sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Fátima Mendonça - Um carrossel de obsessões domésticas


Fátima Mendonça pinta sempre o interior de si, por vezes no interior de uma casa. Na casa pintada de Fátima, vive uma toureira que enfrenta os medos de frente, que seduz e entra no jogo da carne e da morte. As toureiras, metáforas de coragem, visitam muito as suas pinturas. Na casa imaginada de Fátima há uma toureira que se isola de tudo. O mundo em que vive, construiu-o para si com aquilo que tinha à mão: doces, dores e obsessões. Com estas matérias-primas caseiras, construiu um carrossel. Uma coisa que gira, que gira, que gira, que não vai a lado nenhum e não pára.
Um divertimento de ais e ansiedades que dá a volta à casa, que dá a volta à toureira e que nunca mais tem fim... É esta a “Casa-Carrossel” que Fátima Mendonça transportou para a Galeria 111. “Eu trabalho de forma circular”, diz a pintora. Isto quer dizer que há um conjunto de elementos que, de forma obsessiva, circulam, aparecem e desaparecem nas imagens que cria. Também a sua visão das coisas que a cercam e da vida que tem tende a criar ciclos e círculos. Nestas realidades à roda do inexplicável, Fátima deixa de lado o medo que foi o motivo da sua anterior exposição. Já não é o medo que espreita pelos cantos da casa ou que se esconde sob o papel de parede. Não que ele tenha desaparecido, mas a artista entregou-se a outras paciências.

O seu mundo afunilou-se, reduziu-se a uma casa isolada, que nem assenta sobre a terra, mas que se pendura por um pau, longe do contacto com o mundo.

Da casa pendurada por paus e fios cresce um enorme carrossel, construído por quem lá mora, montado com objectos domésticos e estilhaços de coisas que doem.

“É como se tivesses o coração todo partido e fosses, no meio do desespero, colar as pecinhas e, então, fica outro objecto com forma de coração, todo atrofiadinho, todo remendado. E acaba por ter muito mais valor do que o coração impecável porque foste tu, com a tua dor, que o foste ligar e construí-lo de novo”, conta Fátima. “É a tua forma de superar, como se agarrasses na tristeza e conseguisses construir algo, mesmo que saibas que aquele carrossel não te leva a lado nenhum. Mas é bonito e é para isso que serve um carrossel, para nos divertirmos.”

Nestas telas e desenhos vemos uma casa suspensa, distanciada do chão. Dentro dela mora alguém que não tem contacto com a realidade. Nesta casa, a única coisa que a toureira pode criar são carrosséis no telhado. Carrosséis feitos, à falta de melhor, com o material que está à mão. São coisas manuais, criadas com os fantasmas de quem lá vive. Há carrosséis feitos de fios, de pernas de toureira, de formas de bolo e de rabos de touro.

Não há nesta exposição uma história para contar. Apenas um registo obsessivo de movimento circular. Sente-se uma vertigem pelas alturas e uma atracção pelas velocidades. Tudo gira num vórtice de símbolos como os rabos de touro (metáforas para a dor) numa volta de pernas de toureira – “é como se ela tivesse parado de brincar às touradas. É uma ironia. Ela já não consegue fazer nada com os fatos, e então pega neles e faz um carrossel”. Há rodopios também feitos de formas de bolo. Fátima diz que “podemos construir uma prótese de bolo, uma mão, por exemplo. Os bolos são coisas que eu ligo à casa. São coisas doces, que sabem bem e que alimentam, mas essa ideia interessa-me porque consigo encontrar nela qualquer coisa de assustador e perverso”.

Não venha à exposição “Casa-Carrossel” se as voltas lhe perturbam a lógica e causam tonturas. “A ideia do carrossel é uma ideia circular”, explica a pintora. “Tem um lado lúdico, obsessivo e pode ser uma coisa angustiante porque dá uma sensação de perigo, mas tem também um lado de festa. Este é um carrossel impraticável, é mais um labirinto do que um carrossel, criado por alguém que anda ali às voltas e nunca desce à terra. No fundo, os carrosséis têm qualquer coisa de gigantesco, é como se fossem um espaço onde nos perdemos.” E se nos perdemos é porque a razão se mostrou inútil. No limbo entre o real e o imaginário interior de Fátima Mendonça, o melhor é entrar no carrossel e aproveitar a viagem.

“Casa-Carrossel” está patente na Galeria 111 (Campo Grande, 113) até ao fim do ano. De terça a sábado das 10.00 às 19.00. Encerrada nos feriados. Entrada gratuita.

Miguel Matos

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