sábado, 22 de janeiro de 2011

Vasco Araújo - Com a verdade me enganas...


“Custa muito ser genuína, minha senhora. (…) Somos tanto mais genuínas quanto mais nos parecemos com o que sonhamos”, dizia a personagem de Agrado no filme de Almodóvar Tudo Sobre a Minha Mãe. Esta frase vem a propósito daquilo que julgamos ser o autêntico e o falso. Nisto se inclui a mentira como forma de sobrevivência ou a verdade como impossibilidade, assim como os artifícios com os quais contruímos a nossa identidade. Vasco Araújo reflecte sobre os temas da verdade e do real, do animal e do social na sua exposição “Mente-me”.
Este projecto trata do ponto que separa uma coisa do seu oposto. Usar essa ideia para falar da verdade é assumir que a verdade pode ter dois lados. O título “Mente-me” refere-se não só ao mentir aos outros, mas também ao mentirmos a nós próprios. A exposição reúne fotografia, vídeo e escultura, atestando a multiplicidade de linguagens e suportes a que o artista recorre para a representação plástica de uma ideia, associando imagens a textos literários de correspondência ambígua.

Vasco Araújo tem tido um percurso fulgurante nos últimos anos, com destaque para a sua participação na Bienal de São Paulo, as exposições em Paris, Boston e Vigo, para além da Casa da Cerca e da Fundação Calouste Gulbenkian. Neste momento é um dos nomes mais vincados da sua geração. Na preparação para a exposição individual na Galeria Filomena Soares, Vasco confessa que a seguir precisa de descansar. Mas será isto verdade ou estará a mentir? “Mente-me” é o nome do conjunto de trabalhos que mostra ao público a partir de dia 20.

Todo o trabalho de Araújo tem uma dimensão teatral e “Mente-me” não constitui excepção. No centro está um vídeo em que várias personagens discutem em torno da procura do homem verdadeiro. A dada altura, a personagem central, o velho, diz: “Um homem simples que não tem senão a verdade a dizer é olhado como o perturbador do prazer público. Evitam-no, porque não agrada; evita-se a verdade que anuncia, porque é amarga; evita-se a sinceridade que professa porque não dá frutos senão selvagens; temem-na porque humilha, porque revolta o orgulho, que é a mais cara das paixões. Faz com que nos vejamos tão disformes como somos.”

Esta busca é um eco que vem da Grécia antiga. O filósofo Diógenes de Sinope andava com uma candeia em Atenas à procura do homem verdadeiro. Nesta versão contemporânea, a acção passa-se na floresta à hora do crepúsculo, período de tempo em que não se sabe se é de dia ou de noite. Estas obras tratam dessa indefinição, pois a verdade para uma pessoa não o é necessariamente para outra. No vídeo, as personagens mentem aos outros e a si mesmas. A questão da falsidade é levantada também por um par de gémeos (verdadeiros ou falsos?) que perguntam a um travesti se o seu cabelo é real ou é uma peruca. Mas o que significa isso do real? O cabelo falso não existe na realidade? Não condiz mais com a imagem que o travesti tem de si próprio e que quer projectar aos outros? A obra levanta questões acerca da identidade, do preconceito e das convenções sociais, o artifício, a personagem, a confusão entre o real e o imaginário...

Para além do vídeo “Telos”, em que a filosofia se junta à ironia, há obras de escultura, fotografia e textos, muitos textos que vale a pena descortinar. Há uma escultura que representa um homem de duas cabeças. “É uma história que eu inventei. Um fala o outro pensa. O que fala diz tudo o que lhe apetece e o outro pensa que o primeiro deve ser assertivo e não dizer tudo o que diz”, explica o artista. Existe nesta série uma duplicidade constante que faz parte da vida. Se não podemos dizer a verdade a toda a hora, também nos ensinam que não devemos mentir. Isso obriga-nos a trabalhar para encontrar um equilíbrio nessa dualidade. “Mente-me” apresenta histórias de ambiguidade. Entre a verdade e a mentira está a ficção. No final, a verdade é reconhecer que muitas vezes mentimos.


Miguel Matos

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