domingo, 28 de novembro de 2010

PIECES and PARTS - Plataforma Revólver, até 22 Janeiro. R. da Boavista, 84, 1º. Lisboa


Curadoria de Elsa Garcia e Miguel Matos


Nascida em 2002, a Revista Umbigo começou por ser uma publicação sobre arte e cultura com um enfoque específico: o corpo como lugar e assunto da criação artística. Objecto editorial difícil de catalogar, provou a conquista do seu público apesar do deserto editorial em que se situava na época da sua génese. Embora o corpo não seja já o tema fulcral da Umbigo, foi neste assunto que tudo se originou. Quando se completam oito anos, 35 edições trimestrais da revista, que melhor tema para uma exposição comemorativa do que o corpo? É pois este o assunto que, partido e reunido, a Umbigo propõe analisar.

“The human organism is an atrocity exhibition at which he is an unwilling spectator”
J. G. Ballard, The Atrocity Exhibition

Não é assunto novo na arte moderna e contemporânea. O corpo sempre foi um dos objectos mais “remexidos” pela arte. Desde a “lógica da representação à lógica da participação/interacção, do critério do perfeito ao desafio do inacabado, o corpo na arte decanta-se, miscigeniza-se, desproporciona-se, desequilibra-se, desvaloriza-se, efemeriza-se, órfão do sentido único”1. O corpo como realidade física é composto por órgãos, peças e partes visíveis e outras ocultas, apenas imagináveis até à invenção dos métodos e tecnologias médicas de visualização do seu estado interno. Falamos de um corpo que já não o é apenas como um todo, mas também como uma dispersão através da representação das suas partes. Se encarado como objecto estético e metafórico, cada órgão é visto pela sua capacidade iconográfica, seja através da representação realista ou através do rasto da sua passagem ou percepcionado através dos materiais por ele produzido. É uma multiplicidade de imagens que, sendo do corpo, dele já se afastaram. Referem-se ao seu portador, mas vivem de forma autónoma. Estes fragmentos - esta desconstrução - podem constituir um alfabeto, separando as letras da palavra carnal. Cada um deles vive assim em conjunção com outros, coordenados ou não, criando um discurso passível de diferentes leituras que podem ser literais, conceptuais ou poéticas, consoante o observador e o proponente de tais visões. Paradoxalmente, “Pieces and Parts” reune as partes sem nunca se conseguir ver o todo.
Entre os signos e as próteses, as marcas do desejo e as provas de devoção, o corpo é palco daquilo que o próprio corpo sente e pensa. Um corpo analisado em memórias e fragmentos é o mote para uma exposição em forma de lição de anatomia. Através de objectos representativos das peças e partes que compõem o corpo humano, reune-se uma amostra de diferentes abordagens à sua representação. O conjunto resulta numa visão em desconjunto, afasta-se da totalidade física para atingir uma sucessão de imagens e objectos aparentemente sem sentido mas que sugerem a única coisa que os seres humanos inequivocamente partilham: uma idêntica geografia interna, uma cartografia comum, uma máquina orgânica… A exposição reúne linguagens e técnicas divergentes, como a pintura, a joalharia, a escultura, o vídeo e a instalação de autores provenientes de Portugal, Brasil, EUA, Espanha e Sérvia.

Miguel Matos



Artistas:
Alexandra Mesquita, Ana Vidigal, Annie Sprinkle, Carlos Mélo, Clara Games, Cristina Ataíde, Fátima Mendonça, Inês Nunes, João Galrão, Julião Sarmento, Lara Torres, Leonor Hipólito, Lluís Hortalà, Manuela Sousa, Miriam Castro, Miguel Branco, Rafael Canogar, Rui Effe, Sara Maia, Teresa Milheiro e Vladimir Velickovic.



1. BARBOSA, António. Corpo Metafórico in O Corpo na Era Digital. Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa, 2000.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Fátima Mendonça - Um carrossel de obsessões domésticas


