domingo, 27 de setembro de 2009

A Arte Pós-Darwin


Miguel Matos foi conhecer uma exposição de Arte e Ciência mas não ficou transgénico


Um preto de carapinha loira ou um branco de carapinha não é natural. Ter uma orelha num braço também não é natural, mas ao contrário dos casos anteriores, não é falta de restaurador Olex. É Inside, o cruzamento entre arte e ciência que se mostra na Cordoaria.


Aproximar a arte da vida, desviando o conhecimento da ciência para a produção artística. É este o objectivo da Arte e Ciência um conceito artístico emergente e muito recente. Engloba um conjunto de práticas artísticas que romperam com aquilo a que tradicionalmente se chama Arte Contemporânea. Estas práticas são tão variadas e dão resultados tão diferentes que até agora ainda não se conseguiu encontrar um único nome para designar todo este conjunto. Até agora apareceram vários nomes para as propostas que misturam campos aparentemente antagónicos como estes. Bioarte é a terminologia mais conhecida, mas também lhe chamam sci-art, arte e tecnologia, arte e ciência... No fundo ainda ninguém definiu o que é isto.


“Inside” já está a ser preparada há dois anos e é uma exposição ambiciosa ao reunir os maiores especialistas nestas investigações artísticas. “Esta exposição é um manifesto que tenta apresentar em Portugal uma nova arte cujo conhecimento é muito diminuto”, diz Leonel Moura, Comissário do evento. É assim que no campo das biotecnologias vários artistas usam metodologias aplicadas na medicina ou na manipulação genética para gerarem esculturas, novas formas de vida ou reconfigurações dos corpos, do próprio artista ou de outros seres vivos. É também assim que no campo da inteligência artificial se propõe a possibilidade de gerar uma criatividade artificial, usando algoritmos e robôs.


“Pela primeira vez os artistas não estão a ilustrar a vida, mas a criá-la, seja de formas biológicas ou artificiais, Isto levanta questões que têm a ver com a vida.”, defende Leonel Moura. Através da biotecnologia é possível utilizar a capacidade de manipulação genética para a criação de uma flor com genes de artista ou processos de medicina que permitem implantar uma orelha num braço. No caso da robótica e da inteligência artificial, há robôs que reagem a estímulos exteriores e têm comportamentos autónomos. A importância deste tipo de arte é dar a ver uma realidade que já existe mas que não está à vista da maior parte das pessoas. Trata-se de descontextualizar estas técnicas para atraír a atenção e criar uma nova visão do mundo. “Esta exposição vai parecer muito futurista, mas não é”, diz Leonel Moura. “Tudo o que nós fazemos só é futurista para quem ainda não se apercebeu de que estas coisa já existem realmente. As operações estéticas, os transplantes, a manipulação genética, a robótica, a inteligência artificial... tudo isto já existe”.


Aquilo a que se chama Arte e Ciência começou a surgir nos anos 70 de uma forma muito incipiente mas só neste século é que isto tem ganhado forma. São agora realizadas exposições deste tipo de arte em vários países, apesar da resistência oferecida pelos agentes culturais mais conservadores. O público interessa-se pelo tema e os museus começam a perceber e a reconhecer a sua importância. Na opinião de Leonel Moura, “é muito visível a crise da arte contemporânea na dificuldade que tem em apresentar coisas novas. Defendo que não estamos perante mais uma tendência da arte contemporânea, mas sim uma nova arte, que provoca uma ruptura. Altera o próprio conceito de arte, assim como os seus processos de produção. É claro que estamos a mexer num domínio muito sensível e ainda vamos ver coisas horríveis a serem feitas neste âmbito. Mas também muitas coisas boas. O ser humano precisa de um empurrão para evoluir como organismo. Vamos conseguir superar a evolução natural e começar uma evolução artificial”. Será este o início do período pós-Darwin?


Time Out, Setembro 2009

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Paula Rego - Nossa Senhora das Histórias



Paula Rego viveu desde os sete anos no Estoril e foi lá que o seu imaginário começou a florescer. Agora é em Cascais que encontra a sua segunda casa: a Casa das Histórias Paula Rego. O museu de torres altas da cor do tijolo, desenhado pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura, abre as suas portas na sexta-feira. Miguel Matos foi recebido pela artista.

“Interessa-me aprender a desenhar melhor. É o que eu gostava, mas demora tempo e é preciso muito trabalho”, confessou Paula Rego à Time Out, como se tivesse ainda muito caminho por fazer. Na Casa das Histórias Paula Rego conta-se a história de evolução da artista e o processo de como ela chega à linguagem que tem hoje.

A Casa das Histórias Paula Rego é caso raro entre os museus portugueses. Setecentos e cinquenta metros quadrados pensados e concebidos desde o primeiro tijolo para instalar uma colecção própria. Ou seja, um projecto integrado que tem em conta a escala do país e da zona em que está inserido, nunca esquecendo a dimensão internacional da artista.
A colecção da Casa das Histórias foi toda ela doada por Paula Rego, que manifestou desde o início total disponibilidade e empenho no projecto. Ofereceu ao museu toda a sua obra gravada (ao todo são 257 gravuras, serigrafias e litografias), assim como centenas de desenhos e aguarelas que vão desde pequenos esquiços, esboços e estudos onde busca espontaneamente a forma e as composições. Para além disto, ainda emprestou por dez anos (renováveis por período idêntico) toda a sua colecção de pintura e desenho, com exemplares icónicos, anteriormente presentes nas retrospectivas de Serralves e Museu Reina Sofia de Madrid. “A colecção de Paula Rego permite mostrar todo o seu percurso criativo”, diz Dalila Rodrigues, directora do museu. “Por isso organizámos o percurso expositivo a partir de critérios cronológicos, cruzando temáticas e técnicas em salas sequenciais.”

Que história se conta nesta casa de altas chaminés? Tudo começa logo nos primeiros anos da pintora, com as suas primeiras colagens e uma abordagem quase abstractizante onde critica o Portugal salazarista dos anos 50 e 60. Passa depois para os anos 80 com as temáticas relacionadas com a sexualidade e uma agressividade muito perturbadora, narrativas interpretadas maioritariamente por animais como o leão, o coelho, o urso... São contos centrados em questões de dominação e poder no seio da família. “Em vez de se apropriar de imagens, mutilá-las e cortá-las como nas primeiras obras, ela regressa ao desenho, executado directamente sobre o suporte”, explica Dalila Rodrigues. “No seu percurso, ela vai passando gradualmente de um registo abstracto para o figurativismo realista. No final dos anos 80, na série de pinturas e gravuras Meninas e Cães, Paula Rego conquista a linguagem figurativa, a profundidade espacial e a mobilização de dispositivos que servem a sua principal finalidade: contar histórias.”

