março.

Time Out, 26 de Janeiro de 2010

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