Fátima Mendonça pinta sempre o interior de si, por vezes no interior de uma casa. Na casa pintada de Fátima, vive uma toureira que enfrenta os medos de frente, que seduz e entra no jogo da carne e da morte. As toureiras, metáforas de coragem, visitam muito as suas pinturas. Na casa imaginada de Fátima há uma toureira que se isola de tudo. O mundo em que vive, construiu-o para si com aquilo que tinha à mão: doces, dores e obsessões. Com estas matérias-primas caseiras, construiu um carrossel. Uma coisa que gira, que gira, que gira, que não vai a lado nenhum e não pára.
Um divertimento de ais e ansiedades que dá a volta à casa, que dá a volta à toureira e que nunca mais tem fim... É esta a “Casa-Carrossel” que Fátima Mendonça transportou para a Galeria 111. “Eu trabalho de forma circular”, diz a pintora. Isto quer dizer que há um conjunto de elementos que, de forma obsessiva, circulam, aparecem e desaparecem nas imagens que cria. Também a sua visão das coisas que a cercam e da vida que tem tende a criar ciclos e círculos. Nestas realidades à roda do inexplicável, Fátima deixa de lado o medo que foi o motivo da sua anterior exposição. Já não é o medo que espreita pelos cantos da casa ou que se esconde sob o papel de parede. Não que ele tenha desaparecido, mas a artista entregou-se a outras paciências.

O seu mundo afunilou-se, reduziu-se a uma casa isolada, que nem assenta sobre a terra, mas que se pendura por um pau, longe do contacto com o mundo.

Da casa pendurada por paus e fios cresce um enorme carrossel, construído por quem lá mora, montado com objectos domésticos e estilhaços de coisas que doem.

“É como se tivesses o coração todo partido e fosses, no meio do desespero, colar as pecinhas e, então, fica outro objecto com forma de coração, todo atrofiadinho, todo remendado. E acaba por ter muito mais valor do que o coração impecável porque foste tu, com a tua dor, que o foste ligar e construí-lo de novo”, conta Fátima. “É a tua forma de superar, como se agarrasses na tristeza e conseguisses construir algo, mesmo que saibas que aquele carrossel não te leva a lado nenhum. Mas é bonito e é para isso que serve um carrossel, para nos divertirmos.”

Nestas telas e desenhos vemos uma casa suspensa, distanciada do chão. Dentro dela mora alguém que não tem contacto com a realidade. Nesta casa, a única coisa que a toureira pode criar são carrosséis no telhado. Carrosséis feitos, à falta de melhor, com o material que está à mão. São coisas manuais, criadas com os fantasmas de quem lá vive. Há carrosséis feitos de fios, de pernas de toureira, de formas de bolo e de rabos de touro.

Não há nesta exposição uma história para contar. Apenas um registo obsessivo de movimento circular. Sente-se uma vertigem pelas alturas e uma atracção pelas velocidades. Tudo gira num vórtice de símbolos como os rabos de touro (metáforas para a dor) numa volta de pernas de toureira – “é como se ela tivesse parado de brincar às touradas. É uma ironia. Ela já não consegue fazer nada com os fatos, e então pega neles e faz um carrossel”. Há rodopios também feitos de formas de bolo. Fátima diz que “podemos construir uma prótese de bolo, uma mão, por exemplo. Os bolos são coisas que eu ligo à casa. São coisas doces, que sabem bem e que alimentam, mas essa ideia interessa-me porque consigo encontrar nela qualquer coisa de assustador e perverso”.

Não venha à exposição “Casa-Carrossel” se as voltas lhe perturbam a lógica e causam tonturas. “A ideia do carrossel é uma ideia circular”, explica a pintora. “Tem um lado lúdico, obsessivo e pode ser uma coisa angustiante porque dá uma sensação de perigo, mas tem também um lado de festa. Este é um carrossel impraticável, é mais um labirinto do que um carrossel, criado por alguém que anda ali às voltas e nunca desce à terra. No fundo, os carrosséis têm qualquer coisa de gigantesco, é como se fossem um espaço onde nos perdemos.” E se nos perdemos é porque a razão se mostrou inútil. No limbo entre o real e o imaginário interior de Fátima Mendonça, o melhor é entrar no carrossel e aproveitar a viagem.

“Casa-Carrossel” está patente na Galeria 111 (Campo Grande, 113) até ao fim do ano. De terça a sábado das 10.00 às 19.00. Encerrada nos feriados. Entrada gratuita.