Já durante o período de formação na Slade School, em Londres, a jovem artista é muito clara na sua preferência pela linguagem figurativa. No entanto, devido à tirania do estilo, ser figurativo nos anos 60/70 era quase uma impossibilidade. Até ao final dos anos 80, Paula Rego faz uma progressiva libertação dessa tirania e embrenha-se na tarefa de ser contadora de histórias. A artista não se compromete com o questionamento da arte e suas linguagens, como os seus contemporâneos. “Paula Rego questiona a vida através das possibilidades conceptuais e formais da arte e não o inverso. E, com o intuito de contar histórias, reinventa a tradição figurativa e narrativa da pintura”, conclui Dalila Rodrigues.
Os sucessivos discursos, séries e técnicas que vai experimentando têm que ver com essa finalidade essencial. Ela vai adoptando técnicas que lhe permitem uma aproximação à história.
“É na história que eu coloco toda a minha vitalidade”, disse a artista durante a montagem da exposição.
O museu assume uma grande presença da sua obra gráfica, muitas vezes relegada para segundo plano pelo público em geral. A colecção é maior do que aquilo que está à vista e por isso serão organizadas exposições fora da casa com as peças da colecção. Para além da exposição permanente, sujeita à rotatividade de algumas peças, como convém a um museu dinâmico, há lugar para exposições temporárias que mudam a cada seis meses. Para a inauguração, a mostra temporária será também ela dedicada a Paula Rego, com algumas das suas obras das mais importantes, peças de grande formato emprestadas pela Galeria Marlborough, que representa a artista em Londres. Depois disso, será a vez de apreciar a pintura do seu falecido marido, Victor Willing.
As linhas de orientação para a programação de exposições temporárias decorrem das questões artísticas que a obra de Paula Rego coloca. “Como Paula Rego é uma pintora narrativa,
e como toda a tradição da pintura ocidental
é marcadamente narrativa, teremos sempre exposições de grandes mestres antigos internacionais. É esta a vocação do museu”, revela Dalila Rodrigues.
Um espaço descontraído, informal mas cosmopolita. Vinda de fora, uma luz rosada penetra dentro do branco imaculado do interior enquanto as janelas abrem para o jardim. É o que nos espera nesta casa com auditório para 800 pessoas onde acontecerão regularmente ciclos de conferências internacionais que abordam as ligações entre as artes visuais, a literatura e o cinema. Haverá cursos e workshops intensivos em horário pós-laboral, com grandes especialistas internacionais. Há também uma cafetaria arejada e aberta para o frondoso jardim, a loja com merchandising e objectos inspirados na obra da senhora que dá o nome à casa, assim como peças que evocam as formas do trabalho de Souto de Moura. Nas estantes e vitrinas espreitam livros da livraria Galileu, objectos d’A Vida Portuguesa e jóias de Paula Crespo e Paula Paour. E para testemunhar a vida e obra do museu, serão lançados livros próprios: um catálogo da exposição temporária, um outro contendo a totalidade da colecção com reprodução de todas as obras e ainda um livro sobre o edifício. E isto é apenas o início da história...


Os quadros preferidos
de Paula Rego, por si explicados

Pillowman, 2004

“Esta é uma obra inspirada na peça de teatro com o mesmo nome que eu vi em Londres e que me deixou muito emocionada. Gostei muito, mesmo. Então, transformei
o cenário e transpu-lo para o Estoril. À esquerda vemos a menina que queria ser Jesus Cristo, por isso carrega a cruz feita com um escadote e uma trave de madeira. No escadote está pendurada uma borracha daquelas que as crianças mordem quando lhes estão a nascer os dentes. Tem a cadeira forrada com o mesmo tecido da cadeira do meu pai. É uma coisa muito pessoal, a mistura entre o pillowman e o meu pai. No centro, o que se vê ao fundo é a praia do Estoril. Tem presente o pequeno príncipe e o Saint-
-Exupéry que viveu no Estoril durante
a guerra e que jogava muito no casino.
À direita, a menina fez uns bonecos com maçãs. Os braços são lâminas de barbear. As maçãs são para o pai comer, pois ela não gostava do pai. Ao meio deste quadro está a minha neta que serviu de modelo e o pillowman em baixo. O pillowman é um boneco que construí para servir de modelo, com collants, e tem um edredon por dentro.”

O Anjo, 1998

“É um anjo da guarda vingador, redentor e ameaçador. É o quadro de que eu mais gosto e que levo comigo quando morrer.
É da série O Crime do Padre Amaro. Traz consigo os símbolos da paixão: a espada
e a esponja. Nasceu, ganhou forma e sabe-
-se lá para onde seguirá. É cruel para as pessoas que são más e nos tratam mal mas é bom para as pessoas que nos protegem.”

Entre as Mulheres, 1997

“Gosto muito deste quadro, da série
O Crime do Padre Amaro. Aqui, a personagem masculina está a fingir que tem nove anos porque aos nove anos vestiam-no
de menina e davam-lhe muitas festinhas. Ele ficava todo contente. É o padre Amaro em pequenino, mas aqui vê-se um homem adulto porque o meu modelo era um homem.”

Time Out, Setembro 2009

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Fátima Mendonça - O Medo Mora Comigo...

Miguel Matos sentiu-se ameaçado pelas novas telas de Fátima Mendonça, mas viu-se protegido pelos seus amuletos

A pintura de Fátima Mendonça assombra-nos ao trazer à vista desarmada os medos e obsessões que tentamos a todo o custo ocultar dos outros e de nós próprios. Quem é que nunca teve monstros debaixo da cama? Quem é que nunca ouviu ruídos estranhos que assaltam a imaginação a meio da noite?

Em casa, no sossego do conforto doméstico, alguém se sente observado. Como se as paredes tivessem olhos e presenças se elevassem das traves do soalho de madeira. O medo é aquela sensação que todos nós temos em comum. Seja o medo comum ou aquele irracional a raiar a fobia. O sentimento de se ser vigiado, o medo constante e irracional: é este o tema da exposição “Para Cegar o Medo”, que Fátima Mendonça inaugura amanhã na Galeria 111.

