terça-feira, 16 de novembro de 2010

Teatro Digital - Reflexões sobre Miguel Chevalier



“A arte digital oferece um verdadeiro reservatório de formas impossíveis de imaginar de outro modo, uma quantidade ilimitada de formas representando, por exemplo, objectos em três dimensões a partir de equações complexas, ou de imagens fractais bi ou tridimensionais geradas unicamente por simulação gráfica. O computador pode permitir traçar as figuras mais inimagináveis, onde poderosas equações possuem uma pluralidade de parâmetros funcionais, capazes de satisfazer o nosso inconsciente óptico”1. - Herlander Elias in Néon Digital




Um desafio de ver e agir. É o que Miguel Chevalier propõe ao entrarmos, ao sermos sugados por vezes, para dentro das suas instalações interactivas. A realidade que cria é composta por “ambientes” onde o movimento humano é ponto de partida para o desenvolvimento de uma obra de arte em que o deslumbre visual nos leva a divagar em paragens incertas. Neste repto de fazermos parte da obra de arte, de viajarmos com ela, pede-se coragem – é que este mundo virtual que se desdobra perante nós abre portas para o desconhecido...
Para Wolf Lieser, especialista em arte digital, “Em princípio, toda a activação de um processo mental que acontece durante a observação de uma obra artística pode ser considerada uma interacção”. O que é o mesmo que dizer que toda a arte é interactiva. Mas há obras de arte, nomeadamente no campo da arte digital, em que há uma interacção técnica, ou seja, estabelece-se uma interacção directa com o receptor através da sua participação tangível na obra. A interacção nas obras de arte digital pode limitar-se ao simples premir de um botão ou ir até um conjunto de relações mais complexas entre a obra e o utilizador/observador. Nas projecções interactivas de Miguel Chevalier verificamos que a obra, apesar de só estar completa com a presença do espectador, consegue viver até mesmo sem ele. Isto porque o seu trabalho baseia-se na generatividade, o que implica o desenvolvimento autónomo de formas a partir de uma espécie de ADN digital. Segundo o artista, trata-se de um “simulacro da natureza” que envolve a vida, a mutação contínua, o movimento e a transição entre estados. Por exemplo, em Fractal Flowers, as sementes virtuais criam flores autónomas que crescem, abrem e murcham até ao infinito. No entanto, sempre que se requer a interactividade, o artista toma o observador como sujeito da experiência artística, um elemento cuja acção e movimento sustenta a própria obra de arte. Isto implica uma responsabilidade partilhada no que diz respeito à autoria e ao processo de criação. O observador passa a actor, ao transitar do tradicional comportamento passivo para um comportamento activo, chegando a representar um elemento central na obra de arte. Esta conectividade entre obra e observador salienta o carácter performativo presente em muitos dos trabalhos de Miguel Chevalier.
A interactividade característica do trabalho deste artista situa-se num nível em que Miguel estabelece a priori as acções possíveis ou não de serem realizadas perante o conjunto de imagens e dispositivos que coloca à disposição do visitante. Assim, o interveniente é uma espécie de performer mas apenas a um nível limitado, sem possibilidade de radicalmente transformar as acções permitidas. Na actividade previamente pautada pelo artista, o usuário tem o poder, primeiro que tudo, de optar por entrar ou não na obra de arte. Depois disso, tem o poder de aceitar uma ou várias (ou todas) as opções de interacção, como se de um jogo se tratasse. Noutro nível de exploração da obra, o usuário poderia ampliar ou negar a informação previamente fornecida pelo artista, assumindo um papel cada vez mais autoral. Não é, no entanto, esse o interesse primordial de Chevalier.
Ainda no que concerne à possibilidade de leitura performativa das instalações interactivas de Chevalier, é interessante notar que ela se dá a dois níveis: se por um lado podemos ser o actor que age de acordo com os dados com os quais nos é permitido interagir, movimentando o corpo e observando em tempo real a resposta visual em frente ou à volta deste corpo, há também a possibilidade de outros observadores, mais afastados do campo de acção, poderem contemplar a obra na sua totalidade, apesar de alheados da interacção. Assim, actor e ambiente podem funcionar visualmente como um “teatro digital”. Algumas instalações, como “Fractal Flowers” não requerem acções ou movimentos pensados ou conscientemente coordenados por parte do visitante. A simples presença física e a duração da mesma no espaço altera as coordenadas da imagem ou interferem no seu desenvolvimento. Aqui não se pode falar de performance mas sim de uma mera consciência corporal do observador que se sente alvo de uma acção que já não lhe pertence e escapa ao seu controlo.
Um aspecto importante do trabalho de Chevalier é o seu carácter site specific. A disposição dos elementos tecnológicos e a escala das imagens projectadas diverge grandemente consoante os locais onde as obras são apresentadas. Com isto mudam os públicos e os comportamentos perante as imagens. Uma vez que são peças que estabelecem uma relação directa com o espaço onde são instaladas, há sempre um elemento arquitectónico a considerar que é de importância extrema para a fruição da peça. Há uma relação directa entre o espaço real e o espaço virtual. Confirma-se assim que o que distingue as instalações digitais de grande escala é o equilíbrio entre aqueles dois domínios e os métodos empregues para “traduzir um espaço para o outro”2.