Miguel Matos

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Teatro Digital - Reflexões sobre Miguel Chevalier



“A arte digital oferece um verdadeiro reservatório de formas impossíveis de imaginar de outro modo, uma quantidade ilimitada de formas representando, por exemplo, objectos em três dimensões a partir de equações complexas, ou de imagens fractais bi ou tridimensionais geradas unicamente por simulação gráfica. O computador pode permitir traçar as figuras mais inimagináveis, onde poderosas equações possuem uma pluralidade de parâmetros funcionais, capazes de satisfazer o nosso inconsciente óptico”1. - Herlander Elias in Néon Digital




Um desafio de ver e agir. É o que Miguel Chevalier propõe ao entrarmos, ao sermos sugados por vezes, para dentro das suas instalações interactivas. A realidade que cria é composta por “ambientes” onde o movimento humano é ponto de partida para o desenvolvimento de uma obra de arte em que o deslumbre visual nos leva a divagar em paragens incertas. Neste repto de fazermos parte da obra de arte, de viajarmos com ela, pede-se coragem – é que este mundo virtual que se desdobra perante nós abre portas para o desconhecido...
Para Wolf Lieser, especialista em arte digital, “Em princípio, toda a activação de um processo mental que acontece durante a observação de uma obra artística pode ser considerada uma interacção”. O que é o mesmo que dizer que toda a arte é interactiva. Mas há obras de arte, nomeadamente no campo da arte digital, em que há uma interacção técnica, ou seja, estabelece-se uma interacção directa com o receptor através da sua participação tangível na obra. A interacção nas obras de arte digital pode limitar-se ao simples premir de um botão ou ir até um conjunto de relações mais complexas entre a obra e o utilizador/observador. Nas projecções interactivas de Miguel Chevalier verificamos que a obra, apesar de só estar completa com a presença do espectador, consegue viver até mesmo sem ele. Isto porque o seu trabalho baseia-se na generatividade, o que implica o desenvolvimento autónomo de formas a partir de uma espécie de ADN digital. Segundo o artista, trata-se de um “simulacro da natureza” que envolve a vida, a mutação contínua, o movimento e a transição entre estados. Por exemplo, em Fractal Flowers, as sementes virtuais criam flores autónomas que crescem, abrem e murcham até ao infinito. No entanto, sempre que se requer a interactividade, o artista toma o observador como sujeito da experiência artística, um elemento cuja acção e movimento sustenta a própria obra de arte. Isto implica uma responsabilidade partilhada no que diz respeito à autoria e ao processo de criação. O observador passa a actor, ao transitar do tradicional comportamento passivo para um comportamento activo, chegando a representar um elemento central na obra de arte. Esta conectividade entre obra e observador salienta o carácter performativo presente em muitos dos trabalhos de Miguel Chevalier.
A interactividade característica do trabalho deste artista situa-se num nível em que Miguel estabelece a priori as acções possíveis ou não de serem realizadas perante o conjunto de imagens e dispositivos que coloca à disposição do visitante. Assim, o interveniente é uma espécie de performer mas apenas a um nível limitado, sem possibilidade de radicalmente transformar as acções permitidas. Na actividade previamente pautada pelo artista, o usuário tem o poder, primeiro que tudo, de optar por entrar ou não na obra de arte. Depois disso, tem o poder de aceitar uma ou várias (ou todas) as opções de interacção, como se de um jogo se tratasse. Noutro nível de exploração da obra, o usuário poderia ampliar ou negar a informação previamente fornecida pelo artista, assumindo um papel cada vez mais autoral. Não é, no entanto, esse o interesse primordial de Chevalier.
Ainda no que concerne à possibilidade de leitura performativa das instalações interactivas de Chevalier, é interessante notar que ela se dá a dois níveis: se por um lado podemos ser o actor que age de acordo com os dados com os quais nos é permitido interagir, movimentando o corpo e observando em tempo real a resposta visual em frente ou à volta deste corpo, há também a possibilidade de outros observadores, mais afastados do campo de acção, poderem contemplar a obra na sua totalidade, apesar de alheados da interacção. Assim, actor e ambiente podem funcionar visualmente como um “teatro digital”. Algumas instalações, como “Fractal Flowers” não requerem acções ou movimentos pensados ou conscientemente coordenados por parte do visitante. A simples presença física e a duração da mesma no espaço altera as coordenadas da imagem ou interferem no seu desenvolvimento. Aqui não se pode falar de performance mas sim de uma mera consciência corporal do observador que se sente alvo de uma acção que já não lhe pertence e escapa ao seu controlo.