Os olhos são metáforas para os medos. Muitos olhos, imensos olhos que nos miram a partir destas grandes telas, num registo puramente obsessivo já característico da obra desta criadora. Mas enquanto anteriormente as suas obsessões encontravam ecos num discurso sobre a infância, ou mais fortemente nas teias de sedução amorosa e sexual, agora a aranha dá-nos a conhecer a sua casa: a casa dos seus medos. “Estes quadros são paciências”, diz a artista. Representam as estratégias que Fátima aplica para se concentrar em outros pormenores e assim pôr os seus medos a um canto. Como vazar um olho para matar o que ele representa ou emparedar outro olho para camuflá-lo e sufocá-lo. É que as fobias são criaturas matreiras e teimosas que não nos deixam viver.

Uma figura que começou a aparecer frequentemente em outras obras de Fátima Mendonça é o toureiro. Figura sedutora que encara o medo de frente, é o símbolo daquela força que porventura faltará à artista para confrontar os seus temores. No meio destes olhos que emergem das paredes, do chão e dos cantos da casa, aparecem flores azuis. Estas flores são as mesmas que ornamentam os fatos dos seus toureiros. Surgem aqui penduradas nas paredes como amuletos, símbolos dessa figura destemida. Como se a presença destes elementos pudesse impedir os medos de se tornarem realidade. “Vivo todos os dias com o medo, desde jovem e pela primeira vez penso que estou a tentar lidar com isso”, diz a pintora. “Sinto que esta série é talvez o início de uma nova fase.”

“Para Cegar o Medo” chamou Fátima a este conjunto de imagens cheias de impacto que pintou como forma de catarse compulsiva. Mas o que fez ela com a tal entidade omnipresente? Estropiou-o, furou-lhe os olhos. “Assim retirei-lhe força. Não pode ver e fica com o seu poder limitado.” Apesar de o tema ser tenebroso, estas obras ainda transmitem beleza; uma beleza perturbadora, mas ainda assim beleza. É a possibilidade de redenção que transforma uma obra de arte em algo sublime.

Tal como no triste e belo poema que Amália cantou: “Quem dorme à noite comigo/ É meu segredo/ Mas se insistirem, lhes digo/ O medo mora comigo/ Mas só o medo, mas só o medo”...

“Para Cegar o Medo” está patente na Galeria 111 (Campo Grande, 113) de 10 a 7 de Novembro. De terça a sábado das 10.00 às 19.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 8 de Setembro de 2009

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Maria Beatriz, Menina e Moça

Miguel Matos recomenda a exposição na Galeria Ratton que mostra os primeiros trabalhos de Maria Beatriz em azulejo


“Ociosa juventude | A tudo submetida”, a expressão, usada numa obra de Arthur Rimbaud, é o mote que leva Maria Beatriz a explorar mais uma vez o tema da infância. O tema é recorrente nesta artista, mas as técnicas evoluem para outros suportes como a cerâmica.

A infância de Maria Beatriz foi feliz pela presença da sua mãe, das avós e das mulheres da sua família. Mulheres extraordinárias que não tinham medo de nada. Segundo contou, “a minha mãe tinha uma grande força e muita dessa força veio do meu avô que faleceu muito novo, tinha ela sete anos. Acho que, de uma certa forma, ela abriu-me caminhos, tinha uma força instintiva”. Mas depois os seus pais separaram-se e a partir dos 12 anos Maria Beatriz ficou a viver com o pai. “Aí começou uma época da minha vida muito difícil para mim, fiquei muito sozinha, ele era realmente uma pessoa muito difícil”. O percurso de Maria Beatriz (Lisboa, 1940) é semelhante ao de outros artistas da sua geração.

Após a frequência da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, em 1962, durante a greve estudantil, foge do clima de repressão da família e do país. Ruma à liberdade oferecida por Londres onde acorda para a liberdade de expressão há tanto desejada. Desde então até agora, faz visitas regulares a Portugal. Na sua primeira incursão, em 1964, inicia-se na gravura em metal na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, mas logo no ano seguinte consegue uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e muda-se para Paris, onde conhece Júlio Pomar, um dos criadores que a influenciou e acompanhou ao longo da vida.

Há 39 anos que Maria Beatriz vive na Holanda, terra que a acolheu e lhe proporcionou as ferramentas necessárias para a construção artística e pessoal. É em Roterdão obtém o diploma em Pintura e Artes Gráficas. Vive em Amesterdão e tem realizado regularmente exposições entre lá e cá, com destaque para a mostra antológica na Casa da Cerca, em Almada (1998) e “Vita Brevis” no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (2002). Maria Beatriz reconciliou-se com o pai nos seus últimos anos de vida e, de certa forma, com Portugal. Nunca regressou definitivamente, mas aparece por cá de forma fugaz para mostrar o que vai fazendo.

A exposição “Oisive jeunesse, a tout asservie...”, na Galeria Ratton, é a oportunidade de o público se manter a par desta que é uma das séries mais recentes da artista. Aqui emergem personagens recortadas e coladas sobre fundos profundos. Crianças e jovens em poses que se atrevem a contar histórias dentro de um universo vincadamente feminino. A tal vivência intensa no mundo organizado pelas mulheres, esse mundinho em que a artista cresceu. São pequenas senhorinhas a experimentar o que as rodeia, com os receios e entusiasmos trazidos naturalmente pela exploração da vida no mundo dos adultos. Crianças-mulheres que encenam poses e recuperam memórias de um tempo em que as pequenas coisas são maiores do que as grandes. Aqueles banhos no jardim, as roupas enormes que a mãe vestia, as guloseimas comidas às escondidas... Como se Maria Beatriz se olhasse no espelho e o reflexo lhe devolvesse a sua primeira imagem, aquela que lhe ficou desde tenra idade e que a acompanha na mulher que é hoje.

Mas estas meninas que, no fundo são e não são a menina Maria Beatriz, estão retratadas no ponto em que deixam de ser apenas meninas. Há algo nelas que denota transição. Seja num olhar que já não é de pureza, seja num trejeito de vaidade ou num sorriso de malícia.

O que se apresenta nesta série são retratos desenhados, posteriormente recortados e colados sobre superfícies de pormenorizadas texturas esponjadas ou de tintas escorridas. Compõem imagens que, pela sobreposição de técnicas, ganham em tridimensionalidade. Obras que, através dos recortes, desenhos e pinturas, caracterizam um pequeno paraíso perdido entre a inocência e a crueldade. “Oisive jeunesse, a tout asservie...” traz uma novidade ao corpo de trabalho de Maria Beatriz: o azulejo. A Galeria Ratton especializa-se em obras de arte sobre cerâmica. Como tal, e aproveitando este savoir faire, aliado à experiência da artista no âmbito da gravura, eis a primeira incursão de Maria Beatriz no azulejo, com pequenos painéis realizados em específico para esta exposição.

