“Arte é infância. Arte é não saber que o mundo já existe, e fazer um. Não destruir nada que se descobre, mas simplesmente não encontrar nada acabado.” - Rainer Maria Rilke1
Alexandra Mesquita sente uma inquietação filosófica permanente. O questionamento da vida, do ser que é e dos seres que a rodeiam faz parte da sua personalidade e isso passa para os seus “objectos, nervosos” ou “objectos irrequietos”. Estes objectos constituem, afinal, metáforas para as inquietações dos seus donos. Diz-me o que possuis, dir-te-ei quem és? Seguindo uma linhagem duchampiana, mas abandonando teorias, questionamentos estéticos e outros tiques típicos do artista dito “contemporâneo”, Alexandra Mesquita escrutina comportamentos e atitudes, objectificando-os, criando metáforas palpáveis para as tipologias daquilo e daqueles que ela observa e analisa. Neste caminho que segue, a palavra é companheira quase omnipresente. As letras e as palavras, os signos e os símbolos são as linhas com que tem cosido as suas exposições e ao longo do tempo as peças que as constituem têm passado da bidimensionalidade vertical para uma cada vez mais assumida tridimensionalidade em todas as posições imagináveis. Sendo a artista amante das palavras, escritas, cosidas (cozidas?), pensadas, desenhadas, faladas... é, pois, natural, que os livros acabem por ser matéria de exploração. Ainda para mais no contexto de uma exposição inserida dentro de uma livraria. É que dentro de uma livraria há livros mortos e livros vivos. Livros que se vêem, livros que se lêem. Livros que se dirigem a quem por eles passa e outros que nada dizem (uns vivos e silenciosos, outros mortos estarão). Tal como nós, os humanos, que raramente somos livros abertos. Estes livros de Alexandra Mesquita são “Livros Vivos”. Livros que, por teimosia e artes mágicas, se revelam fechados, abertos, silenciosos ou em queda livre.
Já em 1993, Alexandra Mesquita apresentava os livros como suporte. Eram peças com um carácter mais pictórico, mas já pretendiam sugerir que o seu conteudo tinha sido alterado, criando inclusive relevos que podiam simular a destruição pelo fogo, entre outras possiveis sugestões. A utilização e transfiguração de objectos pré-existentes na sociedade de consumo é prática comum no percurso de Alexandra Mesquita. Objectos banais, dos que encontramos nas lojas ou no lixo são elementos de narrativas fragmentadas. Afinal, como refere Catherine Millet, “já os dadaístas haviam dado a entender que não havia razão para não se utilizar também, nas obras de arte, qualquer outro objecto produzido industrialmente”2. Os livros, pese embora a sua associação directa à cultura e ao conhecimento, são ainda assim objectos de consumo, mas não só. Espelham os interesses e sentimentos de quem os lê ou as aspirações de quem apenas os transporta. Os livros de Alexandra Mesquita reafirmam a dependência da artista em relação à palavra e à comunicação como motor das relações sociais. Nisto dá-nos a observar a palavra viva que se esconde na intimidade codificada em cartas ilegíveis ou a palavra distante que se fecha no seu território geográfico/identitário. A palavra egoísta que não se dá a entender num livro cheio de palavras afins. A palavra diária que se regista para se esconder. A palavra que circula dentro de nós, se recicla e torna a percorrer o corpo alimentando a vida, a palavra que, enfim, desagua no papel e se encontra com outras no mundo-livro. Estes são livros de escritas entrecruzadas que desafiam a descodificação e não apresentam solução à vista. São palavras que se soltam do seu chão e escorrem, mesmo que por vezes sem destino nem receptor.
Miguel Matos
1 Rilke, Rainer Maria. Da Natureza, da Arte e da Linguagem. Largebooks, Lisboa, 2009
2 Millet, Catherine. A Arte Contemporânea. Instituto Piaget, Lisboa, 2000
Gostei deste espaço. Voltarei.
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