Um aspecto importante do trabalho de Chevalier é o seu carácter site specific. A disposição dos elementos tecnológicos e a escala das imagens projectadas diverge grandemente consoante os locais onde as obras são apresentadas. Com isto mudam os públicos e os comportamentos perante as imagens. Uma vez que são peças que estabelecem uma relação directa com o espaço onde são instaladas, há sempre um elemento arquitectónico a considerar que é de importância extrema para a fruição da peça. Há uma relação directa entre o espaço real e o espaço virtual. Confirma-se assim que o que distingue as instalações digitais de grande escala é o equilíbrio entre aqueles dois domínios e os métodos empregues para “traduzir um espaço para o outro”2.
A prática artística de Miguel Chevalier não é uma actividade de ruptura, como se possa pensar à primeira vista, considerando os meios sofisticados que utiliza. Poderá parecer um paradoxo, mas um dos aspectos que distinguem a obra de Miguel Chevalier em comparação com outros artistas digitais é a sua relação com a tradição da pintura. Durante a sua juventude no México, Chevalier privou com personalidades marcantes da cultura e da arte, sendo de salientar os artistas muralistas David Siqueiros e Rufino Tamayo, que frequentavam a sua casa. Tendo esta referência, é pertinente notar que as suas instalações frequentemente, e cada vez mais, assumem grandes dimensões. São muitas vezes projecções murais de grande impacto, que provocam o estarrecimento do observador. Mas esta não é a única relação possível de ser estabelecida com os muralistas e com outras correntes estabelecidas na pintura. Pode-se também resgatar alguma tradição da pintura de paisagem, ao recordar as obras “Fractal Flowers” e “Ultra Nature” em que uma vista panorâmica vegetal é alterada e afectada pela acção do movimento do observador, que chega a ser actor. O artista, numa entrevista aquando da sua exposição “Segunda Natureza”, em Brasília, disse: “a minha formação em história da arte mostrou o quanto artistas como Seurat, Cézanne e Monet, no século XIX, assim como Mondrian, Matisse, Warhol, Fontana ou Nam June Païk, no século XX, e tantos outros, foram visionários e inovadores no campo da pintura. Esses artistas, em certo sentido, por meio de suas pesquisas pictográficas e das suas abordagens intelectuais prefiguram a arte computacional.”3 Serão eles precursores desta arte digital?
Wolf Lieser é um dos autores que reconhece esta afinidade de Miguel Chevalier com as correntes da pintura, salientando também a inspiração deste criador nas tradições pictóricas do pontilhismo e do impressionismo4. É curiosa a forma como a tradição da pintura aparece numa linguagem tão recente. Mas a verdade é que em todas as épocas, os pintores utilizaram os meios e as linguagens do seu tempo. O tempo de Chevalier é o tempo da tecnologia. Também Pierre-Yves Desaive relaciona as obras digitais de Miguel Chevalier com a história da pintura. Ele chega mesmo a dizer, a propósito da relação deste criador com Cézanne que “enquanto o artista pretende reduzir o seu sujeito a volumes geométricos, ao mesmo tempo deve evitar a humildade em vista da enormidade e complexidade da sua tarefa como pintor de paisagens. Seria incapaz de atingir o seu objectivo sem o recurso à própria natureza, um mundo natural que lhe oferece um repertório limitado de formas com as quais ele retranscreve a infinitude do visível”5. Miguel Chevalier não se situa longe desta posição. O seu processo, decorrente de técnicas e suportes digitais, de programas de computador em vez de tintas e pincéis, resulta na criação de um vocabulário pictórico próprio, composto, como no caso de “Fractal Flowers”, por elementares formas geométricas, à semelhança do que se passava com o cubismo. Recorrendo às ideias de Herlander Elias, “trata-se de uma cultura da Técnica que dispõe de formas de realização neoestéticas, justamente porque permitem a concepção de formas de beleza totalmente novas, mesmo quando os novos ideais de belo são influenciados pelas técnicas clássicas, pelos procedimentos e métodos de aproximação da arte museificada, agora compartimentados pela ciência de informação e pelos métodos de armazenamento de dados”.
Miguel Chevalier não se dedica apenas a temas de referência ao mundo vegetal ou à alusão à pintura através de meios digitais. Em “Crossborders”, a experiência do usuário no centro da instalação interactiva consegue ser ainda mais imersiva porque é tomada em dimensões mais complexas e envolventes. Através de sensores, imagens reais e virtuais (algumas delas em três dimensões) são manipuladas pelo visitante num emaranhado de redes urbanas, comunicacionais e geográficas. É uma envolvência em paisagens verbais, como uma caverna de significados intrincados e em permanente mutação. É um espaço constituído por dados e fórmulas, algoritmos e algarismos. Pertence à nossa realidade, mas num contexto simbólico e feito exclusivamente de informação. “Como espaço construído por cálculos, certamente difere, de muitas formas, dos espaços da nossa realidade física; é o sistema de referência espacial usado nos media digitais. Qualquer discussão acerca das diferenças entre espaços físicos e virtuais requer uma clarificação daquilo que entendemos como espaço em primeiro lugar”, analisa Christiane Paul.
Através das suas obras, Miguel Chevalier cria extensões da nossa consciência corporal e espacial. É a estimulação da percepção posta em relação com a cognição na “beleza natural” do ciberespaço.