“Oisive jeunesse, a tout asservie” está patente na Galeria Ratton Cerâmicas (Rua da Academia de Ciências, 2-C) até 18 de Setembro. Aberta de segunda a sexta das 10.00 às 13.00 horas e das 15.00 às 19.30 horas. A entrada é gratuita.

Time Out, 2 de Setembro de 2009

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Daan van Golden - A Meditação Numa Toalha de Mesa


"Red or Blue" é a exposição que revela o artista Daan van Golden ao público português. Miguel Matos faz-lhe a visita guiada.

Daan van Golden (Roterdão, 1936) é um artista venerado na Holanda desde a década de 1960, mas só chegou agora à Culturgest, no âmbito da sua missão de divulgação de nomes menos conhecidos.

No início da carreira, van Golden adopta um estilo de expressionismo abstracto, mas com um trabalho ainda imaturo. É isso que ele próprio percebe numa viagem ao Japão em 1963. Esta estadia foi uma experiência de desenraizamento em relação ao seu contexto social e artístico, um distanciamento que ditaria as regras da sua arte até hoje.

“Quando ele lá chega, toma consciência de que o seu trabalho estava esgotado”, explica Miguel Wandschneider, responsável pela vinda da exposição a Lisboa. “No Japão, ele é influenciado pela meditação e pela filosofia Zen, começando a desenvolver um trabalho em que concebe a actividade artística como uma espécie de meditação. Um dia, encontra no chão do seu ateliê uma amostra de tecido e copia-a para uma tela. Reproduz padrões abstractos encontrados em papel de embrulho em lenços ou toalhas de mesa.” A ligação com a filosofia Zem dá-se neste trabalho de quase mimetismo, com uma dimensão meditativa, devido à sua lenta elaboração. “Há uma grande meticulosidade e rigor que envolve um esvaziamento mental”, diz Wandschneider.

Não se colando a nenhum movimento artístico, Daan van Golden pisca o olho à Arte Pop europeia e à Op Art, passando pelo minimalismo e pela arte conceptual. Mondrian, Pollock, Matisse, Giacometti e Yves Klein são também referências que ele usa sem pudor. Como se mistura tudo isto? Primeiro que tudo, as quadrículas que ele encontra nas toalhas de mesa acabam por ser derivações das linhas geométricas que Mondrian tinha explorado.

Depois, Golden encontra figuras em imagens alheias que supostamente não possuem um lado figurativo. Em fotografias de flores ele encontra rostos e num pequeno fragmento de uma composição abstracta de Jackson Pollock ele descobre gente, pássaros ou raposas e copia estes detalhes para telas, aumentando a sua escala. Redescobre motivos, isola-os e apropria-se disso. A certa altura ele descobre figuras de pássaros nos veios e nós de uma tábua de madeira. Acaba por emoldurar essa tábua e considera-a como objecto artístico, na tradição do object trouvé.

Mais à frente nesta exposição, um marco na sua vida: em “Golden Years”, o artista colecciona recortes de fotografias em jornais com a respectiva legenda. Selecciona uma imagem de cada ano da sua vida, por entre as imagens guardadas numa caixa. O resultado é uma série cronológica que acaba por ser uma história subjectiva da fotografia. “Esta obra é um atlas da sua vida e da própria fotografia”, diz Miguel Wandschneider. Fotógrafos emblemáticos são mais uma vez apropriados numa viagem por imagens de guerra, ícones de beleza e do espectáculo, pela música rock e pelas divas do jazz. Personagens como Brigitte Bardot, Andy Warhol, Elvis Presley, Bob Dylan, os Rolling Stones, Bill Gates e Keith Haring contam a história do século XX.

O lado pessoal de Daan van Golden não é directamente explorado nesta exposição, mas acabamos por conhecê-lo intuitivamente. Tal como em “Golden Years”, uma outra linha de tempo é criada com a obra “Youth is an Art” que não é mais do que uma série de fotografias espontâneas do quotidiano da filha e das viagens que fez com o pai, desde o nascimento à idade adulta. “Red or Blue” traz à evidência que no trabalho de Daan van Golden há sempre uma disponibilidade para acolher os acasos do quotidiano na arte.

“Red or Blue”está patente na Culturgest até 6 de Setembro. Aberta de segunda a sexta das 11.00 às 19.00. Sábados, domingos e feriados das 14.00 às 20.00. Encerra terças. 2€.

Time Out, 4 de Agosto de 2009

domingo, 9 de agosto de 2009

Leonel Moura - “A verdade não é o assunto da arte”


Leonel Moura, embaixador português para o Ano Europeu da Criatividade e Inovação, lançou um livro sobre uma lata de dejectos humanos. Para Miguel Matos, isto é pretexto para uma conversa.

30 Gramas é o mais recente livro de Leonel Moura. Anda à volta de uma famosa obra do artista italiano Piero Manzoni: um senhor que em 1961 encheu uma série de latas com 30 gramas de excrementos seus e anunciou o preço de cada uma como sendo correspondente ao seu peso em ouro. Neste livro, a “Merda d’artista” despoleta uma perseguição à verdade. Mas a verdade, como diz o autor, não é o “assunto da arte”.

Este livro fala de temas complicados na arte. Porque é que partiu da ousadia de Piero Manzoni para criar uma história?

A carreira dele é curta, pois morreu cedo, mas fez coisas muito interessantes no final dos anos 50. Por exemplo, desenhou uma linha num rolo enorme de papel, que depois selou e ficou fechado. Mas a sua obra maior é a “Merda d’artista”. Manzoni pertenceu a um movimento artístico italiano contra a arte convencional, em que a própria atitude começa a ser uma obra de arte. Ele fez 90 latas que hoje em dia são compradas pelos museus a preços fabulosos, mas há uma espécie de enigma em relação ao que está lá dentro. Há quem diga que não têm nada. A verdade é que esse assunto nunca foi esclarecido e os próprios museus rotulam a obra sem definir o seu conteúdo. Peguei neste mistério e aproveitei para fazer uma espécie de viagem pela arte mais incompreendida do século XX.

O Leonel também propõe uma rotura na arte. Destaca-se por ser o pioneiro em Portugal a criar arte com robôs...

Sempre tive a ideia de que se eu queria ser um artista a sério teria de ter conhecimentos fora do âmbito da arte. No final dos anos 80, isso tornou-se uma questão radical. Decidi abandonar o meio artístico porque achava que andava tudo à volta das mesmas coisas e era difícil fugir a isso. Larguei as galerias com que trabalhava e cortei relações com alguns artistas. Na arte e na ciência, para se resolver um problema é necessário sair do contexto desse problema.