A prática artística de Miguel Chevalier não é uma actividade de ruptura, como se possa pensar à primeira vista, considerando os meios sofisticados que utiliza. Poderá parecer um paradoxo, mas um dos aspectos que distinguem a obra de Miguel Chevalier em comparação com outros artistas digitais é a sua relação com a tradição da pintura. Durante a sua juventude no México, Chevalier privou com personalidades marcantes da cultura e da arte, sendo de salientar os artistas muralistas David Siqueiros e Rufino Tamayo, que frequentavam a sua casa. Tendo esta referência, é pertinente notar que as suas instalações frequentemente, e cada vez mais, assumem grandes dimensões. São muitas vezes projecções murais de grande impacto, que provocam o estarrecimento do observador. Mas esta não é a única relação possível de ser estabelecida com os muralistas e com outras correntes estabelecidas na pintura. Pode-se também resgatar alguma tradição da pintura de paisagem, ao recordar as obras “Fractal Flowers” e “Ultra Nature” em que uma vista panorâmica vegetal é alterada e afectada pela acção do movimento do observador, que chega a ser actor. O artista, numa entrevista aquando da sua exposição “Segunda Natureza”, em Brasília, disse: “a minha formação em história da arte mostrou o quanto artistas como Seurat, Cézanne e Monet, no século XIX, assim como Mondrian, Matisse, Warhol, Fontana ou Nam June Païk, no século XX, e tantos outros, foram visionários e inovadores no campo da pintura. Esses artistas, em certo sentido, por meio de suas pesquisas pictográficas e das suas abordagens intelectuais prefiguram a arte computacional.”3 Serão eles precursores desta arte digital?
Wolf Lieser é um dos autores que reconhece esta afinidade de Miguel Chevalier com as correntes da pintura, salientando também a inspiração deste criador nas tradições pictóricas do pontilhismo e do impressionismo4. É curiosa a forma como a tradição da pintura aparece numa linguagem tão recente. Mas a verdade é que em todas as épocas, os pintores utilizaram os meios e as linguagens do seu tempo. O tempo de Chevalier é o tempo da tecnologia. Também Pierre-Yves Desaive relaciona as obras digitais de Miguel Chevalier com a história da pintura. Ele chega mesmo a dizer, a propósito da relação deste criador com Cézanne que “enquanto o artista pretende reduzir o seu sujeito a volumes geométricos, ao mesmo tempo deve evitar a humildade em vista da enormidade e complexidade da sua tarefa como pintor de paisagens. Seria incapaz de atingir o seu objectivo sem o recurso à própria natureza, um mundo natural que lhe oferece um repertório limitado de formas com as quais ele retranscreve a infinitude do visível”5. Miguel Chevalier não se situa longe desta posição. O seu processo, decorrente de técnicas e suportes digitais, de programas de computador em vez de tintas e pincéis, resulta na criação de um vocabulário pictórico próprio, composto, como no caso de “Fractal Flowers”, por elementares formas geométricas, à semelhança do que se passava com o cubismo. Recorrendo às ideias de Herlander Elias, “trata-se de uma cultura da Técnica que dispõe de formas de realização neoestéticas, justamente porque permitem a concepção de formas de beleza totalmente novas, mesmo quando os novos ideais de belo são influenciados pelas técnicas clássicas, pelos procedimentos e métodos de aproximação da arte museificada, agora compartimentados pela ciência de informação e pelos métodos de armazenamento de dados”.
Miguel Chevalier não se dedica apenas a temas de referência ao mundo vegetal ou à alusão à pintura através de meios digitais. Em “Crossborders”, a experiência do usuário no centro da instalação interactiva consegue ser ainda mais imersiva porque é tomada em dimensões mais complexas e envolventes. Através de sensores, imagens reais e virtuais (algumas delas em três dimensões) são manipuladas pelo visitante num emaranhado de redes urbanas, comunicacionais e geográficas. É uma envolvência em paisagens verbais, como uma caverna de significados intrincados e em permanente mutação. É um espaço constituído por dados e fórmulas, algoritmos e algarismos. Pertence à nossa realidade, mas num contexto simbólico e feito exclusivamente de informação. “Como espaço construído por cálculos, certamente difere, de muitas formas, dos espaços da nossa realidade física; é o sistema de referência espacial usado nos media digitais. Qualquer discussão acerca das diferenças entre espaços físicos e virtuais requer uma clarificação daquilo que entendemos como espaço em primeiro lugar”, analisa Christiane Paul.
Através das suas obras, Miguel Chevalier cria extensões da nossa consciência corporal e espacial. É a estimulação da percepção posta em relação com a cognição na “beleza natural” do ciberespaço.

Miguel Matos


1 Elias, Herlander. Néon Digital – Um Discurso sobre os Ciberespaços. Universidade da Beira Interior/Labcom, 2007

2 PAUL, Christiane; Digital Art. Thames & Hudson, Londres, 2008.

3 VENTURELLI, Suzete; Segunda Naureza, 2009. Espaço Cultural Marcantonio Vilaça, Brasília, 2009.

4 LIESER, Wolf; Arte Digital – Novos Caminhos na Arte. H.F. Ullmann, Lisboa, 2010.

5 DESAIVE, Pierre-Yves; Flores Fractais in Inside – Arte e Ciência. Ed LxXL, Lisboa, 2009.

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