Miguel Matos


1 Elias, Herlander. Néon Digital – Um Discurso sobre os Ciberespaços. Universidade da Beira Interior/Labcom, 2007

2 PAUL, Christiane; Digital Art. Thames & Hudson, Londres, 2008.

3 VENTURELLI, Suzete; Segunda Naureza, 2009. Espaço Cultural Marcantonio Vilaça, Brasília, 2009.

4 LIESER, Wolf; Arte Digital – Novos Caminhos na Arte. H.F. Ullmann, Lisboa, 2010.

5 DESAIVE, Pierre-Yves; Flores Fractais in Inside – Arte e Ciência. Ed LxXL, Lisboa, 2009.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

José Pedro Croft - Contentores em final grandioso


A primeira temporada do Projecto Contentores chega ao fim com a mais radical intervenção de todas, concebida por José Pedro Croft. Desde Junho já passaram pelos contentores estacionados nas docas Luísa Cunha, Bruce Nauman, Fernando Ribeiro, R2 Design, Susanne Themlitz e Pedro Cabrita Reis. Uns com maior, outros com menor transformação destes enormes paralelepípedos.
Para finalizar em grande, José Pedro Croft vai empilhar os quatro contentores, tirar partes, acrescentar outras, puxar o exterior para dentro e empurrar o interior para fora. Tudo junto resulta numa torre que estilhaça imagens e proporciona uma vivência da escultura por dentro e por fora. Cruza os limites entre imagem e objecto e os limites do corpo com o espaço. Os contentores serão empilhados constituindo uma coluna. As portas ficarão entreabertas e no seu interior serão colocados espelhos. A Time Out teve acesso a uma antevisão da maquete da peça que inaugurará este sábado. O estado final dos contentores, só no final se conhecerá, visto se tratar de uma montagem sujeita a surpresas.

José Pedro Croft dá nova forma aos velhos contentores, que adquirem assim a forma característica de outras obras escultóricas do artista. “Subverto a ideia de contentor como uma coisa que recebe imagens do exterior, que as reenvia e acaba por ser uma plataforma de passagem de informação”, explica. O espaço fechado do contentor passa a ser aberto e vulnerável a contaminações vindas de fora. O “quase-edifício”, de formas aparentemente claras no exterior, fragmenta-se com a visão que se pode ter a partir de dentro. Com os planos abertos para o céu e a ponte, assim como com as imagens presas aos espelhos, a percepção desta torre é de mutação, tendo em conta as mudanças entre o dia e a noite.

Uma vez que esta é a última intervenção nos Contentores, José Pedro Croft teve total liberdade de manipulá-los, não se preocupando com o que ficará depois. “Nunca tive ideia de usar os contentores respeitando a sua forma”, diz. O próprio contentor como objecto tem muito a ver com as esculturas que José Pedro Croft tem concebido ao longo dos anos. Também elas são sempre contentores. “É verdade”, responde o artista. “Quando eu fiz a retrospectiva no CCB em 2002, reparei, olhando para trás, que todo o meu trabalho andava à volta de rectângulos, caixas e contentores. A escultura é um assunto frequentemente funerário, mas pode não ter a ver só com caixões. Pode ter a ver com caixas, contentores, arcas que guardam sal, farinha, cartas, memórias... Interessa-me a ideia desse sítio onde se guarda coisas que mais tarde são abertas. Se for uma caixa com cartas, elas podem ser lidas e reactivarem as experiências passadas ou, no caso de farinha, esta teve na origem a semente e há-de ser transformada em pão. É todo um processo dinâmico”.

No fundo, se guardamos algo num contentor é porque esse algo tem um valor e a finalidade será, em princípio, a sua utilização posterior. O contentor é um lugar de transição, tal como a arte. Croft interessa-se pelo tema: “É um ambiente de fixação. As coisas estão em movimento e há um momento em que são fixadas naquele espaço. Mesmo quando é transportado, o que lá está dentro vai fixo. O que se mexe é o contentor. Depois há outro momento em que se volta ao processo dinâmico.”

Nestas dimensões e volumes, a dimensão arquitectural demonstrada abundantemente na obra de Croft torna-se clara, pela forma como o artista trabalha estes contentores, aglutinados num edifício final.

Miguel Matos