Mas aquando de Lisboa 94 Capital da Cultura, apareceram várias obras suas de arte pública e são célebres as interpretações de retratos de gente importante como Amália Rodrigues.

O problema de um artista que se torna conhecido por um tipo de obra é que as pessoas querem mais daquilo e nós temos de responder. Ainda hoje há pessoas que vêm ao meu ateliê perguntar se eu tenho Amálias! Aliás, este ano há a grande exposição no Museu Berardo sobre Amália Rodrigues e é claro que vão lá estar os meus trabalhos, é inevitável. Sou perseguido pelo fantasma da Amália. Gostava muito dela do ponto de vista pessoal, mas a minha ideia não era fazer um retrato da Amália. A obra tinha mais a ver com a questão de um país periférico como Portugal e dos seus problemas com a identidade.

E quando se dá a sua retirada, investe no campo da ciência. Por onde começou?

Numa primeira fase, deixei-me fascinar por algumas ideias da ciência. Desde muito jovem sempre li livros sobre ciência e gosto de tentar perceber algumas coisas. O que mais me deu a volta à cabeça foi perceber que as coisas não funcionam em processos lineares ou consequentes. Percebi que tudo funciona numa base caótica, aleatória e de repente é que as coisas se transformam e dão origem a algo que nós conhecemos. Todo o sistema da produção de arte em que se concebe uma coisa com processos lineares até chegar a um quadro é completamente obsoleto. Tenho de fazer obras de arte em que eu desencadeio o processo mas não sei no que vão dar porque isso é que se aproxima da realidade natural. Comecei a interessar-me por algoritmos que simulam comportamentos da vida e geram formas imprevisíveis. Depois acabei por chegar à robótica porque queria sair do computador.

Não chegou a enveredar pela bioarte. Não tem o complexo de Deus, portanto?

Nada disso. Não sou crente, pelo contrário. Estou a simular mecanismos da natureza, mas isso não tem nada a ver até porque eu acho que a natureza não foi criada por Deus. Não quis enveredar pela bioarte porque não me agrada manipular a vida real. Tenho muito respeito pela vida desde a mais pequena bactéria ao elefante.

Com esta vertente artística ainda pouco explorada, está no fundo a questionar profundamente a arte e os seus processos. Tal como Manzoni...

A arte é para construir mitos e novas ideias. Só quando nós fazemos uma coisa que transforma a própria noção de arte é que estamos a fazer arte. A arte a partir do século XX não tem de representar nada. É uma coisa em si própria. E depois de Duchamp ainda mais. Os ready-mades (o urinol, por exemplo) têm interesse não como objectos mas porque desencadearam a transformação da arte. Isto ligou a arte ao conceito de inovação.

O Leonel Moura foi nomeado embaixador em Portugal para o Ano Europeu da Criatividade e Inovação, junto com figuras de renome mundial como por exemplo, o designer Philippe Starck, o arquitecto Rem Koolhaas, a coreógrafa Anne Keersmaeker e Erno Rubik, o criador do cubo mágico. Que balanço faz desta iniciativa?

Tem sido uma experiência interessante. A ideia, desde a primeira reunião que fizemos em Praga, foi fazer um manifesto da criatividade. Em cada país temos promovido conferências e por cá temos a decorrer o Concurso de Ideias Criativas. Mas o essencial do trabalho tem sido redigir o manifesto que está quase pronto e será publicamente anunciado em Setembro. Somos mais de 20 pessoas com entendimentos diferentes sobre o que é a criatividade. Este será um documento interessante pois tem uma série de reocomendações para a União Europeia. Uma das conclusões é que todos os problemas vão dar à educação. Uma das coisas que observamos em Portugal é que a nossa escola está pouco virada para a expresão criativa. Os professores debitam conhecimentos que os alunos memorizam, o que não tem qualquer interesse. Temos de fazer uma grande revolução no ensino, mas no nosso país vai ser muito difícil porque qualquer modificação que se faça tem sempre a oposição dos professores.

Tal como defende a subversão dos mecanismos da arte, Leonel Moura deixou de ser o artista que pinta quadros e é mais como o galerista que representa os seus artistas robôs. Mudou-se para a Lx Factory e prepara para breve mais um livro, desta vez de poesia escrita por um robô.

O Robotarium, ateliê e galeria de Leonel Moura fica na Lx Factory (Rua Rodrigues Faria, 103, H2.0) e está aberto de segunda a sábado das 10.00 às 19.00.

Time Out, 28 de Julho de 2009

sábado, 1 de agosto de 2009

NORONHA DA COSTA - O FLUXO LUMINOSO DA MEMÓRIA


NORONHA DA COSTA

O FLUXO LUMINOSO DA MEMÓRIA

por Miguel Matos


Um vidro embaciado separa-nos do que está lá fora. Impede-nos de saber ao certo de quem é aquela silhueta, que mulher é aquela, onde estamos afinal, em que paisagem difusa onde apenas se vislumbram as ondas. A impossibilidade de concretização da imagem leva-nos a desejar essa mesma imagem catalisadora da experiência passada, presente ou futura. A nossa, não a do artista.

«Fazem a luz eternamente derramada sobre a superfície sem limites do mar, os inumeráveis simulacros que as vagas inumeráveis do mar reflectem através dos raios de sol destinados a atingi-las». Nestas palavras de Leonardo da Vinci residem ideias e impressões visuais que nos levam à pintura de Luís Noronha da Costa (Pintor e cineasta, arquitecto diplomado pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa), um dos grandes mestres da pintura portuguesa e, porventura, um dos mais originais e solitários pintores da actualidade. Original na sua idiossincrasia, coerente no todo da sua obra que desde os anos sessenta apresenta, num mesmo discurso continuado, uma evolução que apesar das diferentes velocidades e qualidades, nunca parou e segue hoje com a mesma força conceptual e pictórica. São já ampla e por vezes demasiadamente difundidas as suas imagens difusas, diluídas de mares, de praias e meninas românticas das quais apenas vemos a sua projecção na tela, ficando a cargo da nossa imaginação o preenchimento dos pormenores.

A relação de Noronha da Costa com da Vinci é mais próxima se atentarmos naquilo que marca aquele e distingue este. «Durante o Renascimento, o contorno fechado e a perspectiva euclidiana organizaram racionalmente a compreensão da profundidade espacial. Criava-se na tela uma forte ilusão da realidade tridimensional, que imediatamente nos distraía da realidade bidimensional da tela. O espaço era sugerido para além do plano desta. O sfumato de Leonardo acrescentou subtileza e rigor a esse ilusionismo. Desde o Cubismo, com os seus contornos abertos e a anti-perspectiva, começámos a entender a sugestão de um espaço para aquém do plano da tela. Haverá que entender-se a mesma inversão da função do sfumato. É o que propõe a obra pictórica de Noronha da Costa», diz Rui Mário Gonçalves no catálogo da exposição individual do artista na Galeria Valbom, em 2001. Já Maria João Fernandes descreve deste modo a obra do pintor, fazendo a mesma relação e acrescentando um segundo artista que intervém activamente na conceptualização da obra de Noronha: «Sfumatos, duplicações, miniaturizações, como se a imagem fosse manipulável, abrindo repentinos rasgões, evocação de Lúcio Fontana, aberturas brancas, janelas para um vazio onde transparece a plenitude de um desejo que assim se anuncia» (Catálogo da exposição A Grande Janela de Kiev, Galeria António Prates, 2006).


Lúcio Fontana – outra referência que Noronha da Costa raptou para dentro das suas telas, ou ecrãs, como lhes podemos também chamar. Piero Della Francesca Após Lúcio Fontana foi a mostra que o autor apresentou em 2005 na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa. O mesmo local onde com apenas 13 anos se estreou e onde abriu as portadas das suas janelas de nevoeiros etéreos a nós, figuras hoje projectadas numa tela de memórias e incertas divagações. Nesta série que inaugurou o seu novo período artístico, dá-se «uma outra dialéctica entre os espaços. Cria-se uma tensão entre o espaço real e o espaço pintado», segundo palavras do pintor. Piero Della Francesca, um dos mestres renascentistas é chamado a depor pela sua utilização da sobreposição de imagens e o recorte quase matemático de personagens. Com ele, a bidimensionalidade é expandida mais além e cria-se uma terceira dimensão que reforça uma ilusão de profundidades entre o real e o irreal. Por outro lado, Lúcio Fontana, pintor de vertente espacialista que nas décadas de 50 e 60 subverteu a concepção de tela, cortando-a, rasgando-a em imagens monocromáticas. É a luta entre espaço e imagem que está aqui a ser travada numa tensão poética marcante. Cada um destes elementos quer ser mais do que aquilo que é mas nunca deixando de se articularem um com o outro, aliando esta instabilidade e profundidade imagética ao leit motiv do autor: o mar, a paisagem encaixotada e expandida, uma noção de volatilidade da memória. A contemplação é mandatória. A tela despoleta a projecção e introspecção do observador. Como diz Rui Mário Gonçalves, «O olhar segue a direcção da luz que se projecta perpendicularmente à tela; e o intelecto entrega-se às ilusões de espaço, movimento... e som! Finalmente a imagem fala! Mas é o espectador que fica colado e quieto na escuridão».


José Augusto França, no Dicionário da Pintura Portuguesa fala desta pintura como «situação neo-romântica que vai às fontes fantasmagóricas do surrealismo». Numa outra exposição de Noronha da Costa, desta vez na Galeria de Arte de São Bento em 2001, Maria João Fernandes atesta que «a modernidade de Noronha da Costa está precisamente na sua capacidade de interrogar as aparências, encarando o visível como ponto de partida de uma experiência intelectual, sensível e onírica». Ainda em busca de uma possível descrição da obra de Noronha da Costa, encontra-se esta no livro Noronha da Costa ou a Consciência do Tempo (Ed. Caminho). Aqui, Bernardo Pinto de Almeida fala de imagens que «parecem, assim, ir entrando aos poucos num processo de desmaterialização, restando apenas, daquilo que foram, alguns sinais que se apresentam como um cenário». E continua mais à frente aludindo à figuração presente nas suas imagens: «a mulher, a paisagem, o mar (...) não são senão pretextos (ou personagens) que servem para dar corpo à representação da pintura enquanto coisa em si mesma acontecendo».

Um aspecto menos positivo da carreira de Noronha da Costa é a forma como as suas obras têm sido geridas. Há uma proliferação de obras e reproduções, quase sempre dos trabalhos menos interessantes, que desgasta a sua imagem. Para isso contribuiu a falta de honestidade de galeristas, assim como o vazio de algumas mentes críticas que o ignoram. «Gosto tanto deste país como rejeito a maneira como sempre fui tratado aqui», diz o criador. Bernardo Pinto de Almeida fala sobre este paradoxal mau-estar em relação a uma obra que, não obstante, é reconhecida como incontornável na história da arte portuguesa. «Se é verdade que o pintor recebeu nos inícios da sua intervenção um invulgar reconhecimento crítico, de resto reconhecido, pela inovação que a sua obra trazia e, ao mesmo tempo, pela elegância conceptual e formal que nela se casavam, e soluções que aliavam o maior preciosismo a uma estruturação plástica de extrema eficácia visual, o facto é que essa obra caíu numa espécie de esquecimento crítico que só se explica num contexto cultural como o português». No entanto, Noronha dá um murro neste marasmo com um trabalho incansável e refrescante. Neste momento decorre na Galeria António Prates a exposição dos seus mais recentes trabalhos onde ele prova a sua genialidade, num registo de experimentação que recorre forte e coerentemente à História de Arte. Um conjunto artístico que resgata a questão da imagem da mesma forma como o autor a iniciou nos anos 60 com objectos representantes da anti-pintura, assim como pinturas de dimensões mutantes e diversas que se projectam em frente no observador e fazem uso do que está por detrás da imagem para a integrar em imagem em si. Pode-se dizer que estamos perante o refinar de uma linguagem já de si sofisticada mas em constante evolução.

A Umbigo encontrou-se com Luís Noronha da Costa na sua casa/atelier no Estoril e foi aí onde, rodeados de imagens testemunhas, suas e de amigos, de memórias e histórias, se desenrolou esta conversa:

Um conjunto de artistas emergentes decidiu invocar a exposição Alternativa Zero e a partir dos artistas que dela fizeram parte, criar novas obras. Falo de Alternativa Um, no Hospital Júlio de Matos no final de 2008. A Alternativa Zero, em 1977, e na qual o Luís também participou, foi uma exposição importante para o início de uma vanguarda artística em Portugal e, para alguns, o arranque do pós-modernismo no nosso país...

Sim sim, do pós-modernismo. O meu amigo Ernesto de Sousa tinha vindo completamente “bouleversé” de Cassel. A arte para os burgueses tinha acabado, era a imaginação pura e a destruição de tudo. Mas no pós-modernismo vale tudo, enquanto que na exposição Alternativa Zero, os apertos eram bastante maiores. Nada de coisas que tivessem a ver com beleza, com imagem, etc. Eu apresentei dois objectos, um deles era um conjunto de panfletos da altura que diziam “Morte a Otelo” ou “Viva Otelo”, “Viva o 25 de Abril”, “Fora o 25 de Abril”. Eram fotografias que eu tinha com o meu carro em frente às paredes, e depois intervinha com pintura, com referências às cenas de pancadaria que houve no meio daquilo... Diverti-me e não passou disso. Mostrei também uma tela enorme onde eu dizia, escrito à mão, que uma pintura é sempre uma visão sobre a cidade. Resta-nos ver qual é a reacção da cidade sobre essa pintura. Portanto, qualquer crítica que venha ao pintor, vinda da cidade, é bem-vinda. Eu não fui à inauguração, mas o André Gomes disse-me que um artista de que ninguém se lembra, Victor Belém é o seu nome, apareceu lá e escreveu com um spray: «Filho da puta! Puta que te pariu! Diz lá o que é que queres!»


Causou o efeito desejado... Fala-se muito da Alternativa Zero e de facto muitos dos seus intervenientes são hoje figuras de renome da arte contemporânea portuguesa. Mas fale-me da sua opinião acerca da verdadeira importância dessa exposição.

Creio que foi apenas uma exposição. Cada um continuou o seu trabalho, independentemente daquilo. Nada foi particularmente definitivo. As pessoas salvaram-se à sua maneira. A própria Paula Rego, que é a artista portuguesa mais importante hoje em dia, apresentou uns pequenos guaches que eram a continuação e a continuidade da pintura dela que continua a evoluir de maneira estrondosa. Não foi uma exposição muito interessante. Não foi marcante. Muitos pintores dessa altura que seriam “inimigos de tudo o que se fazia” continuam hoje a fazer a sua arte, como Pedro Calapez que eu muito admiro.


Como é que tudo começou? Como teve início esta aventura nas artes plásticas?

Comecei a fazer uns pastéis e desenhos aos seis anos de idade. Nessa altura esperava-se que o menino fosse pintor, o menino iria ser artista... Expus pela primeira vez com 13 anos na Sociedade Nacional de Belas Artes. Não tinha qualquer formação, o que eu fazia era feito com as tintas e outros materiais que me davam. Fui estudar belas-artes por imposição da minha família e assim comecei a desaprender tudo aquilo que tinha aprendido por conta própria. Depois disso nunca mais liguei à pintura. Segui o curso de arquitectura. Recomecei a pintar aos 20 anos. Com as figuras translúcidas. Pegava, por exemplo, em páginas do Paris Match e embebia essas folhas em gordura, em óleo de linho, para se ficar a ver as duas páginas, era um ecrã onde se viam duas imagens sobrepostas. Eu elegi esse ecrã como o grande acontecimento da arte. Todos os objectos que fiz a seguir tinham a ver com a questão do ecrã.


Esses objectos só chegaram ao conhecimento do grande público na retrospectiva feita no Centro Cultural de Belém, Noronha da Costa Revisitado...

O Eduardo Lourenço dizia que, curiosamente, eu tinha passado uma longa fase de assumir uma anti-pintura, para uma pintura muito original, derivada desta anti-pintura. Dizia também que a representação morreu. Viva então a representação dessa mesma morte. As minhas telas desfocadas - eu não gosto de dizer desfocadas, antes diluídas, difusas – têm que ver, sobretudo, com essa colocação num espaço que é puramente pictórico, mas que vem com toda essa formação de base que vinha da anti-pintura.


Tenho uma interpretação pessoal que me liga às suas imagens. O que aparece numa pintura sua assemelha-se às imagens que eu tenho na minha memória. Penso que pinta também sobre a memória e os vestígios de realidade que a compõem... Identifico-me com as suas imagens porque quando tento reconstruir imagens, é assim que elas me aparecem... desfocadas, diluídas e etéreas...

Tem que ver com Sartre, com quem aprendi isso em Sur L'Imaginaire. Cada um nós tem uma imagem da Torre Eiffel. Mas a sua imagem da Torre não é a mesma que eu tenho, da minha experiência. A Torre Eiffel, ela mesma, em si, tem o seu lado noético da imagem e depois há a imagem da Torre Eiffel que tem a ver com o lado recitativo do que ela é. Aí estamos a falar da mesma coisa. Pelo lado noético, as imagens são totalmente pessoais: suas, minhas, etc.


Se eu quiser dizer-lhe a minha imagem da Torre Eiffel, O Luís nunca saberá exactamente como ela é...

Conhece a representação da Torre Eiffel feita pelo Robert Delaunay?


Não estou a ver a imagem...

Pois (risos) lá está... mas você tem uma imagem dela, eu tenho outra. A Torre Eiffel é o símbolo de Paris, da Belle Époque. De uma maneira simpática de se estar no mundo... Isso está em Delaunay. Mas quando foi a exposição da Vanguarda Russa, havia uma fotografia genial do senhor Rodchenko que a representava como um hino ao esforço humano que domina o ferro e que aspira a uma sociedade sem classes. A imagem da Torre Eiffel de Rodchenko é completamente diferente da imagem que eu tinha antes de ter visto esta exposição. Quase me vieram as lágrimas aos olhos quando vi esta imagem.


Voltando à anti-pintura... Por volta dos vinte anos criava estes objectos, quase instalações... Acha que na época estas obras, assim como a evolução para a pintura, eram compreendidas, aceites?

É muito difícil responder a essa pergunta. Normalmente os artistas passam da pintura para a anti-pintura e eu fiz o inverso. Nunca me perdoaram isso. Chamavam-me de reaccionário. Era visto como o pintor dos grandes salões, da burguesia. Mas o que eu fazia com a pintura era representar a sua própria morte.


Portanto aquilo que começou a fazer em duas dimensões era exactamente o seguimento do que tinha feito a três dimensões. O discurso foi continuado...

Claro que sim.


Então como explica esta polémica?

Bem, por um lado, devido aos objectos que criava e às posições que tomei, fui quase abençoado pela Esquerda. Por outro lado, quando comeei a pintar, aí foi um sarilho...


Mas a pintura é um media ideológico?

Não é que a pintura, só por si, seja um meio ideológico. Agora, o que eu fiz, com constantes conotações românticas e pós-românticas podia ser evidentemente interpretado, como foi, como uma reacção.


Quando realmente passou para a pintura, foi-lhe difícil impor a sua linguagem?

Aquando das primeiras pinturas, houve indivíduos que tentaram destruir-me como tentavam destruir tudo e todos. Mas no geral foram bem aceites pelo quadro político da esquerda à direita.


O meio das artes plásticas em Portugal está saturado de um academicismo sem verdadeiras intenções ou originalidades. A geração mais jovem de artistas portugueses está mais interessada em impressionar galeristas e professores de estética, ou em provar que possui estudos superiores. As ondas de vanguarda do passado foram mais vanguardistas do que as vanguardas de hoje. O que pensa disto?

Penso que nos anos sessenta o vanguardismo era o que todos assumiam e desejavam. Era o princípio e o fim de qualquer acto artístico. Os tempos passaram, surgiram outros movimentos e, sobretudo devido ao pós-modernismo e movimentos afins, aconteceu que tudo o que não fosse a última moda lançada sem qualquer base, mas apenas lançada ao ar como o acto de lançar uma pedra, era visto como reaccionário, como coisa do passado. Hoje penso que vai surgindo um “neo-classissismo” que, quanto a mim, não é reaccionário, mas é, pelo contrário, a aposta de que no mundo de hoje para se estar à frente é preciso voltar a ser clássico.


As pessoas que o conhecem referem que o Luís Noronha da Costa tem uma espécie de mal-estar em relação ao facto de achar que a sua obra nunca foi suficientemente valorizada ou compreendida. Já há pouco deu a entender a presença deste sentimento...

Evidentemente que há poucos anos atrás parecia que eu ia deixar de existir. Houve um tempo em que o meu nome era extremamente afastado pois estavam a travar-se outras batalhas nas quais eu não entrava, ou pelo menos tinha a minha própria batalha e não entrava pela mesma porta para a mesma batalha. De outras coisas que seriam mais violentas, prefiro não falar...


Mas isso aconteceu em que época?

Nos anos 80. Por exemplo, a minha exposição retrospectiva na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1983, foi um fracasso ao nível da crítica. Não foi falada, nem existiu. Foi ignorada. E a pessoa que mais fez para destruir essa exposição foi a crítica de arte Sílvia Chicó. Ela era muito hábil a escrever e a sua crítica contra mim era de tal maneira inteligente... Ao contrário da minha resposta em que eu dizia que ela não era inteligente. Retiro isso e tenho que reconhecer que a levei a sério.


E de que modo é que essas críticas o afectaram e ao seu trabalho? Repensou tudo?

Não propriamente. Continuei a fazer o que estava a fazer.


Na arte anda-se sempre á procura daquilo que é a próxima tendência. Há pouco mais de um ano dizia-se que a nova tendência era a valorização do desenho. E de repente, entre museus, fundações e galerias, havia uma série de exposições de artistas que exploravam o desenho. Afinal, parece que foi uma miragem e hoje fala-se do ressurgimento da pintura. Há décadas que se fala da morte da pintura e agora ela renasce todos os dias. Tendo iniciado a sua carreira com a anti-pintura, acha que faz sentido falar sobre a morte ou sobre o renascimento da pintura?

É preciso voltar a ser clássico. Voltar à pintura e trabalhar sobre ela. A exposição na Gulbenkian tão atacada pela Sílvia Chicó tinha a ver com o renascer da pintura e isso tornou-se mais claro em mim. Nas minhas últimas exposições tenho tentado o regresso á pintura de um modo clássico. O que quero eu dizer com isto? Afinal de contas é a forma, a luz e a cor aquilo que pode definir novamente a pintura. Não que com isso se esteja a fazer pastiches do passado mas que seja a utilização da pintura com uma posição realmente clássica e de reconhecimento da História de Arte. A forma e o espaço tinham estado completamente unidas em Piero Della Francesca no Renascimento. A queda do Renascimento tem a ver com a luta cada vez maior entre espaço e forma. O espaço e a forma tornaram-se cada vez mais afastados e isso levou à pintura moderna. Depois há grandes momentos de implosão do espaço como foi o caso do cubismo. Outros de eclosão da imagem que foi o expressionismo. É dentro desta dialética que eu julgo que se deve encontrar a pintura que se faz actualmente.


Está neste momento a trabalhar em exclusivo com a Galeria António Prates. Diz-se que as pessoas que anteriormente geram as suas obras não estariam a fazer o melhor trabalho...

Sobre esse facto de a minha obra estar a ser mal gerida, posso dizer que é uma história que cheira tão mal que sobre isso é melhor não dizer mais nada.


Está entusiasmado com esta nova exposição em que, no fundo mostra uma série com uma vertente mais evoluída do seu trabalho?

Tem a ver com uma experiência que comecei há tempos com uma outra exposição na Sociedade Nacional de Belas-Artes, Piero Della Francesca Após Lucio Fontana. Lucio Fontana destrói o espaço do quadro, mas esse é um desejo profundo de conhecimento total. A arte depois dele tem sido sempre uma luta entre esse conhecimento da forma e da sua disforma, da destruição da forma. O que estou a fazer tem a ver com o problema dessa luta entre imagem e espaço. Nos quadros que estou a fazer, o observador quer determinar o espaço com o olhar e o olhos fogem-lhe para o que está ao lado, que é também o espaço. Mas um e outro querem ser imagens e se quisermos vê-los como imagens somos atirados para o que é o espaço. Se quisermos ver o espaço, somos atirados para a imagem.


Foi em 2003 que aconteceu a maior exposição de Noronha da Costa, a retrospectiva intensiva e abrangente no CCB onde o grande público pôde apreciar toda a obra do artista contextualizada e organizada por fases e interesses. No livro que acompanhava a mostra, o autor explicou em três pontos breves e conclusivos o seu trabalho, como que num manual imediato para não-iniciados. Nas suas palavras:


«”Pintura é desenho, desenho é pintura” - dizia Pollock. A técnica que utilizo (o spray) procura dentro deste pensamento que pintura e desenho sejam o Mesmo. A imagem aparece como projecção (aqui, projecção pelo spray). Daí a sua relação com o cinema. Se aqui o Olhar ainda pretende ser Mundo, talvez se explique assim a relação entre a minha pintura e o Romantismo».


«Eu fiz anti-pintura e objectos entre 1965 e 1968. Parti da anti-pintura para uma pintura de “projecção”, onde a imagem se separa do nosso próprio espaço. Nas artes plásticas ou se pensa o fim da imagem, e, portanto, a imagem, ou se enche o mundo de lixo, permitindo a criação de vazios que o Poder hoje preencherá com todas as suas formas de repressão e controlo».


«A minha pergunta em relação à imagem não será ainda um problema da imagem?»